quarta-feira, 9 de maio de 2012


65.






Solidão, solidão! (Um jogral existencial)




CAETANO VELOSO
Existirmos, a que será que se destina?...

ALBERT CAMUS
Ah!, a expressão da arte, através do artista! A obra de arte surge da renúncia do raciocínio contra o concreto, que é absurdo, em reação a ele – como fizeram os gregos, contra o trágico do mundo que impera sobre o mundo. Mas a verdadeira expressão artística somente pode começar onde o pensamento houver terminado, e o resultante vazio preenchido pelo não-ser do que é comumente chamado de amor: amor à arte, amor ao Outro, amor a isso e àquilo. Certamente não é ao amor que nos destinamos. Se fosse, tudo seria claro, quente e luminoso. No mundo, e se o mundo fosse assim – claro, quente e luminoso –, não haveria a arte; e se amar bastasse, tudo o mais seria simples, muito simples. O destino de todo homem, na gratuidade absurda do mundo, é a completa, enorme e absoluta solidão...

EMMANUEL LEVINAS
Solidão do ser que é finitude e transcendência, na relação que o lança para além de si, na...

CORO
Solidão!!!

ALBERT CAMUS
Sim!, sim!, oh!, sim! Solidão! Não há saída! Aqui somos, absurdamente, estrangeiros errantes à caça de sentidos que não existem, ou liberdades idealizadas pelo delírio inequívoco da prisão, da vida que é morte... e, a não ser pelo suicídio, não há saída. Há quem prefira, aqui, pensar-se peregrino, cidadão de terras além, para onde deve retornar depois da morte: para a vida eterna e bem-aventurada. E há quem pense que, no Outro, também esteja alguma beatitude, encontrada no bom êxito de uma relação afetiva. Mas, ah!, imaginar a felicidade no encontro com o Outro é, também, absurdo – pois o Outro, como nós mesmos, também padece de ridículos inevitáveis; pois o Outro, como nós, também está vivo.

KARL JASPERS
As questões que realmente valem a pena são as que eu devo responder em minha vida real, sem a visão contemplativa e sem as fantasias. Existir é escolher, e escolher é o dever que me lança à situação-limite, aquela que, com o Outro, também solitário, me une a ele em nossa solidão.

CORO
Solidão!!!

KARL JASPERS
O Outro sou eu-mesmo, que me vejo ao espelho. Aí, diante da visão, decido-me, de-cido. O Outro se tornou o meu reflexo, o mais difuso: distorção do eu-real que nunca volta para mim como é, mas sempre outro-não-eu, com-fuso. Nele, é a mim que me vejo, e de mim-mesmo me perco. A salvação está na transcendência; mas a transcendência, novamente, me força voltar a mim mesmo, que é de onde devo partir. E eis aí, novamente, eu e a minha enorme e triste solidão...

CORO
Solidão!!!

ALBERT CAMUS
Tudo o que me interessa saber é se é possível viver sem as muletas das religiões, ou sem os apelos sobre os sentidos do mundo, para o mundo e contra a... solidão, a quem estamos condenados.

JEAN-PAUL SARTRE
E a liberdade à qual somos condenados evidencia a máxima: a solidão universal do indivíduo! Ser é ser só: para-si, para-o-outro; ser é ser-aí, e o Outro, meu objeto... E pela consciência sei do Nada que me conta histórias de outras consciências lançadas por aí, e solitárias...

CHARLIE BROWN
Solitárias como eu, escondido atrás de um muro, com medo de encarar a garotinha ruiva que passa por ali. Se não me escondo, ela me vê; vendo-me, estarei obrigado à ação: da fala ou do silêncio. Falando, gaguejarei e tremerei, e parecerei infantil e tolo; não falando, serei tomado como arrogante ou mau educado. Queee puxa!, não acredito que isso está acontecendo! Por causa dessas coisas estou sempre perturbado e...

CORO
Na solidão!!! Taran ran ran, tan ran ram… Charles Monroe Schulz e solidão!

OSWALD DE ANDRADE
Na solidão, e contra ela, fui o maior onanista de meu tempo. Comi todas as mulheres do Brasil e, em meu banquete antropofágico, estava sozinho, preso neste corpo que, como as árvores de uma República Federativa, diz “adeus” e morre...  

AUGUSTO DOS ANJOS
“Morrer!” Ah!, essa libertação do homem cativo!, essa cessação do sonho vão que é a vida, elemento cunvulsionador que se opõe ao quietismo sonolento do Eu, e à inércia da alma – a essência pura: a Falta, a podridão do não-Eu, sombra vinda de outras eras, como um fantasma que se refugia na natureza morta...   

OSWALD DE ANDRADE
Eu fui o maior onanista de meu tempo... Comi todas as mulheres, com as mãos; eu às amei em um pensamento febril e delirante...

AUGUSTO DOS ANJOS

Falas de amor, e eu ouço tudo e calo!
O amor na Humanidade é uma mentira.
E é por isto que na minha lira
De amores fúteis poucas vezes falo.

O amor! Quando virei por fim a amá-lo?!
Quando, se o amor que a Humanidade inspira
É o amor do sibarita e da hetaíra,
De Messalina e de Sardanapalo?!

Pois é mister que, para o amor sagrado,
O mundo fique imaterializado
— Alavanca desviada do seu fulcro —

E haja só amizade verdadeira
Duma caveira para outra caveira,
Do meu sepulcro para o teu sepulcro?!*

MARTIN HEIDEGGER
Sim, o homem é uma fermentação para a morte. Somente ele, ser lançado no mundo, é consciente disso e, por isso e mais, é também histórico e temporal: in der welt sein, Dasein, ser-no-mundo e facticidade. Tal facticidade reside no fato de que o homem é antecipação de si mesmo, projetando-se no mundo, e para fora dele. Mas não se deve confundir o ser-no-mundo com a res-posta não negativa de alguma relação com o Nada, contrário ao Ser. Eis aí, na não com-fusão, a esfera da temporalidade do ser. O Eu é enquanto ser-compreensão do si-mesmo histórico-temporal. E o ser consciente de si é também  e somente ele poderá sê-lo, sim!, sim!  consciente da sua solidão...

TODOS
Sim, sim, ó sim! Solidão! Ahhh, solidão!



(Surge um ator fantasiado de Snoopy, sacudindo o rabo e segurando um enorme cartaz colorido em que se lê “FIM”. A plateia fica de pé e aplaude e assovia “Bravo! Bravo!” Lá no fundo, apanhando o casaco e preparando-se para sair, John Fante reclama: Oh, Deu uta me! La stessa filosofia è una scienza colla quale o senza la quale il mondo diventa tale e quale, è vero. Aos poucos o teatro se esvazia, as cortinas se fecham, as luzes se apagam).   





* Augusto dos Anjos, colocado como personagem, cita o seu soneto “Idealismo”, na íntegra. Ver em: ANJOS, Augusto dos. Eu. João Pessoa: Editora Universitária / UFPB, 1999. p. 59. Exceção feita a ele, todas as falas dos demais personagens (autores) são resumos adaptados daquilo que é mais vulgar em seus pensamentos, e no que diz respeito ao tema do jogral.     

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