48.
Da vida que se adia
A procrastinação é a coisa melhor partilhada entre os homens, pois cada um vive governado pelo passado, projetando-se para o futuro – que nunca vem – e esquecendo-se que há apenas ação imediata: o impulso natural e todas as suas consequências. Sim! A procrastinação é a coisa melhor partilhada entre os homens.
........Adiamos a beatitude que podemos ter, hoje, em função de outra, que poderia ser, amanhã; ou depois de depois de amanhã.
........Adiamos o nosso reino terreno, o melhor que podemos ter, o melhor que poderemos fazer, em função das tantas utopias idílicas, lançadas para o horizonte escatológico, o porvir que nunca sabemos.
........Adiamos o convite à mulher dos nossos sonhos, ao homem dos nossos sonhos, para um café, um cinema, um passeio ao fim do dia, e o que pode advir dos encontros tão bons. Sim! Adiamos porque nos envergonhamos. E a vergonha é algum tipo de tristeza fundada no amour de soi, provinda do medo que temos da opinião contrária ou da censura de outros acerca de nós mesmos: os desprezados, humilhados, desconfiados do sucesso duvidoso.
........Adiamos a imodéstia, da qual nos censuram quando nos falta, ou nos recriminam quando nos sobra: o peso de alguma glória, do feito merecidamente louvável, que é escárnio àquele ou àquela, perdedores que não sabem sê-lo.
........Adiamos o “basta!” àquilo (mulheres, homens, governos, religiões, et cetera) que cerceia o que temos de mais valioso: nossa liberdade de ir e vir, de cultivar e cultuar o pensamento autônomo, que nos conduz às nossas próprias decisões e aos prejuízos necessários, os nossos prejuízos.
........Adiamos o espanto e a perplexidade ante o exótico que nos fascina, o erótico que nos paralisa, o grandioso que desaba sobre o mundo, todos os dias, todas as horas, ao qual dizemos, sem fé nenhuma, cheios de exclamações: “Não!, não! Não pode ser! É claro que não é!”
........Adiamos a decisão de admitir psicologicamente que somente há (ou pode haver) desencanto após o encantamento, e que isso bem poderia (o achar-se encantado) não ser mais que o haver-se preso, habituado às ilusões: sobre a verdade, sobre o bem, sobre o belo, sobre o sublime, et cetera...
........Adiamos, ridiculamente adiamos, assumir a coragem que nos incita a mandar o velho às favas. A mesma coragem que abraça o novo como melhor, como superação do antes posto, fixado e defendido como garantia de alguma segurança em um mundo inseguro; mundo que muda sempre e inexoravelmente, rápido demais, dando-se ao novo que chega de assalto.
........Adiamos, não por fim, o que a vida nos oferece agora, já, em troca do que, tolos e tolas, sonhamos – feito as crianças que nunca soubemos crescer. E somos, sim!, sem que nos lembremos, cadáveres atrasados, gestando mais cadáveres, adiando o fim que vem, devindo, desde que nascemos...