sexta-feira, 12 de agosto de 2011

43.



As quatro Virtudes Cardeais



Prudência (Prudentia) | Confundiu-se a prudência, principalmente na Antiguidade e na Idade Média, com sapientia (φρόνησις, sabedoria), que é tradicionalmente aplicada à conduta racional das/nas atividades humanas, isto é: àquela capacidade que o humano (são) tem de dirigir suas ações da melhor maneira possível, com vista ao bem comum, e não somente o seu. Platão dizia que sofia (σοφία) é a ciência que governa a ação virtuosa: a prudência (Rep., IV, 443 e; 428 b). Assim, e como pode ser lido n’O Banquete (209 a): “[Sofia é] a mais elevada e, sem a menor dúvida, a mais bela [das virtudes], pois trata da organização política e doméstica, à qual se dá o nome de prudência e justiça.” Uma definição, sem dúvida, acima demais das nuvens – como ilustrado no Platão do/no afresco do italiano Raffaello Sanzio, “Academia de Atenas” (1511): dedo erguido, apontando o céu, como a mostrar que as ideias são mais reais que os seus simulacros. Aristóteles, realista, aponta para o chão, como a dizer: “[sofia é o] hábito prático e racional que diz respeito ao que é bom ou mau para o homem” (Et. Nic., VI, 1140 b 4), “[mas] o homem não é o melhor ser do mundo” (idem, VI, 7, 1141 a 21). A sabedoria é prática e, conforme o homem muda, ela também. Tanto que, tempos depois, encontramos Epicuro dizendo a Meneceu (A Meneceu, 132): “[a sabedoria] de que nascem todas as virtudes, é até mais preciosa que a filosofia”, porque tem a ver com a aplicação do saber à ação, para a aquisição da eudaimonía (vida feliz). Tal assertiva foi comumente aceita pelos estoicos: a sabedoria é a virtude absoluta, e somente o sábio poderá ser, realmente, feliz. É como a encontramos em Tomás de Aquino: “Conselheira em todas as coisas referentes à vida humana, bem como o fim precípuo da vida humana” (Sum. Theol., II, 1, q. 57, a 4); e “o fim precípuo da vida humana” é voltar-se para Deus (o Summum Bonum) e gozá-lo para sempre (bem-aventurança). Aliás, para os cristãos, a Sabedoria é uma personificação do Logos pré-encarnado (o Cristo) no Mundo, e já antes de sê-lo* – e mesmo quando Deus não falava nada, aos hebreus mais antigos, a Sabedoria era, também, no Mundo, a sua voz consciente, conscientizadora a bem conduzi-los à boa ação**. É neste sentido que se pode ler um texto no livro dos Provérbios (8, 22-31), onde a Sabedoria, personificada, faz um longo discurso aos homens:


..........Iahweh me criou, primícias de sua obra,
..........de seus feitos mais antigos.
..........Desde a eternidade fui estabelecida,
..........desde o princípio, antes da origem da terra.
..........Quando os abismos não existiam, eu fui gerada,
..........quando não existiam, os mananciais das águas.
..........Antes que as montanhas fossem implantadas,
..........antes das colinas, eu fui gerada;
..........ele ainda não havia feito a terra e a erva,
..........nem os primeiros elementos do mundo.
..........Quando firmava os céus, lá eu estava,
..........quando traçava a abóboda sobre a face do abismo;
..........quando condensava as nuvens no alto,
..........quando se enchiam as fontes do abismo;
..........quando punha um limite ao mar:
..........e as águas não ultrapassavam o seu mandamento,
..........quando assentava os fundamentos da terra.
..........Eu estava junto com ele como o mestre-de-obras,
..........eu era o seu encanto todos os dias,
..........todo o tempo brincava em sua presença:
..........brincava na superfície da terra,
..........e me alegrava com os homens. (BJ)

..........Quando o leitor se depara com o prólogo do Evangelho segundo João, não estranha a relação que evoca uma cristofania, na sapiência proverbial aí fincada, conforme o autor neotestamentário: “No início era o Verbo, e o Verbo estava voltado para Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava, no início, voltado para Deus. Tudo foi feito por meio dele; e sem ele nada se fez do que foi feito. Nele estava a vida, e a vida era a luz dos homens, e a luz brilha nas trevas, e as trevas não o compreenderam” (Jo 1, 1-5, TEB). A ignorância, contrária à sabedoria, são as trevas. O sentido, embora tenha a roupagem da mensagem cristã, é o mesmo que pode ser encontrado nos gnósticos, quando estes personificam a Sabedoria como a última emanação (ou Eon), que quer sair do seu estado de desejo e alcançar o conhecimento direto do Pai – de acordo com o que diz Irineu de Lyon, no Adversus Hæreses (II, 5), e conforme o testemunho de Cícero, que diz que os gnósticos chamaram Deus (como também chamaram a alma do Mundo) de “Perfeita Sabedoria” (Acad., I, 29). O haver a Sabedoria, assim, é praticamente a recompensa que se tem, ou se pode ter, ao se fazer parte de um círculo iniciático, acadêmico-doutrinal: judeu, gnóstico, cristão, et cetera. É prudente aquele que vive conforme a Sabedoria, obedecendo-lhe. Quem assim não faz, não vive, afunda-se nas trevas da ignorância e, de modo algum, pode ser sábio, feliz.
..........Quando Plutarco*** escreveu o pequenino tratado Como distinguir o bajulador do amigo, foi uma prudência prática que evocou – coisa que somente apareceria, bem mais acabada, bem depois – destacando-se entre outros, menos famosos, Immanuel Kant. Não havia dúvida de que Platão e Aristóteles fossem mestres e estudiosos da natureza humana, mas tratavam esses temas de um modo que nem todos podiam alcança-los, tamanha a abstração com que conduziam seus raciocínios. Plutarco rompe com esse costume, expondo seu pensamento, neste sentido, de maneira muito lúcida e clara. Quando fala do bajulador, por exemplo, diz: “O bajulador é inteiramente semelhante ao camaleão, que pode assumir todas as cores, exceto a branca”. O homem sábio (ou prudente), deverá saber distinguir perfeitamente o amigo do bajulador.
..........No livro de André Comte-Sponville, Pequeno tratado das grandes virtudes (Martins Fontes, 1995), a prudência vem somente depois da polidez e da fidelidade (capítulos 1 e 2, respectivamente): “A polidez é a origem das virtudes; a fidelidade, seu princípio; a prudência, sua condição”, ele diz. “Mas”, questiona, “será ela mesma uma virtude?” Ao menos na Antiguidade e Idade Média, era – uma entre as chamadas quatro virtudes cardinais (Iustitia, Fortitudo, Sapientia, Temperantia)****. “É a mais esquecida, talvez. Para os modernos pertence menos à moral do que à psicologia, menos ao dever do que ao cálculo.” E aí Comte-Sponville introduz o pensamento kantiano, sua moral do dever.
..........Para não irmos tão longe, basta ficar assentado que, antes, os homens pensavam (de modo inquestionado): devo fazer o bem por amor ao bem, porque é o melhor a ser feito, para todos (no meio dos quais se incluía). Hoje, pensam, questionando: o que devo fazer para cumprir o meu dever – e/ou evitar as punições de não cumpri-lo –, e ter em paz a consciência? Esta é, sem dúvida, uma das melhores definições do triunfo do Eu-egoísta sobre o Outro, e sobre o Mundo, enquanto re-conhecimento de uma condição temporal: de situação, de juízo. Morto o ideal, não morre a ideia, mas a realidade do mundo se altera, altera-a; e nós nos transformamos também, acompanhando o fluxo do rio do tempo. E se não há uma Sabedoria personificada, um bom senso a conduzir os homens às melhores ações, há, ainda assim, um consenso acerca de... O Eu-egoísta-consciente de si é, também, consciente do Outro-egoísta-consciente de si; e sabe que, para preservar o seu próprio Eu, e para a sua felicidade, precisa se impor (e impor aos outros) certos limites, e/ou aceita-los conforme um mínimo de sentido requerido. E se não fosse assim, e pela impositura de acordos consensuais (e/ou leis aprovadas pelas maiorias ou seus representantes), seria a barbárie. De fato: o homem em seu estado natural – como tão bem exposto por Hobbes no Leviatã – não se submete aos acordos por amor a qualquer acordo, ou a um Summum Bonum, mas por amor a si-mesmo, acima de tudo; e depois, por submissão às forças que lhe são externas: da natureza ou do príncipe, ou do Estado, ou do lobo mais forte que ele. A prudência pode ser, dependendo do caso, mera retração ao ataque talvez perigoso; o nosso ataque. Quando não ferimos, é por amor de nós mesmos que não o fazemos. Ferir o Outro pode, dependendo do caso, doer muito mais em nós. A isto se dá, e sem nenhuma pele, o nome de prudência.

__________

* É o que propõem mostrar os vários autores do livro As raízes da Sabedoria. São Paulo: Edições Paulinas, 1983. 86 p. (Col. Cadernos Bíblicos, 28).
** Neste sentido, ver: GILBERT, Maurice; ALETTI, Jean-Noël. A Sabedoria e Jesus Cristo. São Paulo: Edições Paulinas, 1985. 101 p. (Col. Cadernos Bíblicos, 32).
*** Plutarco nasceu por volta de 47 d.C., na cidade grega de Queronéia, na Beócia. Estudou filosofia, matemática, medicina e retórica; viajou pela Ásia e pelo Egito, e esteve várias vezes em Roma. De volta à Grécia, em 95, foi incorporado ao colégio sacerdotal de Delfos. Já próximo de sua morte, em 120, ocupou altos cargos municipais. É considerado um dos principais pensadores de seu tempo, e um dos primeiros moralistas (no sentido moderno do termo), tratando friamente sobre as paixões, sobre os costumes, os vícios e as virtudes dos homens – admirado por autores como Schakespeare, Corneille, Schiller, e influenciando aquele que é, certamente, o maior de todos os moralistas modernos: Michel Eyquem de Montaigne.
**** Os Padres criam haver uma participação do Cristo (e por Cristo) em cada uma das virtudes, e não faziam distinção (como os escolásticos, depois) entre as virtudes “naturais” e as “sobrenaturais”. Quase todos aceitavam e explicavam àmiúde a divisão que Platão (Polit., 439a s) fizera às quatro virtudes cardeais: 1) a prudência que aperfeiçoa o logistikón, a mente; 2) a coragem que é a força do thymoeidés, apetite irascível contra o mal; 3) a temperança, que resiste ao epythymetikón, a concupiscência; 4) a justiça, que harmoniza em sua justa proporção o exercício das virtudes precedentes.



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