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Da polidez do polido
Quinta-feira, 28 de julho de 2011. O odiado rosto de Fábio Pereira de Souza aparece em todos os noticiários da cidade de João Pessoa, capital da Paraíba. “Mas, como pode?” Helena me pergunta. “Esse homem é casado, pai de três meninas, e dava palestras contra drogas nas igrejas evangélicas e...” E Helena está mesmo chocada. Acontece que a polidez, dentre as virtudes, como diz Comte-Sponville, “é a primeira e [...] também a mais pobre, a mais superficial, a mais discutível”. Sim: por trás de pessoas muito polidas também podem estar escondidas as pessoas mais imorais que se pode conhecer. Para o tanto de polidez, o mesmo tanto de perigo referente à bestialidade imoral. “A polidez faz pouco caso da moral, e a moral da polidez”, ainda Comte-Sponville. Fábio, dono de uma boa aparência, apresentava o falso nome de Abner Machado Pereira Neto e, como se soube, era carioca, e publicitário. Quinze meninas, das que o reconheceram, foram as suas vítimas. Uma delas, de apenas 13 anos, está grávida da... besta humana.
..........Sábado, 18 de setembro de 2010. Estou em frente ao Clube Cabo Branco, no bairro do Miramar, em João Pessoa, bebendo de bem com os amigos. De um carro coberto de adesivos, desce o piancoense Antônio Petrônio de Souza, mais conhecido como Toinho do Sopão. Ganhou o nome por distribuir sopa na Lagoa (Parque Sólon de Lucena, no Centro da cidade). Ele vem ao nosso encontro, contando piadas e entregando “santinhos”. “Populista o cara, meu!”, penso. Toinho, na época, era candidato a uma vaga de deputado estadual, pelo Partido Trabalhista Nacional (PTN). “Meu voto é seu!”, diz um nosso amigo, entusiasmado, e para, penso, ver-se livre do candidato. 31 de outubro, 20:00. Dentre os 36 candidatos eleitos, Toinho, sem estrutura de campanha e sem qualquer tradição política, é o mais votado, chegando à incrível marca de 57.592 votos. Os 2,90% de todos que o escolheram, colocaram-no em um primeiro lugar absoluto. O resultado dava-lhe o título de deputado mais votado no Estado, em todas as eleições para o parlamento estadual. Antes de haver o segundo turno, para Governador, Toinho traiu seus eleitores e rebelou-se contra seu partido, declarando apoio ao candidato oposicionista, dizendo jocosamente que votaria naquele que mais “engrossasse o caldo da sua sopa”. Depois de outros tantos desentendimentos e reviravoltas, Toinho agora mostra a que veio – principalmente depois de dizer que o salário que o Governo estadual dava à sua mulher, de R$ 3.500, era uma “esmola”: “Eu tinha esmola, deram um gerenciamento para minha esposa de três mil e pouco.” Quem, do “povo”, no Brasil, hoje, ganha tal “esmola”? Seja como for, o “polido” Toinho continua fazendo pose de “candidato do povo”, e atualmente é candidato à prefeitura da cidade.
..........30 de julho de 2004. O cineasta indiano, naturalizado estadunidense, M. Night Shyamalan, vê a estreia de A vila (The village), seu mais novo filme, do qual também é roteirista – embora as acusações de que tenha feito plágios (e não seria a primeira vez) de A hundred yards over the rim (um episódio da série “The Twilight Zone”, 1961) e Running out of time (livro de Margaret Peterson Haddix, classificado como Young-Adults, em 1995). No filme, ambientado em 1897, os habitantes (60 pessoas) de uma vila rural, isolada do resto do mundo, na Pensilvânia, parecem felizes... Não são. A polidez de seus líderes (prefeito, pastor, et cetera) é uma mentira, como também são os monstros que habitam a floresta de Covington. A vila é uma metáfora sobre a ignorância e o conhecimento, sobre a polidez dos líderes que, por carisma ou por força, dizem aos mais jovens: “Vocês não devem ir por aí, além dos limites que estabelecemos.” “Aqueles de quem não mencionamos” podem ser muitas coisas: 1) a estupidez dos que dizem que “religião é coisa que não se discute”, no sentido de: “aceite, obedeça, não pense, se cale”; 2) o reverente e temeroso silêncio dos que acreditam nisso; 3) a estupidez dos que acreditam que “político é assim mesmo: tudo ladrão!”, não enxergando isto como cumplicidade e legitimação da corrupção funcional; 4) a covardia nada anômala dos que trocam suas dignidades por minúsculos benefícios, oferecidos por minúsculas criaturas; 5) a imbecilidade dos que vendem suas liberdades individuais pelo baixo valor da preguiça: de pensar por si mesmo, questionar leis e governos, ir atrás de informações e interpretações que não as oferecidas pelo mainstream, pela Indústria Cultural, et cetera. Todas as criaturas vis, grosso modo, estampam a polidez como uma fachada larga e iluminada, com o fito de esconderem a podridão que fermentam – como os pomposos túmulos revestidos de mármore. Um canalha polido não é em nada menos ignóbil que outro; é provável que seja até mais que este. “A Polidez só dá aparência de moralidade e honestidade, mas não nos eleva a elas. Não há diferença entre um assassino, seja ele polido ou não. Contudo, o polido choca muito mais, torna-se mais detestável justamente por esconder-se atrás da polidez”, afirma Jair Antônio Pauletto. O fundamentalismo carece da polidez, depende dela. Enquanto termo, o fundamentalismo tem sua origem no Ocidente cristão: como fruto e consequência do que se convencionou chamar de Modernidade. Foi no Ocidente que os maiores fundamentalistas, filhos queridos do Romantismo, vingaram – em oposição aos Ilustrados e Liberais. Durante o período Romântico (século XIX), contemporâneo do Colonialismo (até a primeira metade do século XX), os fundamentalistas cristãos exportaram suas ideias aos continentes colonizados pelas potências do Atlântico Norte.
..........11 de setembro de 2001. Após os atentados ao World Trade Center, em Nova York (o coração financeiro norte-americano) e ao Pentágono, em Washington (o coração militar norte-americano), a temática do fundamentalismo voltou a ser atual. Aos fundamentalistas islâmicos, acusados do atentado, os Estados Unidos eram a casa de Satã. George Bush, em retaliação aos mesmos, promete “eliminar o mal deste mundo”; e a Rede Globo de televisão, no Brasil, somente se reportava aos membros da Al-Qaeda (“A Base”, “O Alicerce”) como “o terror”. Seu líder, Osama Bin Laden, tornou-se o homem mais procurado da face da terra; e nenhuma cabeça valeu tanto quanto a sua, viva ou morta. O mesmo Osama que, no tempo em que Hollywood filmava Rambo 3 (1988)*, era o melhor dos rebeldes afegãos – que eram, nas palavras de Ronald Reagan: “Heróis semelhantes aos pais fundadores dos Estados Unidos da América do Norte.” Os mesmos que, dez anos depois, já eram reputados como “o mal deste mundo”.
..........11 de setembro de 1973. 28 anos antes do WTC, o palácio presidencial de Santiago do Chile, por ordem de general Pinochet (Augusto José Ramón Pinochet Ugarte), está ardendo em chamas, após o bombardeio. Em outubro de 2008, quando estive por lá, pude ver fotos de como tudo ficou, e objetos dos tempos da ditadura. Entre os tais, os óculos de Salvador Allende, quebrados pelo balaço que ele tomou na cabeça – outros dizem que ele suicidou-se, para evitar a humilhação que o exército, rebelado, vendido aos EUA, lhe poderia infligir... como ocorreria ao grande Victor Jara (Víctor Lidio Jara Martínez), cinco dias depois, covardemente assassinado. Do atentado contra Allende, Henry Kissinger (Heinz Alfred Kissinger), diplomata americano de origem judaica, disse ter sido uma coisa boa, afinal, o Chile “se havia tornado marxista em decorrência da irresponsabilidade de seu povo.” De fato, e como diz Martin N. Dreher: “Todos os fundamentalistas se parecem: os religiosos e os do mercado. Os religiosos porque vivem dos dogmas da fé; os do mercado porque, para eles, o mais importante são as leis que regem a compra e a venda de seus produtos. Desprezam vidas humanas. O trágico é que, enquanto desprezam vidas humanas, fazem-no em nome da Verdade Única.”
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..........Nos ataques e retaliações, todos têm razão, todos são inocentes, todos são culpados, todos são santos, todos são demônios. Por trás de cada ação moral ou imoral, o Eu de cada líder ostenta e quer preservar a imagem da polidez. Por amor ao bem comum e à Verdade que acreditam conhecer e defender, são capazes de matar, são capazes de morrer; por puro altruísmo, por desapego à vida em favor da pátria, do povo, por Deus. No final das contas, vivendo ou morrendo, é por eles mesmos que eles morrem, ou vivem. E se alguém pensa que não é líder de nada, nem de ninguém, não pode escapara de ser o seu próprio líder. A polidez, virtude pequena, desvela e encobre “o ‘eu’ por trás de nós, oculto”, e muito maior – como Emily Dickinson diz. Sim, este EU, muito maior, é “muito mais assustador”; e tanto que, “um assassino escondido em nosso quarto, dentre os horrores, é o menor.”
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* Conforme o Livro Guinnes dos Records (1990), este é o filme mais violento já produzido por Hollywood, com um total de 221 atos de violência e 108 mortes.