terça-feira, 29 de maio de 2012


2.





Do amor entre Meursault e Marie, n’O estrangeiro (de Camus)



Aquele que se deixa prender por uma alegria / Rasga as asas da vida / Aquele que beija a alegria enquanto ela voa / Vive no amanhecer da Eternidade.
– William Blake*


A morte está no início, no meio e no fim de O estrangeiro (L’étranger), de Albert Camus – que Roland Barthes diz ser “o primeiro romance clássico do pós-guerra”, e Manuel da Costa Pinto, à edição brasileira da BestBolso1, apresenta-o como “um dos livros mais enigmáticos da literatura francesa do século XX, [...] assimilado às vanguardas”2, etc. O estrangeiro, juntamente com O mito de Sísifo (Le mythe de Sisyphe), do mesmo ano, e a peça Caligula (1941), formam a “trilogia do absurdo” (ou ciclo, como é mais comum).
De fato.
O início do primeiro parágrafo da “Parte I” dá o tema: “Hoje, mamãe morreu. Ou talvez ontem. Não sei.3” E o que segue, a cada começo dos capítulos, mantém o mote da gratuidade da vida, da inevitabilidade da morte, da contemplação do vazio de sentido assomado ao metodismo complacente de um homem como Gregor Samsa, personagem d’A metamorfose (Die Verwandlung, 1915) – tão bem referenciado no início do capítulo 2 da Parte I, em que Meursault é um reflexo estendido de Samsa: “Ao acordar compreendi por que meu patrão se mostrara aborrecido quando lhe pedi meus dois dias de licença: hoje é sábado. [...] Mas, por um lado, não é culpa minha se enterram mamãe ontem em vez de hoje...4” O “estrangeiro”, aí, é “o estranho”, em referência àquele sentimento que se tem diante do mundo e do Outro: de distanciamento e inadequação, algo próximo ao outsider de Norbert Elias5. Uma estranheza que também é notada em Kafka, n’O processo (Der Prozess, 1925): “Em O processo”, Camus afirma, “Joseph K. é acusado. Mas não sabe de quê. Ele por certo quer se defender, mas ignora por quê.6” Também Meursault, que sabe o motivo, mas não o porquê do motivo. Assim, não há o que dizer além da verdade, que parece absurda e digna de riso. Quando convocado a falar em sua defesa perante o juiz e as testemunhas, depois de ser acusado de indiferente (à morte da mãe), assassino frio e calculista e imoral, segundo os pios valores cristãos, somente pode afirmar “rapidamente, misturando as palavras, que fora por causa do sol. Houve risos na sala.7” E por toda a parte, durante o julgamento, Meursault diz e rediz não entender o que se passa, ou por que se passa assim. Sua obstinação, bem como a consciência de seu crime, não tem uma natureza moral, de algum arrependimento; é, antes, fortalecida pela presença de um enfado acerca de tudo, que é absurdo e gratuidade... e c’est la vie. Não que ele quisesse morrer, não; mas a morte era inevitável, agora ou depois, daqui a vinte anos. E, se já, que diferença faria?, que importância o tempo a mais, excedente, traria? “Todos sabem que a vida não vale a pena ser vivida”8, ele diz. “No fundo, não ignorava que tanto faz morrer aos trinta ou aos setenta anos, pois em qualquer dos casos outros homens e outras mulheres viverão, e isso durante milhares de anos. Afinal, nada mais claro. Hoje, ou daqui a vinte anos, era sempre eu que morria.9” Viver não é uma dádiva, mas uma realidade fatal. Não há saída. Ele lembra-se (final do capítulo 2 da Parte II) do que conversara com a enfermeira, durante o enterro de sua mãe: “Não, não havia saída, e ninguém pode imaginar o que são as noites nas prisões.10” Na referida (final do capítulo 1 da Parte I): “Se andamos devagar, arriscamo-nos a uma insolação. Mas se andamos depressa demais transpiramos e, [ao pararmos, à sombra], apanhamos um resfriado.11” “Tinha razão”, ele concorda com a enfermeira. “Não havia saída”.
É durante os dias que se arrastam pelo seu julgamento que ele, do banco dos réus, lembra-se “que durante todo o processo não tinha procurado uma única vez Marie com o olhar. Não a tinha esquecido, mas tinha estado muito ocupado.12” Como? Que ocupação? Meursault estava preso e sua única ocupação era pensar e comparecer aos julgamentos, aos quais era obrigado, e arrastado. Não havia ocupação, apenas a letargia sentimental estrangeira, jogando-o para longe de tudo e de todos. Meursault é o homem absurdo d’O mito de Sísifo: sem justificativas à moral, a Deus ou ao romantismo: “O homem absurdo só pode admitir uma moral, aquela que não se separa de Deus: a que se dita. Mas ele vive justamente à margem desse Deus. Quanto às outras morais (incluo também o imoralismo), o homem absurdo não vê nelas senão justificativas, e não há nada a justificar.13” Sim, e é o que explica a sua indiferença diante do juiz que lhe podia livrar da morte, que

Bruscamente, levantou-se, dirigiu-se com grandes passadas para a extremidade da mesa e abriu a gaveta de um arquivo. Tirou um crucifixo de prata que brandiu na minha direção. E com uma voz completamente alterada, quase trêmula, gritou:
– Será que conhece este aqui?
– Sim, é claro – respondi.
Disse-me, então, muito depressa, e de modo apaixonado, que ele acreditava em Deus, que tinha convicção de que nenhum homem era tão culpado para que Deus não o perdoasse, mas que para isso era necessário que o homem, pelo seu arrependimento, se transformasse como que numa criança, cuja alma está vazia e pronta para acolher tudo.14

 Meursault é também um Kierkegaard que, à sua maneira, não consegue dar o salto da fé15... e nem o deseja. Tanto que, quando o padre capelão vem ter com ele, pouco antes de ele ser conduzido à guilhotina, continua irredutível, considerando essa conversa como mais um enfado desnecessário. Por ele, ou contra ele, chega à sua reação mais violenta – pois consciente, sem a embriaguez daquele sol –, que descreve: “Queria continuar a me falar em Deus, mas eu avancei para ele e tentei explicar-lhe, pela última vez, que já não dispunha de muito tempo. Não queria perde-lo com Deus. [O capelão] tinha um ar tão confiante, não tinha? No entanto, nenhuma das suas certezas valia um cabelo de mulher...”16
... uma mulher como Marie, por exemplo, Marie Cardona. A “Marie que”, ele diz, “queria que eu me casasse com ela.17” A mesma Marie que ele havia esquecido, divagando sobre tudo o que fizera, e sobre a sua vida na prisão e sobre a condição miserável que é viver, e morrer... ou viver para morrer. Não, não era um esquecimento proposital, somente um hiato anômico entre ama última visão e esta, nova: “Eu a vi entre Céleste e Raymond. Fez um pequeno sinal, como se dissesse ‘enfim’ e vi sorrir seu rosto um pouco ansioso. Mas sentia o coração fechado e nem sequer fui capaz de corresponder a seu sorriso.18” “O absurdo não liberta, amarra” – está n’O homem absurdo19. E: “Se amar bastasse, as coisas seriam simples. Quanto mais se ama, mais se consolida o absurdo.20” À Marie, porém, ele nunca amou; nunca pode ir a tanto.
Marie. Quem era Marie?
Meursault a conheceu no dia seguinte ao enterro de sua mãe, na praia – e isso lhe foi imputado negativamente diante do juiz e de todos do/no tribunal. Era um domingo de sol em Marengo. Ele fazia a barba, pensando sobre o que poderia fazer por ali, antes de voltar para Argel, e para o refúgio tranquilo do seu emprego.

[...] decidi tomar um banho de mar. Uma vez lá, mergulhei no canal. Havia muitos jovens. Na água encontrei Marie Cardona, uma antiga datilógrafa do escritório que eu desejara na época. Ela também, creio eu. [...] Ajudei-a a subir numa boia e, nesse movimento, rocei os seus seios. Eu estava ainda na água quando ela já se deitara na boia, de bruços. Virou-se para mim. Os cabelos caiam-lhe nos olhos e sorria. Ergui-me até ficar ao seu lado. O tempo estava bom e, de brincadeira, deixei cair a cabeça para trás e encostei-a na sua barriga. Não reclamou, e eu fiquei assim. Tinha o céu inteiro nos olhos, e ele estava azul e dourado.21

Combinam ver, à noite, um filme de Fernandel (Fernand Joseph Désiré Contandin), no cinema. Lá, ele a beija, de modo desajeitado. Ela acaba indo à sua casa, depois. Conversam, transam, dormem. Quando ele acorda, ela já saiu. Ele lembra que ela havia falado em visitar uma tia. “Então, virei-me na cama, busquei no travesseiro o cheiro de sal que os cabelos de Marie tinham deixado...22” Daí em diante, estará sempre se encontrando com ela. Como no sábado da semana seguinte. Ela está em um vestido de listras vermelhas, e sandálias de couro; ele a deseja profundamente, adivinhando seus seios firmes e queimados pelo sol da praia, que têm em sua imaginação o aspecto de uma flor. Decidem ir à praia novamente, a alguns quilômetros de Argel. “Marie chegou perto, então, e colou-se a mim na água. Colocou a boca contra a minha. A língua dela refrescava-me os lábios, e rolamos por instantes nas ondas.23” Ela o encara com os olhos brilhando, está apaixonada. Apressam-se a encontrar um ônibus para voltarem à casa dele, e à sua cama. Transam, cansam-se, depois descansam nus sobre a cama, enquanto a noite de verão escorre por seus corpos bronzeados. Ela decide ficar com ele até a manhã; quer fazer-lhe o almoço. Ele sai para comprar carne. Quando retorna, ela

Estava com um dos meus pijamas, do qual arregaçara as mangas. Quando riu, voltei a sentir desejo por ela. Instantes depois perguntou-me se eu a amava. Respondi-lhe que isto não queria dizer nada, mas que me parecia que não. Ficou com ar triste. Mas ao preparar o almoço e a propósito de nada, voltou a rir, de tal forma que eu a beijei.24

Na semana seguinte, é Marie quem vai buscar Meursault e, novamente, pergunta se ele quer casar-se com ela. “Disse que tanto fazia, mas que se ela queria, podíamos nos casar.” Ela quer saber se ele a ama. “Respondi, como aliás já respondera uma vez, que isso nada queria dizer, mas que não a amava.” “Nesse caso”, ela pergunta, “por que se casar comigo?” “Expliquei que isso não tinha importância alguma e que, se ela o desejava, nós poderíamos casar. Daí a pouco é ela quem se pergunta se o ama; disso, porém, ele nada pode saber, ou dizer. Ela diz que ele é uma pessoa estranha e que, talvez por isso mesmo o amasse, “mas que talvez um dia, pelos mesmos motivos, eu a decepcionaria.25” Ele fica calado. Ela o abraça e, sorrindo, declara que quer, sim, casar-se com ele.
No domingo seguinte, com Marie e em companhia de amigos (Raymond, Masson e sua mulher, uma francesa), Meursault terá momentos alternados entre a alegria e a embriaguez sangrenta do sol cegante. Na praia, envolve-se em uma briga com alguns árabes, inimigos de Raymond. Depois que tudo parece haver se resolvido, ele retorna à praia, sozinho e armado com um revólver que pertence a Raymond. Encontra o árabe que havia ferido seu amigo, e em um momento de tensão e delírio, mata-o.

Compreendi que destruíra o equilíbrio do dia, o silêncio excepcional de uma praia onde havia sido feliz. Então atirei quatro vezes ainda num corpo inerte em que as balas se enterravam sem que se desse por isso. E era como se desse quatro batidas secas na porta da desgraça.26

Não poderia estar mais certo.
Somente depois de muitos dias é que verá Marie, que não pode visitá-lo antes, por não ser sua mulher. Na vez em que ela consegue, conversam pouco, em um ambiente tumultuado e confuso. “Você vai sair depressa”, ela lhe diz, “e vamos nos casar.27” Ele não tem a mesma esperança. É quando se lembra da conversa com a enfermeira, no dia do enterro da mãe: não há saída; não há esperança. Os repórteres aumentam as proporções do seu caso, para que os jornais vendam mais. O testemunho de Marie não ajuda muito, muito ao contrário: o banho de mar, o cinema, a ida à casa dele, um dia após o falecimento da mãe, que abandonara no asilo. Meursault, cada vez mais e aos olhos de todos, torna-se um monstro – uma barata enorme. Não há esperança; não há saída.
Da sala pequenina que “cheira à escuridão”, quase pode ouvir sua sentença; que ouve agora, nitidamente, ao ser reintroduzido na sala do julgamento. É condenado à morte por guilhotina. Sua cabeça seria cortada “numa praça pública em nome do povo francês”. Perguntam-lhe se ele quer dizer alguma coisa: “Não.” É a sua resposta28. A única que pode ser.   
Enquanto o dia não chega, as horas se arrastam, e Marie some. Ele lembra-se de lembrar-se dela:

Pela primeira vez em muito tempo pensei em Marie. Havia muitos dias que não me escrevia mais. Naquela noite, pensei muito e disse a mim mesmo que ela talvez se tivesse cansado de ser amante de um condenado à morte. Veio-me a ideia de que ela talvez estivesse doente ou morta. Era a ordem natural das coisas. Como poderia eu saber, aliás, já que, além dos nossos corpos agora separados, nada nos ligava, nada nos lembrava um ao outro. A partir desse momento, a lembrança de Marie me passaria a ser indiferente. Morta, deixaria de me interessar. Achava isso normal, assim como compreendia muito bem que as pessoas me esquecessem depois da minha morte.29

No acesso de fúria que tem contra o padre, quando lhe pega pelo colarinho, Marie ainda é uma lembrança dolorosa, a “Marie que queria que eu me casasse com ela”, diz ao capelão. “Que importava que ela oferecesse hoje a boca a um novo Meursault?30” Não havia mais esperanças; não havia mais tempo; não havia mais nada. Mas isso tudo, afinal, não era lá uma coisa realmente muito importante. A cólera, porém, foi. Foi a sua última investida contra algum sentido da/na vida – que ele poderia desejar, e que jamais poderia ter. Seu prêmio foi o repouso tranquilo na terna indiferença do mundo. “Por senti-lo tão parecido comigo, tão fraternal, enfim, senti que tinha sido feliz e que ainda o era. Para que tudo se consumasse, para que me sentisse menos só, faltava-me desejar que houvesse muitos espectadores no dia da minha execução e que me recebessem com gritos de ódio.”31
O amor de Meursault por Marie, como o amor pela vida, não tem mais importância nenhuma, nunca teve. O desejo de amar e ser amado, se vai além do desejo sexual, é um sentimento estrangeiro, um absurdo.




*  “He who binds to himself a joy / Does the winged life destroy / But he who kisses the joy as it flies / Lives in eternity's sun rise.” (BLAKE, William. Eternity. In: HOWARD, John. Infernal poetics: poetic structures in Blake’s Lambeth prophecies. Cranbury, NJ: Fairleigh Dickinson Univ. Press, 1984. p. 102).
1 Selo da editora Best Seller, do Grupo Editorial Record, de São Paulo.
2 PINTO, Manuel da Costa. Prefácio à edição de bolso O estrangeiro, tragédia solar. In: CAMUS, Albert. O estrangeiro. 2. ed. Rio de Janeiro: BestBolso, 2010a. p. 5. Publicado em 1942 (antes da Segunda Guerra), O estrangeiro tem como cenário a cidade de Argel, terra natal do escritor, lugar onde viveu durante alguns anos e onde começou sua carreira de escritor e jornalista.
3 CAMUS, 2010a, p. 13.
4 CAMUS, 2010a, p. 25. E, no início d’A metamorfose, de Kafka: “Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso. [...] – O que aconteceu comigo? – pensou. Não era um sonho. [...] Samsa era caixeiro viajante. [...] O olhar de Gregor dirigiu-se para a janela e o tempo turvo – ouviam-se gotas de chuva batendo no zinco do parapeito – deixou-o inteiramente melancólico. – Que tal se eu continuasse dormindo mais um pouco e esquecesse todas essas tolices? – pensou, mas isso era completamente irrealizável, pois estava habituado a dormir do lado direito e no seu estado atual não conseguia se colocar nessa posição. [...] – Ah, meu Deus! – pensou. – Que profissão cansativa eu escolhi. Entra dia, sai dia – viajando.” (KAFKA, Franz. A metamorfose. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 7-8). 
5 Cf. ELIAS, Norbert. The Established and the Outsiders: a sociological enquiry into community problems. Londres: Frank Cass & Co, 1965.
6 CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Rio de Janeiro: Edições BestBolso, 2010b. p. 127.
7 CAMUS, 2010b, p. 95.
8 CAMUS, 2010a, p. 103. Ou, como no tema central d’O mito de Sísifo: “Só existe um problema filosófico realmente sério: o suicídio. Julgar se a vida vale ou não vale a pena ser vivida é responder à pergunta fundamental da filosofia.” (CAMUS, 2010b, p. 19). “Viver, naturalmente, nunca é fácil.” (CAMUS, 2010b, p. 21).
9 CAMUS, 2010a, p. 103.
10 CAMUS, 2010a, p. 78.
11 CAMUS, 2010a, p. 24.
12 CAMUS, 2010a, p. 97.
13 CAMUS, 2010b, p. 73.
14 CAMUS, 2010a, p. 67.
15 “Não posso realizar o movimento da fé, não posso cerrar os olhos e lançar-me de cabeça, pleno de confiança, no absurdo; tal coisa é impossível, mas não me vanglorio por isso.” (KIERKEGAARD, Sören. Temor e tremor. Lisboa: Guimarães Editores, 1990. p. 47).
16 CAMUS, 2010a, p. 108. E, logo adiante: “Do fundo do meu futuro, durante toda esta vida absurda que eu levava, subira até mim, através dos anos que ainda não tinham chegado, um sopro obscuro, e esse sopro igualava, à sua passagem, tudo o que me haviam proposto nos anos, não mais reais, que eu vivia. Que me importavam a morte dos outros, o amor de uma mãe, que me importavam o seu Deus, as vidas que as pessoas escolhem, os destinos que as pessoas elegem, já que um só destino devia eleger-me a mim próprio e comigo milhares de privilegiados que, como ele, se diziam meus irmãos.” (CAMUS, 2010a, p. 109).
17 CAMUS, 2010a, p. 109.
18 CAMUS, 2010a, p. 97.
19 CAMUS, 2010b, p. 74.
20 CAMUS, 2010b, p. 75.
21 CAMUS, 2010a, p. 25.
22 CAMUS, 2010a, p. 26.
23 CAMUS, 2010a, p. 39.
24 CAMUS, 2010a, p. 40.
25 CAMUS, 2010a, p. 46.
26 CAMUS, 2010a, p. 60.
27 CAMUS, 2010a, p. 73.
28 CAMUS, 2010a, p. 98.
29 CAMUS, 2010a, p. 104.
30 CAMUS, 2010a, p. 109.
31 CAMUS, 2010a, p. 110.


domingo, 27 de maio de 2012


Livro 2


Em que o autor oferece grande somatória de exemplos – históricos, filosóficos e literários, principalmente literários – que (de)mostram como o amor romântico foi engendrado sob o peso moral do idealismo platônico, assumido pela cultura da cristandade ocidental, principalmente – e que teria, psicologicamente, maquiado o mecanismo biológico-natural (feio e cru), que é a Vontade de vida, a Pulsão, o sexo puro.




1.





Da condição humana, ou: Da sua eterna contradição



“[o Diabo] voou de novo ao céu, trêmulo de raiva, ansioso de conhecer a causa secreta de tão singular fenômeno. Deus ouviu-o com infinita complacência; não o interrompeu, não o repreendeu, não triunfou, sequer, daquela agonia satânica. Pôs os olhos nele, e disse-lhe: – Que queres tu, meu pobre Diabo? As capas de algodão têm agora franjas de seda, como as de veludo tiveram franjas de algodão. Que queres tu? é a eterna contradição humana.”
É um trecho de “A igreja do Diabo”, de Machado de Assis1.
Dentre outras, no conto, há a ideia de que, para que os homens sobrevivam, é preciso que algo os desafie constantemente – para que desejem encontrar algum sentido nos tantos sem-sentidos do mundo. Em outras palavras: é preciso que estejamos insatisfeitos, eternamente insatisfeitos. Se entre os homens houvesse apenas o mal, o mal absoluto, então eles haveriam de inventar o bem, para fazer frente ao mal e, assim, darem sentido à própria existência do mal, à sua condição. Mas isso de haver algum bem onde somente há o mal, é um grande contrassenso. É que o mal, absoluto, não toleraria a concorrência, nem dependeria dela. Havendo o bem, porém, a coisa poderia diferente – se ele não fosse, também, elevado à categoria de “absoluto”. O problema, como se vê, são os absolutos.  
Por quê?
Porque o bemjustamente por ser o bem, poderia muito bem suportar a existência do mal, e aí, apesar de tudo, ver algum bem, alguma “boa finalidade” – desde que não esteja, como já dito, elevado à categoria de “absoluto”. Se assim não fosse, como falar da fé em Deus, por exemplo?, ou do amor? Impossível. A postulação da ideia da existência de um bem absoluto é, nesses termos, auto-aniquilacionista, autocontraditória.
O mal, sem os objetos aos quais possa administrar as suas maléficas maldades, seria o mesmo que o bem. E o mal somente pode atingir aquilo em que ainda não está o mal, administrado. Pois, se o mal castigasse o mal, então ele estaria fazendo o trabalho do bem; logo, agindo como se fosse o próprio – uma contradição à sua condição. O mal exige o bem, carece dele – para poder existir como contraparte. O bem, porém, como careceria do mal sem que, nisso, também portasse a uma parcela de maldade? A ideia do bem em seu sentido absoluto escapa a qualquer juízo a posteriori, está para além de qualquer análise fundamentada na razão. Isso vale, certamente, para os objetos de fé. “A expressão começa onde o pensamento acaba”, Albert Camus dizia n’O mito de Sísifo2. Posso substituir o substantivo feminino “expressão” por “fé”, sem prejuízos, e com equivalente lucidez.
Do mesmo modo, por outro viés, são as coisas do amor romântico (ideal). Quem, em sua teimosia, acredita na possibilidade de um amor perfeito, acredita que é possível transpor, em abissais saltos ontológicos, as barreiras das análises a posteriori (i.e. do real), repousando no Amor, fundamento último. Esse ou essa, mesmo que não saibam, crentes nas coisas do amor ou da fé – em suas aporias e paradoxos mais profundos –, agarram-se ao apriorístico discurso da própria fé. A fé é um escandaloso absurdo (Camus), um grande paradoxo (Kierkegaard)3.
Sentimento, aqui, de nada vale – para o fundamento discursivo-demonstrativo requerido.
Mas, veja só: é pelo sentimento que se morre; ou, antes, pela ideia de amor àquilo que se acredita verdadeiro. Ah!... Ninguém, no fundo, morre pela verdade. Os martírios, todos eles, não têm outro fundamento senão o sentimento (sobre a verdade ou o erro) ou a dúvida (sobre a verdade ou o erro); e é sempre o meu sentimento, a minha dúvida. Quando alguém “morre por outro”, e por si mesmo que morre; e quando não chega a morrer, mas padeça no sofrimento (também por outrem), é por si mesmo que sofre. Tudo é sentimento – nada é certeza... a não ser a certeza da incerteza – e insatisfação. Essa é, queiram ou não, meus senhores e minhas senhoras, a eterna condição humana, a sua eterna contradição.





1 ASSIS, Machado de. A igreja do Diabo. In: _____. Contos. São Paulo: Paz e Terra, 1996. p. 106. (Col. Leitura).
2 CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Rio de Janeiro: Edições BestBolso, 2010. p. 101.
3 O paradoxo da fé é, em Kierkegaard, apresentado na figura de Abraão: “E houve grandes homens pela sua energia, sabedoria, esperança ou amor – mas Abraão foi o maior de todos: grande pela energia cuja força é fraqueza, grande pelo saber cujo segredo é loucura, pela esperança cuja forma é demência, pelo amor que é ódio a si próprio.” (KIERKEGAARD, Sören. Temor e tremor. Lisboa: Guimarães Editores, 1990. p. 31). “O cristianismo”, Camus afirma, “é o escândalo, e o que Kierkegaard pede com simplicidade é o terceiro sacrifício exigido por Inácio de Loyola, aquele com o qual Deus mais se delicia: 'o sacrifício do Intelecto.' Esse efeito do 'salto' é bizarro, mas não deve nos surpreender mais. ele faz do absurdo o critério do outro mundo, enquanto não passa de um resíduo da experiência deste mundo. 'Em seu fracasso', diz Kierkegaard, 'o crente encontra [como em Abraão] o seu triunfo'.” (CAMUS, 2010, p. 47).

quarta-feira, 16 de maio de 2012


67.






Da morte e do morrer



22 de agosto de 2005, auditório do Instituto Goethe, Porto Alegre. Estou em uma palestra do maior filósofo alemão ainda vivo, depois de Habermas: Ernst Tugendhat. Tugendhat fala sobre os problemas de uma moral autônoma, e sobre a morte:
– Nosso medo da morte: talvez eu tenha dito demais, ao falar de nosso medo da morte – ele diz, introduzindo o seu tema. – Eu queria ao menos indicar que eu também tenho medo da morte. Há pessoas que dizem que não têm medo da morte. Será que isso significa que elas não conhecem esse medo ou será que querem dizer que se desviam desse medo ou o superaram? Abordarei, no final desta palestra, a questão de como se pode superar esse medo; mas, para poder superá-lo, tem-se, primeiramente, de tê-lo. A maior parte da palestra ocupar-se-á com a questão de como deve ser descrito o medo da morte.
A questão me interessa, e seu registo; sou todo ouvidos. Lá pelo meio da palestra, ele diz:
– A vida não pode ser tirada de um sujeito qualquer, pois que senão o tal sujeito deixaria de existir. Não existindo, ele não tem nada a ser tirado, ou que lhe foi tirado - pois algo somente pode ser tirado de alguém que vive. Posso perder um amor, um amigo, mas não posso perder a minha vida. Eu somente poderia perdê-la se continuasse, sem ela, vivendo... Mas isso é um contrassenso, um paradoxo gritante.
O medo dá morte é reflexo do nosso amor à vida, à vida feliz”, penso na mesma hora. Sim, é um pensamento bem simples, e muito evidente. Daí me vem à lembrança um trecho da Carta de Epicuro a Meneceu. Na referida, Epicuro diz ao seu discípulo mais querido:

Acostuma-te à ideia de que a morte para nós é nada, visto que todo bem e todo mal residem nas sensações, e a morte é justamente a privação das sensações. Não existe nada de terrível na vida para quem está perfeitamente convencido de que não há nada de terrível em deixar de viver. Então, o mais terrível de todos os males, a morte, não significa nada para nós, justamente porque, quando estamos vivos, é a morte que não está presente; ao contrário, quando a morte está presente, nós é que não estamos. A morte, portanto, não é nada, nem para os vivos, nem para os mortos, já que para aqueles ela não existe, ao passo que estes não estão mais aqui. E, no entanto, a maioria das pessoas ora foge da morte como se fosse o maior dos males, ora a deseja como descanso dos males da vida. O sábio, porém, nem desdenha viver, nem teme deixar de viver; para ele, viver não é um fardo e não-viver não é um mal.1

Tinha isso assim, muito claro, por causa de um artigo que eu havia publicado no ano anterior, e que tratava justamente sobre o tema da vida feliz na carta de Epicuro, a Meneceu2. Na referida, a questão sobre a morte, e como enfrentá-la, é um dos quatro remédios (Tetrafarmacon) que devem ser “tomados” para a aquisição da eudaimonía, da vida feliz.
Das anotações que fiz na agenda, sobre a palestra de Tugendhat, não há mais nada. Quanto ao meu artigo, citado, termina assim:

Para ser feliz o homem precisa, resumidamente, de acordo com Epicuro: 1) ter amigos3 – não foi por acaso que Epicuro fez de sua casa sua escola, o seu “Jardim” –; precisa 2) ter uma vida analisada, ou seja, uma vida filosoficamente pensada; e precisa, finalmente, 3) ter autossuficiência, ou seja, ser livre, ser capaz de pensar por si mesmo e ter o mínimo necessário para assim viver. A felicidade, portanto, é adquirida mediante essa consciência individual, que é libertadora. A felicidade é uma atitude filosófica diante do mundo.4

Autores contemporâneos como André Comte-Sponville, Luc Ferry, Marcel Conche e Alain de Botton, dentre outros, têm dado destaque a esse lado prático da filosofia, que reclama o pensamento livre das ações que visam recompensas futuras – como a beatitude da/na religião, a cristã-ocidental, especialmente –, centrado na realidade da vida, no cotidiano do homem comum, em que o pensamento, como ensinava Sócrates, deve ser uma preparação para a morte5. Aprender a viver não é tarefa fácil; morrer, idem. Em tudo isso e para tudo isso, a felicidade é, ainda, uma palavra muito comprida.


               


1 EPICURO. Carta sobre a felicidade (a Meneceu). São Paulo: Editora UNESP, 1997. p. 27-9.
2 SALES, Antonio Patativa de. O tema da ΕΥΔΑΙΜΟΝΙΑ na carta de Epicuro a Meneceu. In: Ágora Filosófica: pensamento Antigo-Tardio e Medieval. Recife, ano 4, n. 2, p. 21-32, 2004.
3 A conclusão que Chris McCandless chega (“A felicidade só é real quando compartilhada”), tarde demais, pois prestes a morrer – como se vê em Na natureza selvagem (Into the Wild, 2007), filme de Sean Penn, baseado no livro homônimo, do jornalista Jon Krakauer – é, já, ensinada por Epicuro de Samos (341-270 a.C.).  
4 SALES, 2004, p. 29.
5 PLATÃO. Fédon, 67 d-68b. 


segunda-feira, 14 de maio de 2012


66.






Do lugar em que o Outro habita




Hadassa M. é uma prima querida, que mora em Fortaleza, no Ceará. Veio a João Pessoa em outubro de 2011, participando do II Congresso Nacional de Educação Ambiental (CNEA), na UFPB. Encontrei-me com ela na Philipéia, bebendo um cachimbinho (cachaça, mel e limão) e de papo com amigos e amigas. “Quero te contar uma coisa”, ela havia dito pelo telefone e, tão logo cheguei, contou-me que estava saindo de mais uma relação complicada; dizia também de como isso, pouco a pouco, ia minando a sua fé em, um dia, quem sabe, encontrar alguém que realmente viesse para ficar, e que ela quisesse que ficasse. Mostrou-me um retrato da moça, que trazia na bolsa. “É linda, ela.” Falei, segurando a pequenina fotografia em que as duas aparecem abraçadas, nalgum corredor da UFCE.
– Nós nunca nos livramos dos retratos dos amores findos, ma chère amie. E mesmo quando eles não ficam aí, espalhados por sobre os móveis da sala, aprisionando sorrisos e olhares perdidos na mesma direção – disse, assim entre o poético, a filosofice barata e a tiração de onda.
– Por que isso, hem Pata? Por quêee...?
– Porque o amor quer se prender ao tempo, e à eternidade das fotografias e das flores de plástico... e se prende. Por isso que as coisas não morrem nunca: porque há, sobre tudo, o tempo... e os mundos em que ficamos, os mundos paralelos.
– Ahhh, meu amigo! – ela me abraçou, carinhosa e delicada, como sempre.
Pedi ao Carlos que me servisse uma dose de cachaça, enquanto citava um trecho de “Cabôca do Ciará”, poema de Zé da Luz, para distraí-la um pouco e mudar o mote do rojão:

Tú sôis, morena triguêra,
A cabôca mais facêra
Qui mora no Ciará,
Tú sois um diabo-de-saia
Qui a minha vida atrapaia
Sem querer mi atrapaiá.

Brindamos às esperanças, as dela, e viramos o copo.



quarta-feira, 9 de maio de 2012


65.






Solidão, solidão! (Um jogral existencial)




CAETANO VELOSO
Existirmos, a que será que se destina?...

ALBERT CAMUS
Ah!, a expressão da arte, através do artista! A obra de arte surge da renúncia do raciocínio contra o concreto, que é absurdo, em reação a ele – como fizeram os gregos, contra o trágico do mundo que impera sobre o mundo. Mas a verdadeira expressão artística somente pode começar onde o pensamento houver terminado, e o resultante vazio preenchido pelo não-ser do que é comumente chamado de amor: amor à arte, amor ao Outro, amor a isso e àquilo. Certamente não é ao amor que nos destinamos. Se fosse, tudo seria claro, quente e luminoso. No mundo, e se o mundo fosse assim – claro, quente e luminoso –, não haveria a arte; e se amar bastasse, tudo o mais seria simples, muito simples. O destino de todo homem, na gratuidade absurda do mundo, é a completa, enorme e absoluta solidão...

EMMANUEL LEVINAS
Solidão do ser que é finitude e transcendência, na relação que o lança para além de si, na...

CORO
Solidão!!!

ALBERT CAMUS
Sim!, sim!, oh!, sim! Solidão! Não há saída! Aqui somos, absurdamente, estrangeiros errantes à caça de sentidos que não existem, ou liberdades idealizadas pelo delírio inequívoco da prisão, da vida que é morte... e, a não ser pelo suicídio, não há saída. Há quem prefira, aqui, pensar-se peregrino, cidadão de terras além, para onde deve retornar depois da morte: para a vida eterna e bem-aventurada. E há quem pense que, no Outro, também esteja alguma beatitude, encontrada no bom êxito de uma relação afetiva. Mas, ah!, imaginar a felicidade no encontro com o Outro é, também, absurdo – pois o Outro, como nós mesmos, também padece de ridículos inevitáveis; pois o Outro, como nós, também está vivo.

KARL JASPERS
As questões que realmente valem a pena são as que eu devo responder em minha vida real, sem a visão contemplativa e sem as fantasias. Existir é escolher, e escolher é o dever que me lança à situação-limite, aquela que, com o Outro, também solitário, me une a ele em nossa solidão.

CORO
Solidão!!!

KARL JASPERS
O Outro sou eu-mesmo, que me vejo ao espelho. Aí, diante da visão, decido-me, de-cido. O Outro se tornou o meu reflexo, o mais difuso: distorção do eu-real que nunca volta para mim como é, mas sempre outro-não-eu, com-fuso. Nele, é a mim que me vejo, e de mim-mesmo me perco. A salvação está na transcendência; mas a transcendência, novamente, me força voltar a mim mesmo, que é de onde devo partir. E eis aí, novamente, eu e a minha enorme e triste solidão...

CORO
Solidão!!!

ALBERT CAMUS
Tudo o que me interessa saber é se é possível viver sem as muletas das religiões, ou sem os apelos sobre os sentidos do mundo, para o mundo e contra a... solidão, a quem estamos condenados.

JEAN-PAUL SARTRE
E a liberdade à qual somos condenados evidencia a máxima: a solidão universal do indivíduo! Ser é ser só: para-si, para-o-outro; ser é ser-aí, e o Outro, meu objeto... E pela consciência sei do Nada que me conta histórias de outras consciências lançadas por aí, e solitárias...

CHARLIE BROWN
Solitárias como eu, escondido atrás de um muro, com medo de encarar a garotinha ruiva que passa por ali. Se não me escondo, ela me vê; vendo-me, estarei obrigado à ação: da fala ou do silêncio. Falando, gaguejarei e tremerei, e parecerei infantil e tolo; não falando, serei tomado como arrogante ou mau educado. Queee puxa!, não acredito que isso está acontecendo! Por causa dessas coisas estou sempre perturbado e...

CORO
Na solidão!!! Taran ran ran, tan ran ram… Charles Monroe Schulz e solidão!

OSWALD DE ANDRADE
Na solidão, e contra ela, fui o maior onanista de meu tempo. Comi todas as mulheres do Brasil e, em meu banquete antropofágico, estava sozinho, preso neste corpo que, como as árvores de uma República Federativa, diz “adeus” e morre...  

AUGUSTO DOS ANJOS
“Morrer!” Ah!, essa libertação do homem cativo!, essa cessação do sonho vão que é a vida, elemento cunvulsionador que se opõe ao quietismo sonolento do Eu, e à inércia da alma – a essência pura: a Falta, a podridão do não-Eu, sombra vinda de outras eras, como um fantasma que se refugia na natureza morta...   

OSWALD DE ANDRADE
Eu fui o maior onanista de meu tempo... Comi todas as mulheres, com as mãos; eu às amei em um pensamento febril e delirante...

AUGUSTO DOS ANJOS

Falas de amor, e eu ouço tudo e calo!
O amor na Humanidade é uma mentira.
E é por isto que na minha lira
De amores fúteis poucas vezes falo.

O amor! Quando virei por fim a amá-lo?!
Quando, se o amor que a Humanidade inspira
É o amor do sibarita e da hetaíra,
De Messalina e de Sardanapalo?!

Pois é mister que, para o amor sagrado,
O mundo fique imaterializado
— Alavanca desviada do seu fulcro —

E haja só amizade verdadeira
Duma caveira para outra caveira,
Do meu sepulcro para o teu sepulcro?!*

MARTIN HEIDEGGER
Sim, o homem é uma fermentação para a morte. Somente ele, ser lançado no mundo, é consciente disso e, por isso e mais, é também histórico e temporal: in der welt sein, Dasein, ser-no-mundo e facticidade. Tal facticidade reside no fato de que o homem é antecipação de si mesmo, projetando-se no mundo, e para fora dele. Mas não se deve confundir o ser-no-mundo com a res-posta não negativa de alguma relação com o Nada, contrário ao Ser. Eis aí, na não com-fusão, a esfera da temporalidade do ser. O Eu é enquanto ser-compreensão do si-mesmo histórico-temporal. E o ser consciente de si é também  e somente ele poderá sê-lo, sim!, sim!  consciente da sua solidão...

TODOS
Sim, sim, ó sim! Solidão! Ahhh, solidão!



(Surge um ator fantasiado de Snoopy, sacudindo o rabo e segurando um enorme cartaz colorido em que se lê “FIM”. A plateia fica de pé e aplaude e assovia “Bravo! Bravo!” Lá no fundo, apanhando o casaco e preparando-se para sair, John Fante reclama: Oh, Deu uta me! La stessa filosofia è una scienza colla quale o senza la quale il mondo diventa tale e quale, è vero. Aos poucos o teatro se esvazia, as cortinas se fecham, as luzes se apagam).   





* Augusto dos Anjos, colocado como personagem, cita o seu soneto “Idealismo”, na íntegra. Ver em: ANJOS, Augusto dos. Eu. João Pessoa: Editora Universitária / UFPB, 1999. p. 59. Exceção feita a ele, todas as falas dos demais personagens (autores) são resumos adaptados daquilo que é mais vulgar em seus pensamentos, e no que diz respeito ao tema do jogral.     

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