quarta-feira, 21 de março de 2012

50.





Do amor aos livros



– Publica os teus pensamentos, e a tua doutrina. Assim também outros te poderão seguir, ou julgar a verdade sobre o que dizes.
Um ouvinte de Zaratustra, em meio ao pequenino grupo que o escutava, disse assim, entre o elogio e a zombaria.
– E acaso tu me segues? E acaso Zaratustra procura seguidores, como se fosse o mestre de uma religião? Na sede, não são aos homens que procuram a fonte? E por que eu haveria de plantar oceanos em tantos desertos?, ou escrever livros? Coisa que todo deslumbrado, hoje, pode fazê-lo: bastando, para tanto, dispor de recursos e vontade; o conteúdo interessa menos. E divulgam a estupidez com o rótulo da virtude; e a obviedade viciada como se fosse sabedoria, e a repetição mecânica da imbecilidade coletiva do senso comum carnavalizado como novidade ou brilhantismo. A mim me basta o dizer, e como um sangradouro.   
– Palavras ditas ao vento – alguém afirmou – são como folhas outonais: caem ao sabor do acaso e, depois, desaparecem.
– Palavras escritas – Zaratustra disse – são como os rasgos do formão na pedra que esconde a estátua. Muitos, através deles, obrigam-se à arte de esculpir o próprio rosto, na intenção de uma celebrada permanência através dos séculos. A glória do tolo é o seu próprio delírio, e nada mais.   
– Não deveria haver livros, portanto?
– Eu não diria assim.
– E, como diria?
– Que o grande número de livros ruins não deveria jamais fazer com que as pessoas esquecessem a grandeza dos poucos que são bons. Aqueles que trazem consigo o universo inteiro, e cabemos nele.
– Que mais?
– Que o amor aos bons livros deveria ser medido pelo tanto que os mesmos nos perturbam.
– De fato – alguém, enfim, parecia concordar com Zaratustra –, o comercio da arte da escrita, somado à facilidade que se tem de publicar tudo o que é tido como “literatura”, de todos os gostos e para todos os gêneros, tem transformado tal arte em artifício, publicando tudo aos montões, uma vez que não há critérios nem restrições.
Todos, agora, estavam voltados ao dono de tal discurso. Tão logo ele se calou, todos se voltaram para Zaratustra, que disse:
– Quanto mais se fala ou se escreve, tanto mais se propaga o erro.   
– Mas, se não há quem fale, ou escreva, como é possível a transmissão do conhecimento, ou do progresso?
– Extremismo! É, extremismo! – Alguém entre os ouvintes gritou, agitado e descontente. Imediatamente as vozes se misturaram confusas, entre os concordes e os discordes. Zaratustra ergueu a mão e, depois que todos silenciaram, disse-lhes.
– Extremismos. Aqui é tratado de um erro específico. Talvez, juntamente com a arte de falar, as escolas devessem ensinar a arte de calar. Vede como há falastrões em vossas cidades; e pregadores de doutrinas estranhas em vossas praças; e vendedores de felicidades extramundanas em vossas ruas; e doutrinadores de nuvens em vossas casas... Vede! As bibliotecas de todo o mundo estão repletas das ilusões escritas e impressas em volumes de luxuosos acabamentos, com os seus títulos gravados em ouro. Mas, como nos belos túmulos de mármore, o que eles escondem é sempre o mesmo: a corrupção daqueles que definem o certo e o errado, e o sacrifício necessário pelo prêmio da virtude, na castidade da razão. É uma plêiade de autores que não vão além de Platão, viciados no socratismo insipiente que fundamenta absolutos, e deles depende; os mesmos absolutos que somente podem ser atingidos mediante as ciências da imaginação. Não teria razão, por acaso, o velho Protágoras, dizendo que o homem é a medida de todas as coisas, das que são e das que não são? Sim, tais homens...
– Parece que te esqueces de que também és um homem; ou te julgas superior aos grandes do tempo dourado? – Alguém perguntou, desdenhando.   
– Exatamente! – Zaratustra disse, firmemente. – E, mesmo por isso – concluiu –, não há editores para os meus livros, e nem leitores...
– E nem ouvintes! – Alguém atalhou, interrompendo-o.
Zaratustra fitou-o por alguns instantes, e depois olhou em volta de si. Agora, de fato, restavam bem poucos a ouvi-lo, com suas caras de indiferença e, talvez, alguma curiosidade. Zaratustra, talvez por enfado, talvez por altivez, também decidiu se retirar à sua montanha, levando a sua águia e a sua serpente, e acenando displicente àqueles ainda ali, na praça do mercado. E tudo voltou a ser como era antes, e como sempre é: vazio e absurdo.



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