sábado, 10 de março de 2012

48.





De quando todos estão, basicamente, anestesiados   




Mateus estava louco. Loucasso! Nunca vi alguém viajar tanto por fumar, apenas, maconha. Na hora, não perguntei; depois fiquei pensando se ele também não havia usado “doce”. Vai saber! O que sei com certeza é que ele estava ali, a nossa frente, falando coisas do tipo:
– Eu deito e durmo, e sonho que estou deitado, e dormindo, e sonhando... Mas, no sonho, eu não quero sonhar, e nem quero querer. Querer é tudo o que se pode chamar de inferno. Qualquer querer.
– Por que, Mateus? – Não sei quem perguntou.
– Porque querer é não ter o que se quer, mermão. Ou então ter é querer não mais ter, saca? Daí, mesmo o não mais querer é também uma espécie de querer. Entende?
Se eu dissesse o que me lembro do que alguém falou, em resposta à pergunta, estaria mentindo. E não há necessidade de mentiras aqui. Lembro, porém, que associei isso que ele dizia ao conceito de amor de Diotima, do modo como Sócrates o apresenta, n’O Banquete, de Platão.
– Daí, no sonho, eu tinha outro sonho – Mateus dizia.  
Lembrei na hora do Martin Luther King Jr. em seu famoso discurso: “I have a dream!” Pensei também que, “putz!, que mania que eu tenho de ficar associando tudo à tudo! Se fuder!”
– Contaí, magrão! – Márcio falou, rindo, chapadíssimo. 
– Antes tem o contexto, saca?
– Que contexto? – Perguntei.  
– O contexto é minha própria percepção do real, entende? Somente assim é que o sonho ganha sentido.
– Aiii... conta logo, Mateus! Baita enrolação! – Cláudia parecia curiosa, como é comum às garotas serem curiosas. Karina riu, e aumentou o coro dos descontentes:
– É, Mateus, conta logo.
– Assim; presta atenção. Eu olho a cidade e me vejo como alguém perdido no meio dela, aos olhos de quem vê essa mesma cidade, do alto. São Chico é uma cidade de muitos segredos. As ruas de São Chico são como veias colaterais: mão, contramão; coronária direita, coronária esquerda...
A essa altura, Rafael também não aguentou e:
– Puta que pariu! Tu vai contar a merda do sonho ou não vai, viadinho?
Estávamos sentados em um trapiche do Lago São Bernardo, em uma madrugada gelada de São Francisco de Paula, no Rio Grande do Sul. A terceira garrafa de vinho estava pela metade, e o licor de menta que eu havia levado fora, praticamente, ignorado. Márcio começou a preparar um paiero, como eles dizem por lá, enquanto Mateus começava a contar, finalmente, o seu viajoso sonho.
– O sinal fecha, eu paro – ele diz, encenando. – Uma mulher se insinua para mim, seminua... Dissimulo, finjo que não vejo. É um sexo barato. “Minha carreira ainda não findou, tá longe disso...”, eu pendo. Cêis sacam a parada? Eu tô sonhando que tô sonhando e, no sonho, penso. Como é que pode, isso?
– Ahhh, não para! Termina – Cláudia interrompe, reclamando objetividades.
– O sinal abre, eu avanço pela perimetral. “Onde estará o coração desta cidade?” Me pergunto, falando com meus fantasmas. “Onde esta veia termina?” Me espanto, e com razão. Nenhuma cidade tem coração, nenhuma... “O coração desta cidade, meu Deus!, sou eu...” Eu digo; e penso que acordei dizendo isso, e banhando em suor.
– E é só isso? – Karina pergunta, desapontada.
– Só. Mas, saca: a alma da cidade é a alma das pessoas que vivem nela. Isso quer dizer que, se uma cidade é feia, então é porque as pessoas é que são feias e...
– Eu também tive um sonho. – Digo, mentindo.
– Hahaha... Bando de viadinhos sonhadores! – Márcio tira onda; sua maior e melhor especialidade.
Todos riem, e alguém pergunta:
– Quê que tu sonhou, Pata?
– Sonhei que a Brigitte Bardot, com um corpinho de 20 e uma carinha de 21, chegava para mim, nuazinha em pelo, rebolando e cantarolando com a voz de Charlotte Gainsbourg:

Eu tenho um alaúde nas mãos
E um anjo solto no peito;
Cantos canções de amores findos
E primaveras por florescer...

O meu amor é um poeta triste,
É um soneto dos mais antigos...
É uma Justine, uma Valentina
E suas vergonhas bem saradinhas...

– Putz! Tinha que ter a parte da sacanagem; né, Patativa? – Mateus reclama, desenterrando uma dose de pudicidade que não sei de onde.
– Tem nada de sacanagem não! – Eu digo; eu minto.
– Tem sim, seu porra! – ele discorda, sorrindo e me esmurrando de mentirinha. - Eu manjo das putarias. 
                



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