quarta-feira, 14 de março de 2012

49.





Das categorias operativas do objeto auto normativo    




Deixei que os dois se aproximassem. Passos lentos, braços dados, cabeças curvadas em direção aos pés que liam a calçada lodosa, coberta de talos nus de velhas folhas mortas e pequeninos galhos caídos. Depois os segui.
Era um dia frio. O bastante para que ela se agarrasse ao braço dele, mantendo-o junto a si. E falava sem parar, o tempo todo. “Deve estar feliz”, pensei, “ou bêbada”. Depois me pareceu que nem era uma e nem outra coisa. Sua voz era aguda e firme, e muito convincente.  
– Atualmente – ela dizia – existem quatro mil cidades com, cada uma, mais de cem mil habitantes. Duzentos e cinquenta delas com mais de um milhão; mais de quarenta com cinco milhões, e mais de uma quinzena chega a dez milhões, ou mais.
– Caralho!
– É. Dados atualíssimos. E andei lendo um livro de Richard Sennet, The conscience of the eye, o design e a vida social nas cidades – ela desenhava aspas no ar com a mão direita, enquanto citava o nome do livro, mantendo a esquerda presa ao braço do companheiro. – Nalguma parte, lá pelo meio, Sennet comenta sobre a diversidade populacional nas cidades contemporâneas. Diz que a livre apropriação dos espaços não planejados para usos não planejados promove o desenvolvimento de uma identidade de vizinhança, que é comum à vida urbana, de modo abrangente.
A essa altura, não era mais possível não pensar sobre o que, porventura, ambos estariam falando, antes que eu pudesse escutá-los. Era uma conversa incomum às pessoas comuns, ocorrendo assim ao acaso, em meio ao passeio público.
– Interessante. – Ele disse.
– Eu acho. – Ela respondeu, e continuou:
– Sennet toma Nova York como modelo; lugar privilegiado para onde afluem pessoas de todas as partes do mundo, coexistindo na diferença que os torna comuns...
– Assim?, numa boa?
– Não, né?! Há os limites, claro. E também os impedimentos. “Diferença de e diferença para os constituem essa relação, ou o par infeliz”, Sennet escreve, para elucidar a questão colocada: da apropriação dos espaços que não são meramente...
Ele, certamente, não compartilhava da mesma empolgação que ela; exteriorizado, de si mesmo, ao interrompê-la em meio à fala, na questão da diferença de e do para o, como ela mesma havia acentuado com a citação.
– E amanhã?
– Sobre as cidades?
– Não, pequena; sobre a gente.
– Eu não sei.
– Você ainda vai lembrar de mim, amanhã?, nesta cidade tão grande, de tantos diferentes com suas tantas e tão diferentes caras de infelicidade?
– Se eu te amasse, sim.
– É muito cedo para o amor, não é?
– Parece que, sim.
– É – ele disse, como se não fosse a ela que dissesse, mas apenas pensasse alto –, o amor ajuda a discernir.
– Hahaha... Ei!, isso é Proust.
– Ah!?
Não era, ao menos para ele; ao menos que ele soubesse.
– É, sim. “Amar auxilia a discernir, a diferenciar...” Está lá, em alguma parte de Em busca do tempo perdido.
– Não sei se entendi...
– Ora! “Em um bosque”, Proust mesmo explica, “o amador de pássaros distingue logo o chilrear privativo de cada ave, coisa que confunde o vulgo.” Ou seja...
– Você está fugindo do assunto, não é?
– Estou não, bobo.
Respondeu, apertando o braço dele.
Pararam.
Ele lançou, contra ela, um olhar comprido de “olhe lá, pequena!”, e ela lhe respondeu batendo em seu peito, seguidas vezes, com a palma da mão aberta, para que ele parasse com isso. Estavam em frente à casa dela, que abriu o pequenino portão de ferro, convidando-o:
– Você poderia entrar para uma xícara de café, antes de ir.
Mas algo o incomodava. Jamais saberei do que se tratava, pela ausência do contexto. E ele declinou o convite de um modo que eu nunca antes havia visto e, creio, não voltarei a vê-lo:
– Mon petit – disse, afastando-se dela –, preciso ir jogar tênis. Adeus!  
Saiu sem beijá-la.



LinkWithin

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...