segunda-feira, 5 de março de 2012

47.






Da obra do amor que consiste em fazer o elogio do amor




N’O mito de Sísifo, na relação dos autores que “se agrupam em torno de um espaço privilegiado e amargo onde a esperança não tem lugar”, Camus, depois de mencionar Nietzsche, Jaspers, Heidegger, Chestov, Husserl e Scheler, afirma que Kierkegaard é o mais interessante de todos, pois “pelo menos durante parte da sua existência fez melhor do que descobrir o absurdo: ele o viu.” Viu e nos faz ver, confundindo a sua obra à sua própria vida.  
O primeiro livro de Kierkegaard, que li, foi Temor e tremor – edição portuguesa, da Guimarães Editores, de 1990... a mesma que, ainda hoje, utilizo em aulas de teologia e/ou filosofia contemporâneas. Comprei a edição de As obras do amor: algumas considerações cristãs em forma de discursos, que Rafael estava lendo, durante a 53ª Feira do Livro de Porto Alegre, em novembro de 2007, se não me falha a memória. E apesar de haver dado umas boas folheadas nela, ainda não havia lido nada com a atenção devida. Depois que ele leu o trecho sobre a obra do amor que consiste em recordar uma pessoa falecida, porém, me veio de ler mais sobre o que o filósofo de Copenhague realmente estava querendo dizer com aquilo, dentro do seu contexto mais geral. A constatação foi de que Camus, sim, tem razão quando afirma que Kierkegaard é o “Don Juan do conhecimento, [que] multiplica os pseudônimos e as contradições”; ele que, em Temor e tremor, de si mesmo, diz: “O presente autor de modo algum é um filósofo. Não entende qualquer sistema de filosofia, se é que existe algum, ou esteja terminado”; ele que, sobre o amor romântico, afirma: “O amor romântico carece [...] de reflexão, e nisso consiste o seu defeito. Assim, seria aconselhável, como método, submeter o verdadeiro amor conjugal a uma espécie de dúvida prévia...” O amor romântico é como a fé religiosa, ou, considerando o seu objeto: somente existe verdadeiramente enquanto não refletido seriamente, suspendido na dúvida que a razão pura traz. Ah!, e que dúvida terrível! Kierkegaard a encarnou, como vocação e ofício. Regine Olsen, a noiva com quem ele rompeu, certamente não poderia partilhar desta vida que era sua, seu fardo – coisa que ele não poderia desejar a outrem. E mesmo o fato de despedi-la é, como tudo em sua vida, uma etapa do (ou para) seu pensamento. “De fato”, afirma Lukács, “mesmo Regine, que ele havia abandonado, que em sonho transformara em um ideal além do seu alcance, não pode ser para Kierkegaard mais que uma etapa, porém uma etapa que o conduziu de maneira mais acertada a seu objetivo.” Que objetivo? O absurdo paradoxal, o salto da fé: etapa final depois de superadas a estética e a ética.  “Que é o noivado senão um amor irreal que se alimenta unicamente dessa tenra e doce torta que é a possibilidade?” Possibilidade é a dúvida entre o possível e o impossível; nem chega a ser absurdo. Kierkegaard escreve Temor e tremor e os Discursos edificantes, por exemplo, ao mesmo tempo em que escreve – o que Camus chama de “manual de espiritualismo cínico” – o Diário de um sedutor, todos em 1843 (O “Diário” é a primeira parte de Ou, Ou. Um fragmento de vida). Aí estão todas essas etapas, e a coroação da fé como o grande paradoxo... e o amor.
O amor romântico, no que se imagina de perfeição (exemplificado em Regine), é um pálido reflexo do amor ideal, que aponta para o paradoxo da fé, do movimento da fé – à qual o homem da fé (exemplificado em Abraão) se lança, se acredita, perfeitamente. Kierkegaard, porém, não tem uma resposta positiva à tão grande exigência: “Não posso realizar o movimento da fé, não posso cerrar os olhos e lançar-me de cabeça, pleno de confiança, no absurdo.” Atingir o Eu autêntico é empresa por demais impiedosa, e fadada à solidão: absurda e consciente.   
Eu comparava esses textos todos, e fazia anotações sobre o décimo discurso da segunda série sobre As obras do amor, quando Rafael chegou em casa, afobado que “já estou atrasado para um encontro aí”. Correu para o banheiro e ligou o chuveiro. De lá, ficou de conversa comigo, falando bem alto:
– Não vai sair hoje, viadinho?
– Vou não. Luciana vem p’ra cá, logo mais.
– Hummm...
– Hahaha...
“Merda!” Lembrei na hora. Na manhã do dia seguinte haveria uma aula de latim, e eu não havia terminado o exercício enorme que o professor Ullmann (Reinholdo Aloysio Ullmann) havia passado, na semana anterior. O velho Ullmann, jusuitíssimo, era igualmente exigente, e já havia reclamado mais de uma vez sobre a minha tendência à “vadiagem” – como ele dizia, meio que brincando, meio que falando sério.
– Talvez a guria venha dormir aqui hoje, beleza?
Havíamos combinado de, sempre que levássemos alguém para dormir por lá, em nosso apartamento, quem quer que fosse, avisaríamos. Assim, pensávamos, evitaríamos chateações e aborrecimentos.
– Por mim... – concordei. E voltei a pensar sobre alguns bons encontros que tive com professores e autores que são grandes estudiosos do pensamento de Kierkegaard, no Brasil. Um deles foi o Álvaro Valls, com quem havia conversado bastante sobre Agostinho e sobre o dinamarquês; o outro era o Ricardo Gouvêa, que me presenteou com um exemplar de A palavra e o silêncio (Custom / Afarrábio), livro que havia lançado em 2002.
– Tu tá gostando do livro?
– Quê?
– Tá gostando do livro?
– Ah! Não tem como não gostar do Kierkegaard! Principalmente por causa da sua rejeição aos sistemas. Qualquer autor que faça isso, já ganha pontos comigo.
– Quê?
– Nada, não! Nada.
Kierkegaard não somente se opunha aos sistemas – da teologia ou da filosofia –, era também perturbadoramente lúcido e provocante, mesclando o seu pensamento à sua vida, e vice-versa. O elogio de Camus não era, em nada, gratuito. Kierkegaard “rejeita os consolos, a moral, os princípios de todo repouso. Não pretende acalmar a dor do espinho que sente cravado no coração. Pelo contrário, ele a desperta e, com a alegria desesperada de um crucificado contente de sê-lo, constrói, peça por peça, lucidez, rejeição, comédia, uma categoria do demoníaco. Esse rosto ao mesmo tempo terno e zombeteiro, essas piruetas seguidas de um frito surgido do fundo da alma, eis o próprio espírito absurdo às voltas com uma realidade que o ultrapassa.” Eu assinava embaixo de tudo isso, naturalmente.
Rafael saiu do banheiro, já vestido. Foi até a sua escrivaninha, despejou um litro de perfume entre o pescoço e o colarinho, pegou algum dinheiro e saiu voando porta-a-fora, falando “te cuida, cabeção!”, apressado, sem olhar para trás.
Eu estava sozinho novamente.
Voltei ao texto d’a obra do amor que consiste em fazer o elogio do amor. Aí, novamente, Kierkegaard mantém o conceito de abnegação, contra o egoísmo, já criticado no texto anterior (A obra do amor que consiste em recordar uma pessoa falecida). Neste, o elogio do amor deve realizar-se exteriormente (udefter: “para fora”, “em direção ao exterior”), também no desapego abnegado (i opoffrende Uegennyttighed), e na atitude do que se sacrifica sem buscar utilidades para si.
Eu, realmente, não podia mais concordar com isso.
Ele dizia mais. Dizia que o amor, sendo algo que todos podem fazer (ou conhecer), é diferente do elogio do amor. Esse, embora todas também possam fazê-lo, pode não ser verdadeiro – e quem o saberia? –, sendo coisa vã, de proveito duvidoso. A observação: “A arte não está em dizê-lo, mas em fazê-lo”, que ele usa como ponto de partido para todo o discurso, aponta – em um orador, por exemplo – para a palavra e para a coisa que essa pretende nomear. E ninguém duvidaria de que a coisa deva ser mais que a palavra. A palavra, inclusive, pode variar em sua descrição, falsificando o entendimento acerca do “seu” objeto, et cetera.
Nesse ponto, entre concordâncias e discordâncias, parei de ler. Procurei o caderno de exercícios de latim e, “meu Deus tô ferrado!”, pensei. Somente havia resolvido a primeira questão: uma declinação bobinha do substantivo singular “dor”: dolor, dolor, dolorem, doloris, dolori, dolore. “Buenas”, respirei fundo, “vamos ao plural”. Mal acabei de pensar isso e alguém bateu à porta. Fui abrir. Era Luciana, a linda Luciana, com seus cabelos encaracolados e soltos, de olhos verdes e brilhantes, e um sorriso enorme para mim.
– Oi, Pato! – Me abraçou, falando baixinho em meu ouvido:
– Mais alguém aqui?
– Não.
Olhou para mim, se convidando a entrar. Afastei-me para que ela passasse. Fechei a porta e a segui até o sofá, do qual retirei algumas apostilas e umas poucas peças de roupa que Rafael havia deixado por lá, sujas e largadas. Na hora eu não soube bem como conduzir as coisas. Mas ela, sim. 
– Nossa! – disse, me examinando, enquanto abria a pequenina bolsa vermelha que troussera. – Tu fica lindo assim: de barba mal feita e cabelo despenteado.
Sorri encabulado.
– Tu tá ocupado, guri? – perguntou.
– Eu? Ocupado? Imagina!



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