segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Romantismo, idealismo e inconsciente

1.

A Volúpia (voluptas) fantasia-se de amor romântico, porque o uso limpo dos órgãos reprodutores não é nada romântico, e nem bonito. Mas, para havê-los, ou usá-los, entram aí os mecanismos da conquista, e o romantismo que, fundamentado no idealismo, faz com que alguns, em suas cândidas demonstrações de amorou a procura de um amor ainda não tão “demonstrado candidamente” –, dêem flores. Mas uma rosa, quando oferecida, é um convite ao coito, à procriação. A rosaou outra flor qualquer que seja mais que um botão, e ainda o próprio – é a figura simbólica da vulva que, como a flor, é potencialmente fértil de frutos, de vida. A flor é como um símbolo: da vida que quer viver.

2.

De acordo com a lenda, enquanto Afrodite (Vênus), ferida, gritava de dor diante de Adônis, mortalmente ferido por um javali, seu sangue caía sobre rosas, tingindo-as de vermelho. Nada mais podendo fazer, a deusa instituiu uma celebração anual para lembrar a trágica e prematura morte do seu amado.

Do século V em diante, na cidade de Biblos - e em cidades gregas no Egito, na Assíria, na Pérsia e em Chipre -, realizavam-se festivais anuais em honra de Adônis. Em tais rituais, mulheres plantavam sementes de várias plantas floríferas em pequenos recipientes, chamados “jardins de Adônis”. Entre as flores mais usadas no culto de Adônis estavam as rosas vermelhas, que faziam referência ao sangue de Afrodite, derramado em demonstração do seu amor. As rosas vermelhas são, assim, símbolos do amor interminável, do fogo que arde no coração do apaixonado. É importante notar que as rosas têm espinhos, sinal de que o tal “amor interminável” pode estar bem junto de uma somatória dolorosa de memórias, de sofrimentos cravados na pele, no peito. Seja como for, e para aqueles que dão flores em suas cândidas demonstrações de amor - ou à procura de um amor ainda não “demonstrado candidamente” -, o “amor é lindo”; é o que dizem, que acreditam.

3.

A fé não precisa mesmo de outra demonstração que não a do absurdo dela mesma; fé, provada, vira ciência. Quanto mais absurda, maior é a fé - “melhor” já é conforme os critérios. Assim, e num sentido mais geral: o que é uma rosa oferecida a uma mulher ou a um homem? É um convite ao coito, à procriação. Rosa vermelha: signo do fogo da paixão, do ardor febril – diferentemente, por exemplo, do Crisântemo ou do Cravo Branco que simbolizam inocência; da Bells of Ireland que representa a boa sorte; ou dos Narcisos de amarelo festivo, a quem o poeta inglês William Wordsworth fez o famoso poema The daffodils. Mas mesmo aí, nessas “flores inocentes”, o amour de soi e a Vontade da vida imperam, nas entrelinhas da ação. Não, ninguém que não seja um comediante daria flores a uma garota se, de fato, nas entrelinhas, não visasse alguma conquista e, por fim, o coito - que é para onde todos os romances se dirigem, ou as boas amizades entre os amigos do sexo oposto. As rosas - ah, as rosas! –, essas sim são as grandes campeãs nas demonstrações do amor romântico. O dar flores, quaisquer que sejam e tenham botões - que são signos da fertilidade, das potencialidades –, está ligado, mesmo que por um mecanismo indireto, aos frutos e, diretamente, ao sexo e à vida.

4.

Na história do mundo, e nas mais variadas culturas e religiões, conforme o belíssimo estudo do mitologista americano Joseph Campbell em The power of myth – um livro em seis partes, baseado numa série de documentários que foi ao ar em 1988, na americana PBS (Public Broadcasting Service) -, as flores costumam aparecer como meios pelos quais o Sagrado também, bem, pode se revelar; conforme entendem os homens religiosos, e conforme as suas teologias.

No último livro da Divina comédia, por exemplo, Dante contemplava o paraíso como uma rosa branca, imaculada, sobre a qual e “como um enxame de abelhas”, anjos pousavam e alçavam vôos reverentes. Subindo, os anjos fitavam o interior da Suprema Luz, vendo ali a beatífica Trindade. Acontece que, como ocorre na história de Brahma – que tem quatro cabeças e está entronizado na Índia sobre o lótus do sonho de Vishnu –, assim também ocorre com a imagem que Dante faz da Trindade no interior da rosa, um Deus que se manifesta em três pessoas e que, como diz Campbell, “ao poeta foi dado conhecê-las por intermédio de seu enlevo na beleza de uma mulher terrena”, Beatriz.

5.

Emile Mâle, em seu livro Notre-Dame de Chartres, de 1948, falando da Virgem que aparece no portal oeste de Chartres e no portal de Sain Anne da Catedral de Notre Dame de Paris, observa que: “A Virgem do século XII e do início do século XIII é uma rainha. Ela aparece entronizada em solenidade real. Ostenta a coroa sobre a cabeça, porta o cetro de flores na mão e tem o filho sentado em seu joelho. Dessa forma, ela se apresenta no belo vitral de Chartres conhecido como ‘la belle verrière’, e também no maravilhoso vitral de Laon”. “O cetro florido na mão direita da Madona entronizada”, afirma Campbell, “- sendo ela o próprio trono vivo de seu filho – corresponde simbolicamente ao lótus na mão esquerda da deusa budista [Tara]. Sentada sobre um trono de lótus sustentado por um par de cariátides leoninos, simbolizando o ‘rugido do leão’ da sabedoria de Buda, ela mantém a mão direita aberta no gesto da ‘dispensação das bênçãos’, enquanto, acima do lótus, na mão esquerda, flutua a imagem de um Buda salvador. Analogamente, a coroa sobre a cabeça da Virgem Mãe revela seu caráter celestial, a criança sobre seu joelho corresponde ao Buda no ícone oriental”.

6.

O humano e o divino, aí, aparecem num dualismo que não é chocante, embora contraditório: humanidade e divindade, terra e céu, maternidade e virgindade, temporalidade e eternidade, et cetera. Como o vitral de Chartres que, embora seja feito de matéria terrena, é transpassado pela luz do sol, que revela cores e constitui-se, em si, num “agente revelador” de Maya (ilusão); assim também as flores, como o lótus ou a rosa, revelam uma intenção metafórica, subconscientemente humana. Desse modo, o lótus no ombro esquerdo da Rainha Dedes da Dinastia Singasari – uma estátua-retrato que personifica Prajna-paramita (um ser mítico que simboliza a doçura da “Sabedoria [prajna] da Margem do Além [paramita]” – sustenta o livro que ensina tal revelação oriunda de muito além dos opostos ilusórios.

7.

Indólogo, mitólogo e historiador da arte, o alemão Heinrich Robert Zimmer, numa palestra sobre a simbologia na arte hindu, fala que, em 1220 d.C., o rei governante de Singasari foi derrubado por Ken Arok, um aventureiro que se casaria com a Rainha Dedes e subiria ao trono com o nome de Rajasa Sang Anurvadhumi. O novo rei teve um reinado breve e, em 1227, foi morto. “O principal tesouro que nos resta de seu tempo”, diz Zimmer, “é [uma] imagem de sua consorte, como a Shakti do Adi Buda”. Acontece que o termo shakti, em sânscrito, tem uma importância capital para o que aqui nos interessa: a flor e o seu símbolo. Shakti pode significar “poder”, “capacidade”, “energia’, “faculdade ou aptidão”, e do modo como temos utilizado aqui, diz respeito a um poder ativo de uma divindade masculina incorporado em sua esposa.

Toda esposa, assim, é shakti do seu marido, toda mulher amada é shakti do seu amado – como fora Beatriz para Dante, Isolda para Tristão, Julieta para Romeu, Yashodhara para Sidarta, Dalila para Sansão. Em hebraico, o nome de Dalila soa onomatopéico, vindo de “dal”, que significa “fraco”, “débil”, “doente”, “hesitante”. Mas Dalila tem algo que faz Sansão muito fraco, o sexo. “Sansão, o herói, o valente, o forte, o guerreiro, o estrangulador de leões, o super-homem que enfrenta mil filisteus com apenas uma queixada de burro, ele que carrega nas costas os portões da cidade até o topo da montanha, esse gigante é vencido pelo sexo fraco, pelos requebros e pelo choro duma mulher. A história de Sansão e Dalila põe duas forças em confronto: a virilidade física do homem e a beleza sedutora da mulher”, são palavras de Rômulo Cândido de Souza, em Palavra, parábola: uma aventura no mundo da linguagem. “Para nos aprofundarmos ainda mais”, diz Campbell, “a palavra shakti denota poder espiritual feminino em geral, do modo como se vê, por exemplo, no esplendor da beleza ou no nível elemental do poder absoluto do sexo feminino para produzir efeitos no masculino. Atua no poder que o útero tem de transformar a semente em fruto, para nutrir, proteger e dar à luz”. A analogia do útero ou do órgão sexual feminino com a flor não é feita de modo gratuito. No plano psicológico, e de modo análogo, shakti é o poder que o sexo feminino tem de induzir o homem à sua razão, sua realização enquanto homem (plantar a semente [sêmen]) e/ou, do modo contrário, destruí-lo em sua masculinidade. Goethe sabia disso, e, nos conhecidos versos do Fausto, dizia: “Das Ewig-Weiblice / Zieht uns hinan”, ou: “O eterno feminino / Nos incita a progredir”.

8.

Nada ilustra mais e melhor a permanência do amor de um homem por uma mulher (ou o contrário disso, ou ainda isso tudo invertido e misturado) do que a flor que é dada num encontro; principalmente os primeiros - embora a nossa cultura, longe daquela do Romantismo europeu dos séculos XVIII e XIX, ou dos filmes produzidos em Hollywood, não cultive essa prática com tanto afinco. A flor, pobrezinha, arrancada do seu galho, morre logo, antes do seu tempo. Do mesmo modo é com o amor realizado, mediante a conquista amorosa. Como a flor, ele também murcha, morre antes do seu tempo. O amor que mais dura ou é como a Idéia de uma rosa (sem acidentes) ou é como a própria, materializada; de plástico, porém. Essa metáfora, mais que realista, é fatalista... e não tem como ser diferente. O amor que mais dura é aquele que se assemelha à flor no pé, nunca colhida; ou aquela outra, de plástico: sem graça, sem cheiro, sem vida e sem poesia... sem um significado emotivo válido, valioso. Não é por acaso que os românticos, depois do romance, esquecem de dar flores àquelas ou àqueles que se tornam suas mulheres, seus maridos: amor realizado, flor colhida, morte. Dar flores, somente aos mortos - e com a condição de que estejam sepultados.

9.

As rosas – sim, as rosas! – são representações festivas das mentiras do amor romântico: de quem às dá e de quem às recebe. As rosas, que a ninguém pertencem, são dadas apenas àquele ou àquela que pensa em dá-las. Flores, quaisquer que sejam, são símbolos do sexo feminino, fecundo – como na animação para a música “What shall we do now?”, no filme Pink Floyd: The Wall, de 1982 (dirigido por Allan Parker e baseado no álbum homônimo da banda inglesa), onde um botão, em seu talo, acaricia uma flor aberta, com quem copula; e depois, por ela, é devorado. Eros e Thanatos. O botão, fechado e em riste, simboliza o órgão masculino; a flor, mais fácil de ver ainda, é uma vagina. O órgão masculino, após o coito, morre; o feminino, diferentemente, como o filme nos faz ver, não... é uma máquina. O que isso nos diz? Que a morte, por fim, tem mais vida - o paradoxo é inevitável - do que o amor. Assim, e sem muitos enfeites ou florilégios, o moço ou a moça que dá flores a outrem está dizendo àquele ou àquela que as recebe: “Meu bem, me coma”, ou: “permita-me!” Dar flores, gesto dos mais obscenos.

10.

“Por muito desinteressada e ideal que possa parecer a admiração por uma pessoa amada, o alvo final é na realidade a criação de um novo ser [...]. Que uma criança seja gerada, é esse o alvo único, verdadeiro, de todo romance de amor, embora os namorados não dêem por isso: a intriga que conduz ao desenlace é coisa acessória”18.

11.

Ora, “para atingir o seu fim”, que é a geração de um novo indivíduo, é “necessário que a natureza engane o indivíduo com alguma ilusão”19. E a ilusão é a promessa de uma felicidade duradoura – quiçá eterna –, de um prazer sem dor. Mas isso não pode ser assim. Tanto não pode que, Léon Bloy, numa crítica ácida a Musset, diz: “‘Quero amar, mas não quero sofrer’, põe imbecilmente na boca de uma de suas heroínas, o imbecil Alfred de Musset.’ (‘E.’ – II, p. 90).20” Prazer (voluptas) e dor (dolon) são os dois tons que formam o acorde chamado “emoção” (affectus, ou passio). Como reza a tradição filosófica, principalmente a epicurista, o prazer nem sempre pode ser associado à felicidade (eudimonía, felicitas). O prazer está mais ligado à condição temporal de satisfação, ao passo em que a felicitas, pelo menos no seu sentido mais profundo, diz respeito a uma satisfação plena, duradoura, que deseja-se eterna – como aquela que Santo Agostinho disserta no seu De beata uita. Mas, em Schopenhauer: “Todas as paixões amorosas da geração presente não são, portanto, para a humanidade inteira, senão a séria meditatio compositionis futuræ, e qua iterum pendent innumeræ generationis. [...] É sobre este grande interesse que repousam o patético e o sublime do amor, os seus transportes, as suas dores infinitas que os poetas há muitos séculos não se cansam de representar em exemplos sem número”21.

Continua...

18 SCHOPENHAUER, 1993, p. 55.

19 SCHOPENHAUER, 1993, p. 51.

20 LÉON BLOY apud FARIA, Octávio de. Léon Bloy. Rio de Janeiro: Gráfica Record Editôra, 1968. p. 165. (Col. Profestas do Mundo Moderno).

21 SCHOPENHAUER, 1993, p. 54-5.

LinkWithin

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...