segunda-feira, 18 de outubro de 2010

8.

O americano Stanley Kubrick foi reconhecido como um diretor excelente quando, em 1968, adaptou o livro de Arthur C. Clarke (2001: a space odissey), com quem também escreveu o roteiro do filme, homônimo, levando-o às telas do mundo inteiro. 2001 “ainda é o maior de todos os filmes de ficção-científica”, diz Owen Gleiberman, no Entertainment Weekly. 2001 também é, de acordo com o respeitado American Film Institute, o melhor filme sobre ficção científica já feito. Steven Spielberg, por fim, chegou a dizer que 2001 foi o “Big Bang” das produções do gênero. Três anos depois, em 1971, Kubrick levou às telas o perturbador A laranja mecânica, que é a adaptação de um outro livro, do inglês Anthony Burgess (A clockwork orange), lançado em 1962. De Kubrick, você também já deve ter visto – e caso não tenha, veja logo -, por sinal o seu último filme feito em vida (ele morreu de ataque cardíaco no dia 07 de março de 1999, aos 70 anos), De olhos bem fechados, que é mais fácil de digerir do que o livro do austríaco Arthur Schnitzler, Traumnovelle, de 1926, que foi de onde o filme foi baseado.

Adaptação genial, Kubrick, seguindo os passos de Schnitzler, explora e desvela os mecanismos da cultura que é, pelo desejo de eterna felicidade e do sexo limpo, estruturada sobre a farsa da civilização, da civilidade. Pois não é isso que Schnitzler/Kubrick quer dizer, afinal, com o seu De olhos bem fechados? Desde os atores sociais até os indivíduos isolados, todos estão, de certo modo, num grande baile de máscaras. Nessa estrutura montada através dos anos e dos poderes, quebrar certas regras constitui-se, para que a civilidade se mantenha em statu quo, crime. Códigos ditam condutas que, caso a coerção não baste, a punição seja aceita como legal, legítima. Para ser aceito no grupo é preciso confessar a fé no Estado, nas instituições seculares ou religiosas, no poder estabelecido. Do mesmo modo, as sociedades (políticas), como as “sociedades secretas” ou as “religiões de mistério”, defendem certas leis e certas regras que devem ser aceitas/recebidas como herança ético/moral comum (mesmo que a origem de algumas ações práticas sejam obscuras em seus fundamentos), como bilhete de ingresso no baile: se é um baile de máscaras, mister é que todos estejam com os rostos cobertos. O amor e suas consequências (casamentos, filhos, estrutura social) foi, e ainda é para muitos grupos, uma dessas leis – “lei divina”, “instituição sagrada”, apregoam os ministros religiosos com voz impostada, que é para dar mais status à norma. O grande “segredo” de tudo isso é que não há segredo algum, como dizia Fernando Pessoa, enquanto Alberto Caeiro, falando sobre o mistério das coisas: “O mistério das cousas? Sei lá o que é mistério! / O único mistério é haver quem pense no mistério. / Quem está ao sol e fecha os olhos, / Começa a não saber o que é o sol / E a pensar muitas cousas cheias de calor.31

É certo que, na primitividade, o homem amava mais puramente, caçando o objeto do seu desejo (seu instinto natural o levava a isso), desconhecendo as “leis da conquista” amorosa, desenvolvidas ao longo dos séculos pela civilidade, ou por sua noção: o dar flores, chocolates, essas coisas... Prevalecia, acima de tudo, o instinto de sobrevivência e, com ele, a cortesia mínima, natural, mas eficiente. Tal cortesia, mínima, como a que é encontrada nos animais sem cérebro, também estava nele – mas era menos maquiada, menos documentada em romances, filmes, novelas, poemas, canções, et cetera. E por causa dela, ele também se exibia – como faz o pavão com a sua cauda –, também matava, também morria. A razoabilidade fez toda a diferença.

Com o progresso das civilizações, aperfeiçoaram-se as máscaras e os mecanismos de conquista; inventou-se, por fim, o amor romântico, e os casamentos por amor. E o lado natural do amor puro, primal, foi domado e mitificado sob o signo do mistério, do romantismo, da civilidade (sexo, só na alcova), da perfeição metafísica (sexo, só depois do enlace matrimonial, na presença de um religioso e de testemunhas)...

O tempo mudou e, com ele, certas sanções morais; mas a mitificação do amor romântico, mesmo aí, não teve alterações tão substanciosas. Acontece que o amor ideal é um produto conceitual e, assim sendo, serve bem ao Mercado: para o comércio de livros, de roupas, de filmes, de canções, et cetera. Todavia, uma questão central: o que seria da arte em geral sem essa mitificação? Ora, a arte, toda ela, está fundamentada sob o mito do amor romântico como sublimidade, sublimação do fenômeno ao ideal/metafísico ou como escape desse, como enfrentamento ao trágico puramente mundano. Na primeira acepção, a confusão (co-fusão) toda se faz pela adequação do amor natural ao amor sublime, como se fossem uma e a mesma coisa, ou como se aquele fosse dependente deste, devendo-lhe reciprocidades, portanto. O amor erótico, menor (imperfeito, acidental), assim, derivaria do ágape (perfeito, puro), maior. Acontece que, tanto esse quanto aquele, diferentemente do modo como a cultura, mais comumente, os coloca, estão a serviço do amour de soi: o único que é realmente experienciado em toda a sua plenitude, o único que é sobre tudo e sobre todos, embora jogado debaixo do tapete da cultura, da civilidade. É por isso que todos os que não atentam para esses mecanismos do desejo estão, como diriam Schnitzler e Kubrick, de olhos bem fechados.


A sociedade cristã-ocidental: um baile de máscaras. Cartaz americano para o filme Eyes wide shut (1999), de Stanley Kubrick, baseado no livro de Arthur Schnitzler (1862-1931)


Continua...

31 CAEIRO, Alberto (Fernando Pessoa). O guardador de rebanhos. In: PESSOA, Fernando. Ficções do interlúdio: 1914-1935. Org. de Fernando Cabral Martins. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 218.

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