domingo, 31 de outubro de 2010

Capítulo 3


A mínima fala: escousses provocativos a todo discurso filosófico-teológico que deseja-se levado à sério


Mote: “Tristeza, tristeza dos intelectuais! Tristeza, por exemplo, dos universitários! Sobre livros que ninguém lê, eles escrevem livros que ninguém lerá... É respeitável, comovente, se fazem isso por fidelidade ao passado e à sua função. [...] Erro ao dizer que ninguém os lê: a Universidade é um meio pequeno, mas necessário, que se reproduz assim, de professor a aluno, de tese em tese, de colóquio em colóquio... É só quando eles se levam a sério, ou seus livros, ou à sua carreira, que se torna acabrunhante de tédio e de ridículo” (André Comte-Sponville, O amor a solidão).



Escousses filosófico-teológicos

1.

Desejo e Vontade

A vida é essencialmente luta e, dela, é dependente. Sem o sofrimento não haveria o progresso – embora haja quem pense em um reino de paz perpétua, onde o sofrimento e a guerra inexistem. Neste mundo, que é le meilleur des mondes possibles (Leibniz), porém, tudo é dor, e guerra, e desejo, e sofrimento. O homem nasce só, vive só, morre só (Buda). Busca-se, pela ausência da dor, o prazer; mas o prazer, depois de alcançado – a não-dor, embora haja quem associe um ao outro –, é a dor de não mais desejar o que se desejava, e depois o desejo de outro “objeto” e, depois, mais outro ainda... Como a sede que não se mata, não pode ser saciada. Afinal, quem é que pode, realmente, “matar a sede”? Todos os nossos desejos são como afluentes de um único e mesmo rio que caminha para a dor... e se confundem (co-fundem) nos sinônimos que são lidos, às vezes, como se fossem antônimos. Eros e Tanatos são como Yin e Yang, noite e dia, guerra e paz... Wille und Leiden. E não há dualismo nenhum em tudo isso porque, no meio de tudo, esta o hiato que somos nós, as res cogitans.


segunda-feira, 25 de outubro de 2010

12.

Claude Lévi-Strauss, o antropólogo e filósofo francês que morreu em Paris no dia 30 de outubro de 2009, dedicou parte da sua vida (1935 a 1939) a estudar certos aspectos da cultura indígena brasileira, país que dizia amar; país da Rita Lee, que vestia tanto as calças Lee (criadas pelo americano Henry David Lee, em 1889) quanto o “Blue Jeans” criado em 1872, pelo teuto-americano Levi Strauss, que nada tem a ver com o primeiro Strauss, e menos ainda com o compositor alemão, Richard Strauss – criador do poema sinfônico Also sprach Zarathustra, Op. 30, baseado na obra, homônima, de Nietzsche, e que ficou conhecidíssimo depois de aparecer como tema de abertura no filme 2001: a space odyssey, de Kubrick.

Do segundo Strauss, que nunca fez um poema que se respeite, e nem pensou sobre os primeiros habitantes deste país de papagaios, bananas e macacos, era a marca Levi’s. Na década de 1950, a Levi’s usava uma publicidade que propunha, com suas calças, “Dá ao homem algo da mulher, e à mulher, algo do homem”. Uma proposta que, andrógena, parece propor uma equiparidade genérica, unindo os sexos numa peça só, unissex.


13.

Essa feminilidade do masculino e masculinidade do feminino foi o primeiro tema/capítulo da sessão “Sexo explícito”, no livro Contra natura: ensaio de psicanálise e antropologia surreal, de 1999, de Oscar Cesarotto. Aí, e à pergunta: “Qual é o papel da feminilidade dentro da sexualidade feminina?”, Cesarotto responde: “Que uma mulher seja feminina não é redundância, porque poderia assim não ser. Como se sabe, algumas mulheres são femininas em maior ou menor grau que outras. As outras são os reflexos nos quais cada uma delas pode medir seu narcisismo. Alienadas naquelas distintas delas, todas as mulheres rivalizam com sua semelhantes, invejando a performance alheia, sempre melhor. Ao mesmo tempo, todas e cada uma são capazes de se acreditar inteiras e sem mácula nenhuma. Estes transitivismos têm a sua origem numa identificação primitiva, maternal e arcaica (Alma Meter), cuja alteridade deve ser, necessariamente, outra coisa que elas procuram para além do espelho, porque uma comparação exclusiva entre mulheres não dá lugar a certeza alguma.37” É, não dá não!

É por isso que, aos homens, mas não com exclusividade, cabe a tarefa do cortejo, que fazem-no com olhares, com flores, com chocolates, et cetera. Se, por um lado, o travestismo feminino consignado pelas calças Levi’s promoveu aquela tal equiparidade, por outro, o cortejo masculino ainda confirma a fêmea cortejada – o contrário daria no mesmo –, elegendo-a dentre tantas, aceitando-a como uma diferente que, igual ao cortejador sobre outros aspectos (o da moda ou dos gostos, por exemplo), complementa-o. A teoria parece boa, e nítida; mas a prática não é tão nítida assim.

14.

Há, hoje mais que antes, uma crise de gêneros; fala-se, inclusive, numa “crise do macho”; mas há, também, embora pareça um discurso machista, uma “crise da fêmea” com o fito de ganhar espaços, algumas mulheres têm se masculinizado, perdido o norte do que seria uma “relação familiar”... que também está em crise por causa dessas crises anteriores. Cada dia é mais fácil perceber que a propaganda que prometia “dar ao homem algo da mulher, e à mulher, algo do homem”, como não é costume às propagandas, não era enganosa. Isso é fácil de notar, por exemplo, na mudança geográfica que houve na colocação do zíper nas peças da Levi’s e, por seu sucesso, em tudo o que era jeans. Se, antes, nas peças femininas, o zíper vinha fixado na lateral, com o progresso do feminismo (ou o declínio do machismo) ele seria deslocado para a entreperna, anulando aquela diferença do sexo mirado, feito alvo.

Tais mudanças da/na moda, no vestuário feminino, denunciam, além das mudanças sexistas, a adequação do corpo à cultura, como mecanismo de encobrimento e propaganda. Não é à toa que o Marquês de Sade, um dos pioneiros da revolução sexual e um dos primeiros a ter uma visão moderna da homossexualidade, na sua La philosophie dans le boudoir, de 1795, faz a seguinte notação: “Sem dúvida, o costume de vestir-se teve dois únicos motivos: a inclemência do ar e a coqueteria das mulheres; estas acharam que perderiam rapidamente todos os efeitos do desejo se não os previniam antes de deixá-los nascer. Perceberam que a natureza não as tinha criado sem defeitos, e se asseguram de ter todos os meios de agradar, ocultando estes defeitos com adornos; o pudor não foi, portanto, uma virtude, senão uma das primeiras consequências da corrupção, um dos primeiros recursos da esperteza das mulheres.”

15.

De fato: o erotismo reclama a beleza como condição, pré-condição; a beleza, para o erótico – para o desejo, portanto -, precisa de certo encobrimento; que senão vem o “acostumar-se com ela” e, aí, seu suplício, seu cadafalso. O órgão reprodutor, em si, não é coisa bonita. E embora ele seja buscado com afinco, antes, o que se vê, não é ele mesmo, mas o rosto do seu dono ou da sua dona, seus adereços e, às vezes, seu dote: propaganda. Leonardo da Vinci, no seu Diário - que poderíamos chamar de uma biografia psicanaliticamente orientada -, faz a mesma constatação: “O ato da cópula e os membros de que se serve são de uma fealdade tão grande que se não houver a delicadeza dos rostos, os enfeites dos participantes e o ímpeto desenfreado, Natura perderia a espécie humana.” Assim, e para não irmos tão longe, concluímos: o desejo sexual e os seus mecanismos (a moda, o engodo, o disfarce, et cetera) são como os enfeites do véu de Maya; o pudor é a demonização da Natura (Tabu), para que se pense no “antinatural” como coisa sublimada, real, e, assim, ele seja inconscientemente mantido como aquele buraco da fechadura, e a frase acima, provocativa: Não olhe!

Do amor romântico, do amor ao conhecimento, da cultura e da moral cristã-ocidental e da Verdade de/em tudo isso, para a moderna Modernidade, o Die Welt als Wille und Vorstellung, escrito em 1818, ainda é resposta e fundamento. De fato: tudo o que Nietzsche, Lou-Salomé e Freud dirão sobre o amor, depois de Schopenhauer, é mera repetição e acréscimo. Schopenhauer: essencial.


Fim do Artigo 2. A seguir (em fragmentos) o Artigo 3, final.


37 CESAROTTO, Oscar. Contra natura: ensaio de psicanálise e antropologia surreal. São Paulo: Iluminuras,1999. p. 15-6. (Col. Leituras Psicanalíticas).

domingo, 24 de outubro de 2010

9.

Mais que os adultos, para quem a moral – a cristã-ocidental, em especial, ou outra qualquer, patriarcal impôs as normas constitutivas da sagrada família, que é sempre vista como instituição divina e essência geradora (ou constitutivo-mantenedora) da ordem social, os adolescentes experimentam – ainda que coagidos por certos rudimentos da lei da coletividade, sempre restritivaalgo do amor primevo, ou seja, mais puro (ou animal); logo, para os adultos, mais irresponsável. É que os adolescentes são todo-hormônios, testosterona... tudo neles está em ebulição, em formação. E o amor que sentem é amour de soi, competição – é assim que o processo seletivo se firma. O namorado de Letícia é, para ela, uma arma contra suas “amigas”, contra a sua potencial extinção: “Vejam o meu namorado; como ele é gato!”, diz, e, com isso, quer dizer às outras: eu posso mais que vocês; eu fui escolhida [selecionada] por ele; eu estou no topo da pirâmide que garante que eu sou boa para gerar bons filhos. Sim, é verdade: Letícia, com um tal namorico, não pensa ainda em ter filhos. Mas ela não sabe que não sabe disso... e quem diz isso é a reação química do seu corpo, ou as suas mais ingênuas manifestações maternais – como a de uma criança que brinca com sua boneca: seja a do bebezinho que faz xixi e chora, ou a da Barbie, que é o tipo (ou modelo) padrão de simetria, de estética, que diz ao inconsciente coletivo que tal padrão é o modelo ideal que pode gerar outros exemplares perfeitos, perfeitamente padronizados segundo as preferências estéticas, culturais – sim, porque há culturas em que o padrão de beleza não obedece àquele da Barbie, por exemplo. O amor adolescente, ou dos adolescentes, é o amor da auto-afirmação: usa-se o Outro, o mais belo possível, para, a si mesmo, afirmar-se como belo, comobom reprodutor” (ou “boa reprodutora”) para futuros “bons reprodutores”. No final de tudo, mascarada nas disputas pelo ideal, está a Vontade de vida, o desejo de preservação... a seleção natural.

10.

O que a cauda do pavão representa para o pavão, para o cortejo da sua fêmea, também a música para os músicos, a pintura para os pintores, as esculturas para os escultores, a poesia para os poetas, e assim por diante, nas artes e nos ofícios, e mesmo na vagabundagem. Tudo no mundo, no final das contas, se resume no violento jogo da Vontade de vida que, para manter-se, lança indivíduos contra indivíduos, unindo-os ou separando-os na permanente guerra em busca dos melhores padrões genéticos, estéticos. Exemplares de boa qualidade geram exemplares ainda melhores - não “perfeitos”, mas aperfeiçoando-se, para que o mais apto sobreviva -, é a regra mais comum dessa biologia amorosa. Afinal, disso tudo, desses “jogos de amor”, ou dessa seleção natural, naturalíssima, dependem as próximas gerações. O “amor” é um artifício da Vontade, e não lhe cabe mais nada a não ser a obediência cega, mesmo que você não admita um mecanismo tão fechado, ou se perceba amando. O amor romântico, como uma sombra deste outro, é a sua sublimação idealística, uma invenção cultural e, pior caso, o desejo humano de transcendência, de encontrar um sentido para os tantos sem-sentidos do mundo, no mundo... o trágico32.

11.

Há duas seções de Aurora (escrito entre 1880 e 81) em que Nietzsche, já dando claros sinais de seu desapego por Schopenhauer e Wagner – que tanto o influenciaram no passado –, enfatiza uma força motriz que, no humano e em comparação à Vontade, impulsiona-o para o progresso, mesmo quando este ou esta “força” o torna mais infeliz, sacrificando-o. Trata-se da “paixão do conhecimento”, como pode ser visto nas seções 45 e 429 da referida obra. Tal força, conforme ele, é também uma vontade, uma “vontade de verdade”, conforme já havia sido tratado em Além do bem e do mal (§1). “Essa nova paixão”, diz Paulo César de Souza, tradutor da edição portuguesa que usamos aqui, “é entendida, num plano universal, como o impulso em que a humanidade mesma se sacrifica em prol do conhecimento”33. De fato, o célebre início da Metafísica de Aristóteles já é indício claro desse impulso para o saber, que o Estagirita também chama de amor: “Todos os homens, por natureza”, diz ele, “tendem ao saber. Sinal disso é o amor pelas sensações. De fato, eles amam as sensações por si mesmas, independente da sua utilidade e amam, acima de tudo, a sensação da visão”34. Através dos olhos, que no Evangelho são chamados de “janelas da alma”, nos chega, principalmente, o mundo, e com ele as imagens que ficam gravadas em nossa memória sentimental, nosso entendimento razoável. “Por que tememos e odiamos um possível retorno à barbárie? Porque ela tornaria os homens mais infelizes do que são?”, Nietzsche pergunta de modo retórico, respondendo logo em seguida: “Ah, não! Em todos os tempos os bárbaros tiveram mais felicidade, não nos enganemos! – Mas nosso impulso ao conhecimento é demasiado forte para que ainda possamos estimar a felicidade sem conhecimento ou a felicidade de uma forte e firme ilusão; apenas imaginar esses estados é doloroso pra nós! A inquietude de descobrir e solucionar tornou-se tão atraente e imprescindível para nós como o amor infeliz para aquele que ama: o qual ele não trocaria jamais pelo estado de indiferença; – sim, talvez nós também sejamos amantes infelizes!35” Quando nos acreditamos no amor romântico, é que nos achamos embriagados por uma emoção que nos toma de assalto, prendendo a razão nalgum calabouço medonho... e sofremos antes pelo que sofreremos depois. Mesmo assim, qual viciado que sabe que morre, recorrendo àquela substância que lhe prende e mata, voltamos a sonhar quando, numa manhã como esta, nos chega uma correspondência de longe, e com ela um livro de poemas que fala de “um desejo que havia, desde o início, de encontrar uma coisa que faltava...36” Do mesmo modo, analogamente, acreditamos no conhecimento, amando-o com igual teor etílico; mesmo quando este só traz a dor, mas ainda assim alguma verdade com ela. Nietzsche, embora tenha esboçado tal teoria do Desejo de conhecimento como outra fonte motora da Vontade, não consegue escapar da sombra de seu antigo mestre: Schopenhauer.

Continua e conclui a seguir...



32 Sobre o “trágico” e o “pessimismo” na obra de Schopenhauer, ver: PHILONENKO, Alexis. Schopenhauer: una filosofia de la tragedia. Trad. do original francês, para o castellano, feita por Gemma Muñoz-Alonso. Barcelona, 1989. 333p.

33 SOUZA, Paulo César de. Posfácio. In: NIETZSCHE, Fridrich. Aurora: reflexões sobre os preconceitos morais. Trad. notas e posfácio de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 311.

34 Met., Livro A, 1, 980. ARISTÓTELES. Metafísica: ensaio introdutório, texto grego com tradução e comentário de Giovanni Reale. Trad. de Marcelo Perine. São Paulo: Loyola, 2002. v. 2.

35 Aurora, §429. NIETZSCHE, Fridrich. Aurora: reflexões sobre os preconceitos morais. Trad. notas e posfácio de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 225.

36 Trata-se do livrinho Heitor e Amália (Ed. do Autor, 2009), de Déa Acioly, que nos foi presenteado em 09 de dezembro do mesmo ano do lançamento.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

8.

O americano Stanley Kubrick foi reconhecido como um diretor excelente quando, em 1968, adaptou o livro de Arthur C. Clarke (2001: a space odissey), com quem também escreveu o roteiro do filme, homônimo, levando-o às telas do mundo inteiro. 2001 “ainda é o maior de todos os filmes de ficção-científica”, diz Owen Gleiberman, no Entertainment Weekly. 2001 também é, de acordo com o respeitado American Film Institute, o melhor filme sobre ficção científica já feito. Steven Spielberg, por fim, chegou a dizer que 2001 foi o “Big Bang” das produções do gênero. Três anos depois, em 1971, Kubrick levou às telas o perturbador A laranja mecânica, que é a adaptação de um outro livro, do inglês Anthony Burgess (A clockwork orange), lançado em 1962. De Kubrick, você também já deve ter visto – e caso não tenha, veja logo -, por sinal o seu último filme feito em vida (ele morreu de ataque cardíaco no dia 07 de março de 1999, aos 70 anos), De olhos bem fechados, que é mais fácil de digerir do que o livro do austríaco Arthur Schnitzler, Traumnovelle, de 1926, que foi de onde o filme foi baseado.

Adaptação genial, Kubrick, seguindo os passos de Schnitzler, explora e desvela os mecanismos da cultura que é, pelo desejo de eterna felicidade e do sexo limpo, estruturada sobre a farsa da civilização, da civilidade. Pois não é isso que Schnitzler/Kubrick quer dizer, afinal, com o seu De olhos bem fechados? Desde os atores sociais até os indivíduos isolados, todos estão, de certo modo, num grande baile de máscaras. Nessa estrutura montada através dos anos e dos poderes, quebrar certas regras constitui-se, para que a civilidade se mantenha em statu quo, crime. Códigos ditam condutas que, caso a coerção não baste, a punição seja aceita como legal, legítima. Para ser aceito no grupo é preciso confessar a fé no Estado, nas instituições seculares ou religiosas, no poder estabelecido. Do mesmo modo, as sociedades (políticas), como as “sociedades secretas” ou as “religiões de mistério”, defendem certas leis e certas regras que devem ser aceitas/recebidas como herança ético/moral comum (mesmo que a origem de algumas ações práticas sejam obscuras em seus fundamentos), como bilhete de ingresso no baile: se é um baile de máscaras, mister é que todos estejam com os rostos cobertos. O amor e suas consequências (casamentos, filhos, estrutura social) foi, e ainda é para muitos grupos, uma dessas leis – “lei divina”, “instituição sagrada”, apregoam os ministros religiosos com voz impostada, que é para dar mais status à norma. O grande “segredo” de tudo isso é que não há segredo algum, como dizia Fernando Pessoa, enquanto Alberto Caeiro, falando sobre o mistério das coisas: “O mistério das cousas? Sei lá o que é mistério! / O único mistério é haver quem pense no mistério. / Quem está ao sol e fecha os olhos, / Começa a não saber o que é o sol / E a pensar muitas cousas cheias de calor.31

É certo que, na primitividade, o homem amava mais puramente, caçando o objeto do seu desejo (seu instinto natural o levava a isso), desconhecendo as “leis da conquista” amorosa, desenvolvidas ao longo dos séculos pela civilidade, ou por sua noção: o dar flores, chocolates, essas coisas... Prevalecia, acima de tudo, o instinto de sobrevivência e, com ele, a cortesia mínima, natural, mas eficiente. Tal cortesia, mínima, como a que é encontrada nos animais sem cérebro, também estava nele – mas era menos maquiada, menos documentada em romances, filmes, novelas, poemas, canções, et cetera. E por causa dela, ele também se exibia – como faz o pavão com a sua cauda –, também matava, também morria. A razoabilidade fez toda a diferença.

Com o progresso das civilizações, aperfeiçoaram-se as máscaras e os mecanismos de conquista; inventou-se, por fim, o amor romântico, e os casamentos por amor. E o lado natural do amor puro, primal, foi domado e mitificado sob o signo do mistério, do romantismo, da civilidade (sexo, só na alcova), da perfeição metafísica (sexo, só depois do enlace matrimonial, na presença de um religioso e de testemunhas)...

O tempo mudou e, com ele, certas sanções morais; mas a mitificação do amor romântico, mesmo aí, não teve alterações tão substanciosas. Acontece que o amor ideal é um produto conceitual e, assim sendo, serve bem ao Mercado: para o comércio de livros, de roupas, de filmes, de canções, et cetera. Todavia, uma questão central: o que seria da arte em geral sem essa mitificação? Ora, a arte, toda ela, está fundamentada sob o mito do amor romântico como sublimidade, sublimação do fenômeno ao ideal/metafísico ou como escape desse, como enfrentamento ao trágico puramente mundano. Na primeira acepção, a confusão (co-fusão) toda se faz pela adequação do amor natural ao amor sublime, como se fossem uma e a mesma coisa, ou como se aquele fosse dependente deste, devendo-lhe reciprocidades, portanto. O amor erótico, menor (imperfeito, acidental), assim, derivaria do ágape (perfeito, puro), maior. Acontece que, tanto esse quanto aquele, diferentemente do modo como a cultura, mais comumente, os coloca, estão a serviço do amour de soi: o único que é realmente experienciado em toda a sua plenitude, o único que é sobre tudo e sobre todos, embora jogado debaixo do tapete da cultura, da civilidade. É por isso que todos os que não atentam para esses mecanismos do desejo estão, como diriam Schnitzler e Kubrick, de olhos bem fechados.


A sociedade cristã-ocidental: um baile de máscaras. Cartaz americano para o filme Eyes wide shut (1999), de Stanley Kubrick, baseado no livro de Arthur Schnitzler (1862-1931)


Continua...

31 CAEIRO, Alberto (Fernando Pessoa). O guardador de rebanhos. In: PESSOA, Fernando. Ficções do interlúdio: 1914-1935. Org. de Fernando Cabral Martins. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 218.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

6.

Lou Andréas-Salomé (1861-1937), que foi aluna de Freud, em um livro de 1910 – Die Erotik (O erotismo) –, expõe em grandes linhas essas noções de Vontade/amor/instinto de preservação. Lou foi, dentre outras artes, considerada responsável pelo suicídio de Paul Rée (ele atirou-se a um precipício, em 1901), por influenciar na loucura de Nietzsche (há quem conteste tudo isso, é claro) e de Reiner Maria Rilke – nome com o qual ela o rebatizou, em lugar de René, que julgava meio efeminado. Rilke também cometeria suicídio, afogando-se num rio, em 1926. Tanto a morte de um quanto as loucuras dos outros, conforme dá a parecer H. F. Peters, em My sister, my spouse – a biography of Lou Andreas-Salomé (1962), foram causadas pelo amor que todos lhe tinham, sem que pudessem possuí-la, como queriam 26 – e não existe amor sem sentimento de posse, só o ágape, mas o ágape é Idealismo. Lou, que tinha insaciável gana de liberdade, era inquebrantavelmente fiel a si mesma e, por isso, era incapaz de ser fiel a qualquer um que não a si-mesma; rejeitava a fidelidade por amor à fidelidade, pois, do contrário, trair-se-ia 27. É que o amor, para Lou, como já foi dito por toda parte aqui, é tão somente nosso instinto mais primitivo, coisa biológica que a razão explica, mesmo que queiramos complicá-lo com sublimidades extramundanas. Sim; a idealização que dele, às vezes, se faz, escapa ao seu mais intrincado fundamento – e aí o erro de amar demais, perder-se no (ou de) amor 28. “Para Lou”, diz H. F. Peters, “o amor sexual é antes de tudo uma necessidade física, como a fome ou a sede, e só pode ser bem compreendido se for considerado assim. Tendo raízes no subsolo de nossa vida, vamos encontrá-lo associado até mesmo aos processos puramente vegetativos do nosso corpo, como os sonhos. É uma força animal, pura e simples, mas no homem, animal superior, a pulsão sexual está combinada com uma influência mental que provoca uma excitação nervosa. A pulsão sexual transforma-se então em sensação. Isso leva a idealização romântica do amor e ao desejo de sua permanência. Exigimos daqueles que amamos uma fidelidade eterna” 29. Nem que tal fidelidade seja à nossa própria idéia infiel.

7.

Freud foi amigo pessoal e professor de Lou. Ela, em 1931, dedicou-lhe o livro Main dank na Freud (Minha gratidão a Freud). O pai da psicologia, mais adiante, confirmaria e ampliaria as teorias românticas de sua discípula. Teorias que já podiam ser vistas em Darwin e Schopenhauer, e nos seus contemporâneos Nietzsche e Rilke, de quem ela foi mais que uma... amiga. O amor, para Lou, é uma necessidade humana, e não tem beleza nenhuma senão esta mesmo: da vida que pulsa, que quer viver. O amor de Lou é interpretado por Peters naquela mesma noção tão schopenhauereana: “Na realidade, porém, toda necessidade humana é logo satisfeita e reclama, a grandes gritos, uma modificação. O amor realizado morre de saciedade”30. Mas, disso, já tratamos aqui.


Continua...
_____________________________

26 Em relação a esse desejo de posse do que ama pelo objeto do seu amor, Schopenhauer diz que “hay un instinto muy determinado, muy manifesto, y sobre todo muy complejo, que nos guía en la elección tan fina, tan seria, tan particular de la persona a quien a quien se ama, y la posesión de la cual se apetece” (SCHOPENHAUER, 1993, p. 52).

27 Para tais considerações: PETERS, H. F. Lou: minha irmã, minha esposa. Trad. de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1986. p. 232.

28 A idéia de um amor de perdição, num sentido sublimado, aparece por toda a obra de Agostinho de Hipona (354-430): é perdendo-se no amor de/a Deus que, a mim mesmo, me encontro. Neste sentido, os nove primeiros livros das Confessiones – redigido de 397 a 401 – são exemplares. No sentido romântico-mundano, mas ainda mantendo a sublimidade que a obra de Agostinho consagra em um nível mais espiritual, evidentemente, o português Camilo Castelo Branco (1825-1890) fez a expressão ficar mundialmente conhecida com a novela Amor de perdição, de 1862.

29 PETERS, 1986, p. 224.

30 PETERS, 1986, p. 225.

LinkWithin

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...