11.
Do desejo de
eternidade, da libertinagem & de outros amores que se equivalem
Angelus Silesius, místico medieval, dizia:
Para,
aonde vais correndo, se o céu está em ti?
E
procurar Deus alhures é perdê-lo sempre.1
De semelhante modo, Mestre Eckhart dizia, nas Conversações espirituais:
Há
pessoas que se afastam totalmente dos homens; gostariam de viver sempre
sozinhos ou na igreja e pensam que nisto encontram paz. Perguntaram-me: Isso
tudo é o melhor? Eu respondi: Não! Vê por quê: Se alguém está bem, estará bem
em todos os lugares e no meio de todo tipo de pessoas. Se está mal, estará mal
em todos os lugares e no meio de todo gênero de pessoas.2
São variantes óbvias do que, antes, em Agostinho, estava escrito:
“Não saias de ti, volta-te para ti mesmo, a verdade habita no homem interior.3” A perspectiva, nos três autores, é
teológica. Mesmo por tal perspectiva, o mergulho no Eu é ponto de partida para
o Super-Eu, que chamamos de Deus, Fundamento Último, Absoluto, etc. É a
constatação de Feuerbach, pelo viés do materialismo histórico, em que o homem aparece
como havendo invertido a sua posição histórico-existencial no mundo, no binômio
criador/criatura.4
Para além da ortodoxia teológica, o pensamento livre sobre
nós mesmos, sem loucura e sem paixão, aponta para a Vontade de sermos mais que
isto: finitude, limite, angústia, desespero, solidão. A ideia de
“transcendência” não é mais que a sensação introspectiva, droga natural, nos iludindo
com um “ir além de nós mesmos”. Mas, como? Está tudo aí, em nós, em nossa
mente. Fora isso, não há mais nada. “A teologia”, Quintana escreve no Caderno H, “é o caminho mais longo para
chegar a Deus.5” E isso parece resumir, atualizar
e modernizar tanto Agostinho, quanto Silesius e Mestre Eckhart.
O céu, a verdade, o amor, o inferno... Tudo está em nós,
de onde não podemos sair, na experiência relacional com o Outro, e com o Mundo.
Mesmo quando acreditamos poder enfrentar o nosso Eu, animados pelo discurso
moral que procura sufocá-lo, julgando-o impróprio e inadequado ao sentimento de
compaixão, às normas da fé e da civilidade. Mas, ah!, que amor conhecemos,
senão o nosso?, ou melhor: que está em nós – mesmo quando acreditamos poder devotá-lo às artes,
às ciências, às doutrinas, às mulheres e/ou aos homens. Antes do pensamento, a
vida. É a constatação do cogito,
ergo sum, de Descartes6 – semelhante à outra mais antiga, de,
novamente, Agostinho: si fallor,
sum7.
De fato, “cultivamos o hábito de viver antes de adquirir o de pensar”, afirma
Camus, n’O mito de Sísifo8. Sabe-o bem Don Juan, profundamente
analisado por Camus, na segundo parte (O homem absurdo) d’O mito. Já em A queda,
depois que o seu narrador, Jean-Baptiste
Clamence (o “juiz-penitente”), volta a mencionar o lendário amante
espanhol, é o desejo da imortalidade do Eu que, aí, afinal, torna a se
manifestar, pelo amor – o amour de soi,
naturalmente. “Desesperado do amor e da castidade, compreendi, enfim, que
restava a libertinagem, que substitui muito bem o amor; faz calar os risos,
restabelece o silêncio e, sobretudo, confere a imortalidade.9” Trata-se de uma confissão.
A virtude penitencial (restritivo-punitiva), por amor ao Sumo Bem e à
eternidade – no sentido de salvação eterna, aqui –, conforme ensinado pela Igreja
Cristã, vê a libertinagem como entrave ao seu sucesso, e procura castigá-la:
senão no corpo (vide o sofrido Lutero, antes de revoltar-se contra a Igreja de
Roma; vide o atormentado São Francisco Solano... exemplos semelhantes são incalculáveis),
no intelecto. “Pois eu sei que em mim – quero dizer em minha carne – o bem não
habita”, o apóstolo diz10. De um
ou de outro modo, o desiderium é um,
somente: salvar a própria pele, a própria alma. Já Nietzsche, no Zaratustra, trata do desejo da eterna
beatitude do corpo, para o corpo, contra toda a dor do mundo, e por todo o
prazer que ele oferece:
E se quisestes,
algum dia, duas vezes o que houve uma vez, se dissestes, algum dia: “Gosto de
ti, felicidade! Volve depressa, momento!”, então quisestes a volta de tudo –
Tudo de novo,
tudo eternamente, tudo encadeado, entrelaçado, enlaçado pelo amor, então, amastes o mundo –
– Ó vós, seres
eternos, o amais eternamente e para todo o sempre; e também vós dizeis ao
sofrimento: “Passa, momento, mas volta!” Pois
quer todo o prazer – eternidade!11
Retire-se o inferno ou o paraíso da eternidade e a teologia cristã
perde o seu sentido, e a própria ideia de Deus. Sim, depois que o corpo morre –
é doutrina da Igreja –, o espírito que o habitava, agora está livre12, mas não será somente espírito, eternamente. Na ressureição, o desencarnado recebe
um novo corpo: destinado à vida beata ou à danação eterna. Sem o corpo, não há
consciência; sem consciência, não há o Eu punido ou premiado. O corpo, mesmo
transformado, permanece, precisa permanecer: para o prazer ou para a dor.
Mesmo aos libertinos, aos que não têm fé em Deus, ou na eternidade mal
ou bem-aventurada, ainda há um natural desejo de permanência post-mortem. O que isso mostra? Que a vida
– que está em nós, fazendo com que desejemos ainda viver quando não houver mais
vida – quer viver; vida é Vontade de
vida. O “juiz-penitente”, em Camus, faz referência a tal vontade, ilustrada na
confissão: “Eu tinha vivido sempre na libertinagem, pois nunca deixei de querer
ser imortal. Não seria essa a essência da minha natureza, e também a consequência do grande amor por mim mesmo? Sim, eu morria
de vontade de ser imortal. Eu me amava demais para desejar que o precioso
objeto de meu amor desaparecesse para sempre.13”
E que objeto seria esse? O corpo, e a consciência que nele habita: o Eu consciente-de-mim-mesmo. A dicotomia
(tempo/eternidade) é explicada na de-cisão
pelo real (ratio) em detrimento do
ideal (fides): “Em nosso estado de
vigília e em nosso pouco conhecimento, não encontramos razões válidas para que
a imortalidade seja conferida a um macaco lascivo; assim, faz-se necessário
descobrir substitutos para essa imortalidade. Como eu desejava a vida eterna,
dormia com prostitutas e bebia durante noites inteiras.14” O realismo d’A queda é cru, brutal, desesperado.
Mesmo assim, e embora por outro viés, o anseio do “juiz-penitente” não é estranho aos
anseios das pessoas mais comuns, no que tange aos nossos destinos – nossos
destinos amorosos: Eu > seu objeto (o Tu, o Outro, o Mundo) < Eu. No
primeiro capítulo de Essays in Love,
de Alain de Botton, podemos ver isso de modo muito bem exposto: “O anseio por
um destino não é em nenhuma parte mais forte do que em nossa vida romântica.15” E, para o que se segue, ou se
seguirá, as questões: “Por tantas vezes forçados a dividir nossa cama com
aqueles que não têm acesso a nossa alma [Don Juan,
Jean-Baptiste Clamence, outros...], não podemos ser perdoados se acreditamos
(contrariamente a todas as regras de nossa era iluminada) que estamos
destinados a um dia encontrar o homem ou mulher de nossos sonhos?16” Perfeitamente!
Ah, os nossos sonhos! Quem nunca teve de abandonar alguns
– a maioria, talvez – quando a realidade da vida, crua, brutal e desesperada,
se abateu sobre eles? “Sonhos, sonhos são”, o Chico poetiza, coberto de razão17. O anseio por um destino amoroso – e
daí a felicidade mais feliz – é coisa comum aos indivíduos. Nosso objeto, nosso
destino, nossa felicidade. Não há nada externo, nem o objeto amado... está tudo
em nós: o querer e o realizar, quando possível. “Não podemos ser perdoados por
uma certa fé supersticiosa numa criatura que será a solução dos nossos anseios
incansáveis?18” Mesmo inconscientes, é
o que afirmamos, positivamente. Para encontrar (ou reencontrar19) tal criatura, e com ela a felicidade,
nos submetemos às odisseias da conquista, ou ao resgate do antes conquistado, e
perdido – como um Odisseu que deseja voltar à sua Ítaca, e aos braços da sua Penélope;
como Orfeu que vai ao Hades em busca de sua Eurídice, que é preferível mais que
todas as mulheres da Trácia; e como Alceste, morrendo em lugar do amado, a fim
de que ele viva20 –, nos submetemos ao
inferno do amor romântico, crentes no seu prêmio.
Se o sofrimento é o pagamento por uma grande conquista
amorosa – ou a recompensa da nossa fé, ou outra recompensa que dê algum
sentindo à nossa vida –, não apenas não o
evitamos, como também o buscamos, já felizes.21
Ah, os nossos sonhos!, a nossa paixão!, a nossa
loucura!
1
Citado em: BRIÈRE, Yveline. (Org.). O
livro da sabedoria. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 182.
2
ECKHART, Mestre. Conversações espirituais. In: _____. O livro da Divina Consolação e outros textos seletos. 5. ed.
Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2005. p. 105. (Col.
Pensamento Humano).
3
De vera religione, 39, 72. AGOSTINHO, Santo. A verdadeira religião; O
cuidado devido aos mortos. São Paulo: Paulus, 2002. (Col. Patrística, 19).
4
“A religião é a cisão do homem consigo
mesmo: ele estabelece Deus como um ser anteposto a ele, Deus não é o que o
homem é, o homem não é o que Deus é. Deus é o ser infinito, o homem, finito;
Deus é perfeito, o homem imperfeito; Deus é eterno, o homem transitório [etc.].
O que deve ser demonstrado é então que esta oposição, que esta cisão entre Deus
e homem, com a qual se inicia a religião, é uma cisão do homem com a sua
própria essência.” (FEUERBACH, Ludwig. A
essência do cristianismo. 2. ed. Campinas, SP: Papirus, 1997. p. 77). E, sobre isso, o elogio de Marx a
Feuerbach: “No que diz respeito à Alemanha, a crítica da religião está, no
essencial, terminada, e a crítica da religião é a condição preliminar de toda a
crítica. [...] O fundamento da crítica irreligiosa é: foi o homem quem fez a religião, não foi a religião que fez o
homem. Realmente, a religião é a consciência de si e o sentimento de si que
possui o homem que ainda não se encontrou, ou que se tornou a perder. Mas o homem não é um ser abstrato escondido
algures fora do mundo. O homem é o mundo
do homem, o Estado, a sociedade. Este estado, esta sociedade, produzem a
religião, consciência invertida do mundo,
porque eles próprios são um mundo invertido.” (MARX, Karl. Crítica da Filosofia
do Direito de Hegel. In: _____ & ENGELS, Friedrich. Sobre a religião. Lisboa: Edições 70, 1975. p. 47-8).
5 QUINTANA, Mario. Caderno H. Porto Alegre: Editora Globo, 2006. p. 219.
6
Ou: “Penso, logo existo.” Cf. DESCARTES, Rene. Discourse on method. New York: The Liberal Arts Press, 1950. p.
20-21. Veja ainda: DESCARTES, René. Meditações. In: Obra escolhida. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1962. p.
158-9. Meditação quarta. (Col. Clássicos
Garnier).
7 Ou: “Se me engano, existo.” A fórmula: “Quem duvida que vive, recorda, entende, quer, pensa,
conhece e julga. Porque, se duvida, vive; se duvida, lembra-se da dúvida; se
duvida, entende que duvida; se duvida, é porque busca a certeza; se duvida,
pensa; se duvida, sabe que não sabe; se duvida, é porque julga que não deve
concordar temerariamente. E ainda que duvide de todas as outras coisas, não
pode duvidar destas, pois, se não existissem, seria impossível qualquer dúvida.” (De Trinitate, X, 10, 14. AGOSTINHO, Santo. A Trindade. 2. ed. São Paulo: Paulus, 1994. (Col. Patrística). “Mersenne,
já na primeira leitura do Discurso do
Método, e o grande Arnauld, logo depois da publicação das Meditações metafísicas, assinalaram a
Descartes a coincidência surpreendente entre certos raciocínios do grande
Doutor e o argumento do cogito.
Entretanto, é o caso de perguntar se Descartes conheceu efetivamente ou não
tais textos?” (MARROU, Henri. Santo Agostinho e o Agostinismo. Rio de Janeiro: Livraria Agir Editora, 1957. p. 173. (Col. Mestres
Espirituais).
8
CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Rio
de Janeiro: Edições BestBolso, 2010. p. 23.
9
CAMUS, Albert. A queda. Rio de
Janeiro: Edições BestBolso, 2008. p. 77.
10
Romanos 7, 8 (TEB).
11
NIETZSCHE, Friedrich. O canto ébrio. In: _____. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. São
Paulo: Círculo do Livro, [s.d.]. p. 324 [§ 11].
12
Agostinho, por influência de Platão – que recebeu influência dos pitagóricos e
dos órficos –, preserva a ideia de que o corpo é uma prisão à alma. Sócrates
diz a Cebes: “É uma coisa bem conhecida dos amigos do saber, que sua alma,
quando foi tomada sob os cuidados da filosofia, se encontrava completamente
acorrentada a um corpo e como que colada a ele; que o corpo constituía para a
alma uma espécie de prisão...” (Fédon,
83d). A interessante história de Er, que aparece no Livro X d’A República, é contada por Sócrates. Er,
recolhido morto após uma batalha, ressuscita depois de doze dias. Redivivo,
conta o que viu no mundo do além: “Quando a sua alma deixou o seu corpo, pôs-se
a caminhar com muitas outras...” E a sequência do relato é incrivelmente semelhante
às palavras do Cristo, quando fala sobre o dia do juízo (Mateus 25, 32-46). Quando Mônica – mãe de Agostinho – morre, ele
tem ciência de que ela, enfim, tornara-se livre: “Enfim, no nono dia da doença,
aos cinquenta e seis anos de idade, e no trigésimo terceiro de minha vida,
aquela alma piedosa e santa libertou-se
do corpo”. (Confissões, IX,
11,28).
13
CAMUS, 2008, p. 77.
14
CAMUS, 2008, p. 77.
15
BOTTON, Alain de. Petite
philosophie de l’amour. Paris: Éditions Denoël, 1994. p. 7. (Pocket).
16
BOTTON, 1994, p. 7.
17
BUARQUE, Chico. Sonhos, sonhos são. In: _____. As cidades. São Paulo: Abril Coleções /
Sony Music, 2010. p. 35. 1 disco sonoro. Faixa 3 (3 min 15 s). (Col. Chico
Buarque, 16).
18
BOTTON, 1994, p. 7.
19
Neste caso, convém lembrar a recomendação de Nietzsche, sobre a esperança de
“felicidade” em reaver o que foi perdido, na esperança de haver a felicidade
que, uma vez, pensou-se conhecer – como no ditado: “eu era feliz e não sabia.”
–: “E se quisestes, algum dia, duas vezes o
que houve uma vez, se dissestes, algum dia: ‘Gosto de ti, felicidade! Volve
depressa, momento!’, então quisestes a volta de tudo.” (NIETZSCHE, [s.d.], p. 324 [§ 11]).
20
A referência ao ato de Alceste, julgado superior ao de Orfeu, aparece no Banquete, de Platão, no discurso de
Fedro: “A Orfeu, o filho de Eagro, eles [Hades e Perséfone] o fizeram voltar
sem o seu objetivo, pois foi um espectro o que eles lhe mostraram da mulher a
que vinha, e não lha deram, por lhes parecer que ele se acovardava, citaredo que
era, e não ousava por seus amor morrer Alceste, mas maquinava um meio de
penetrar vivo no Hades”. (O banquete,
179 d. PLATÃO. O banquete. In: _____. Diálogos.
2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983. p. 14. [Col. Os Pensadores]).
21
“O homem, o animal mais corajoso e mais habituado ao sofrimento, não nega em si o sofrer, ele o deseja, ele o procura inclusive, desde
que lhe seja mostrado um sentido, um para quê no sofrimento.” (NIETZSCHE, Friedrich. Terceira dissertação: o que significam
ideais ascéticos. In: _____. Genealogia da moral – uma polêmica. São
Paulo: Companhia das Letras, 1999. p. 149 [§ 28]).