12.
Do amor que habita a falta
A sabedoria
popular é formada a partir das experiências
coletivas com o cotidiano, a posteriori.
As suas verdades, no entanto, são aceitas a
priori. Da sabedoria popular, pouca coisa é tão rica quanto os cordéis1 que
são encontrados nas feiras-livres, bancas
de revistas e livrarias em todo o
Nordeste do Brasil, principalmente2. Em um
desses, de autoria de Manoel Monteiro, os desencontros
amorosos são
tratados e retratados com maestria. As duas primeiras estrofes de No vai e vem do amor :
Quando
eu falava com
ela
Quando eu ia, ela voltava
Quando eu voltava, ela ia.
Muito
difícil dar certo
E
o outro nem
chega perto ;
Quando eu voltava, ela ia
Quando eu ia, ela voltava.3
O amor romântico, para sobreviver enquanto
vive – e isso equivale ao “ser
eterno enquanto dure”, do Vinicius –, precisa mesmo
de tal devir, permanentemente devindo: não, e sempre; contrário a si, por si...
Pois que , senão , aniquila-se ainda/já no nascedouro.
Também Alain de Botton, em A natureza do amor4,
respirando os ares d’O banquete de
Platão, no discurso de Sócrates, reproduzindo ideias de Diotima5, faz coro ao poeta popular – e respalda
o dito simplificado, em uma análise não tão simplificada assim. No miniconto,
quem aparece é Ben, com as lembranças de suas primeiras aventuras amorosas, até
às atuais – já sem aquele encanto inicial, coisa da sua juventude, do tempo em que
alimentava a
certeza profunda de que aqui – entre as centenas de
seres cuja presença no campus deixavam-no indiferente – estava uma criatura
cuja existência, de várias formas, seria correspondente à sua própria, que
compartilharia seus entusiasmos, notaria as comoventes vulnerabilidades e
aliviaria sua solidão infindável.6
A mulher amada era Helen
Veale. A mesma que ele perseguiria por todos os lugares, mendigando uma mísera
centelha do seu olhar; a mesma a quem ele jamais possuiria, mas veria fugir do
seu mundo, da sua vida, e casar-se com outro, e ficar gorda, e gerar filhos que
não eram seus, e mostrá-los aí, em um álbum do Facebook, com aquele orgulho que
algumas mulheres ostentam, triunfantes por haverem cumprido a única função à
qual foram colocadas neste mundo: parir.
Mas o amor, ao apaixonado Ben,
“significava ansiedade, incapacidade de comer, uma doença, a contínua fantasia
sexual e, acima de tudo, uma impressão da retidão única e da preciosidade da
amada”7. E o fato de não ter coragem de se
apresentar a Helen e declarar os seus sentimentos não o impedia de conhecê-la naquele
que é o melhor lugar em que se pode conhecer a pessoa amada: na fantasia8. Mas haveria muitas outras, no início
da sua vida adulta.
Uma dessas foi Clare, “uma
violoncelista que morava no andar de baixo, a quem ouvia praticando concertos
de Bach de manhã cedo”, e Beth, “que era operadora de caixa ao lado dele em um
supermercado onde tinha trabalhado durante as férias de verão do segundo ano”,
e Rachel, “a irmã mais nova de um amigo”, e uma mulher sem nome que carregava
um saco de laranjas da Harolds Food Halls, que lhe sorriu com cálidos olhos
castanhos, quando ele saía da estação de metrô Holborn. “Os maiores românticos”,
Botton diz, “devem ser aqueles que não têm ninguém em particular com quem ser
romântico.9” É platonismo, novamente. É a questão
do amor como desejo e falta, e perspectiva. Para Ben, depois de outras tantas relações,
“o amor parecia ser algo mais fácil de se experimentar se houvesse a certeza de
que ninguém concreto ou presente retribuiria a emoção”10. Botton, aí, faz coro com André
Comte-Sponville, interpretando a Diotima de Sócrates, conforme Platão, e
associando-os a Schopenhauer11 e
Proust, dentre outros: “Lembrem-se de Proust em Em busca do tempo perdido” – Comte-Sponville diz –:
“Albertine presente, Albertine
desaparecida...” Quando ela não está presente, ele sofre atrozmente: está
disposto a tudo para que ela volte. Quando ela está presente, ele se entedia:
está disposto a tudo para que ela vá embora. Não há nada mais fácil do que amar
quem não temos, quem nos falta: isso se chama estar apaixonado, e está ao
alcance de qualquer um. Mas amar quem temos, aquele ou aquela com quem vivemos,
é outra coisa!12
Ama-se a fantasia, que se
alimenta no desejo, que é a falta... e a perspectiva (ou esperança, como alguns
preferem). Mas amor romântico realizado é amor perdido, fadado à perdição.
Ben agora estava casado com
Eloise, e tinha dois filhos com ela: uma menina de seis anos, e um menino, com
quatro. Morava em um subúrbio ao norte de Londres. A presença de Eloise, no
entanto, em muitos momentos da sua vida, era igual a de um móvel imóvel depositado
na sala, e ao qual somente se procura quando necessário.
Ele
tinha, por vezes, um profundo sentimento por Eloise, mas, se analisasse o
padrão de suas emoções, teria que admitir que seu desejo só aparecia em um
contexto determinado. Apesar de quase uma década ter se passado, o epicentro do
seu amor continuou sendo o tempo em que Eloise era quase uma estranha, logo
depois do primeiro encontro em um bar em Notting Hill, quando conversaram sobre
a tese que ela tinha acabado de entregar na universidade (rituais de parentesco
em Bornéu); ela, brincando, o acusou de ignorar sua amiga, e ele imaginou como
seria abrir os botões da blusa de algodão.13
O tempo em que ele mais a amou
foi aquele em que a sua presença não era coisa vulgar, aí, dada à mão; como nos
primeiros encontros, em que ela insistia que eles deveriam esperar mais um
pouco, enquanto ele enfiava a mão dentro do seu jeans; ou como quando passaram
um final de semana em Yorkshire, que foi onde transaram pela primeira vez. Depois,
em suas lembranças, ele não sentia mais o amor, não sentia nada... Eloise, um
móvel na sala.
Um dia ela caiu na rua,
quando passeava com Hannah, a filha mais velha. Levada ao hospital, diagnosticou-se
uma intoxicação aguda no sangue, e o médico lhe disse que ela chegou o mais
próximo que se pode chegar da morte. Eloise estava na UTI do
Hospital St Mary, respirando dolorosamente com uma máscara de oxigênio, tinha
tubos enfiados em seus braços e um monitor cardíaco sob a camisola. Assim, e na
iminência de perdê-la, Ben a amou, novamente. Como viveria sem ela, se ela
morresse? Onde encontraria alegria? Foram tantos os momentos bons e ruins com
ela, e isso, de certo modo, fazia com que ela fosse parte dele e... Daí pensou também
que, se ela morresse, a amaria para sempre, definitivamente; mas, se se
recuperasse, como tudo indicava que fosse ocorrer, voltaria a ser o que era
antes: um móvel na sala14. Eloise
presente; Eloise desaparecida.
Então, Ben sentiu a dificuldade peculiar de amar
alguém que não está comprometido com outra pessoa, desinteressado, saindo da
estação em direção a um destino desconhecido ou inexistente. Ele viu que o
maior desafio para o amor poderia nascer da realização do surpreendente sonho
inicial: que se pode viver e possuir o ser amado até o fim.15
O que não temos, o que não
somos, o que nos falta... eis aí os objetos do nosso desejo, do nosso amor16. Parece que a saúde do nosso amor repousa
no caminho do meio
– mas , quem
conheceria tanto equilíbrio ?
1 “O cordel
usa tudo, ou quase tudo, como motivo para criação dos folhetos dos poetas
populares. Desde os romances tradicionais – Carlos Magno e os Doze Pares de
França, a Imperatriz Porcina, João de Calais etc –, que nos chegaram da idade
média, através do romanceiro ibérico, sendo aqui adaptado à ecologia e aos
sentimentos nordestinos, até assuntos históricos brasileiros, fatos ligados à
religiosidade, ao misticismo, à vida campestre, crimes, acontecimentos mais
recentes da atualidade universal.” (MEDEIROS, Irani. Introdução. In: _____. [Org.].
BARROS, Leandro Gomes de. No reino da
poesia sertaneja. João Pessoa: Idéia, 2002. p. 13. [Col. Boi Misterioso]).
2 Na
introdução que faz à coleção Biblioteca de Cordel, da editora Hedra, Joseph M.
Luyten afirma que, “embora a imensa maioria dos autores [de cordéis] seja de
origem nordestina, não serão esquecidos outros polos produtores de poesia
popular, como a região sul-riograndense e a antiga capitania de São Vicente,
que hoje abrange o interior de São Paulo, Norte do Paraná, Mato Grosso, Mato
Grosso do Sul, parte de Minas Gerais e Goiás.” (LUYTEN, Joseph M. Biblioteca de
cordel. In: SILVA, Minelvino Francisco. Cordel.
São Paulo: Hedra, 2000. p. 5-6. [Biblioteca de Cordel]).
3 MONTEIRO,
Manoel. No vai e vem do amor. Campina
Grande – PB, 2004. p. 1. Cordel.
4 BOTTON, Alain.
A natureza do amor. In: Bravo!, São
Paulo, ano 13, n. 171. p. 96-98. 2011.
5 Cf. PLATÃO.
O banquete. In: _____. Diálogos. 2.
ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983. p. 1-53. (Col. Os Pensadores).
6 BOTTON,
2011, p. 96.
7 BOTTON,
2011, p. 96.
8 “A falta de
informação sobre Helen não fora um impedimento para os seus sentimentos – na verdade,
possibilitou sua intensidade particular. Assim como podemos facilmente
identificar um rosto com apenas alguns traços de lápis e construir a ideia de
uma personagem fictícia com apenas algumas linhas, seu conhecimento fragmentado
foi suficiente para construir o retrato de alguém que poderia passar umas
férias com ele nas ilhas gregas, alguém com quem ele dividiria um sorriso
cúmplice ao final de festas, com quem faria amor em trens e compartilharia o
resto de sua vida.” (BOTTON, 2011, p. 96).
9 BOTTON,
2011, p. 96.
10 BOTTON, 2011, p. 96.
11 “Sua vida oscila como um pêndulo, para aqui e para acolá, entre
a dor e o tédio.” (SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo como Vontade e como Representação. São Paulo: Editora
UNESP, 2005. p. 402. [IV, 57]).
12 COMTE-SPONVILLE, André. A felicidade, desesperadamente. São
Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 34. Mario Quintana também trata sobre a
dinâmica da presente ausência do amor ao objeto amado, concreto: “É preciso a saudade
para eu te sentir / como sinto – em mim – a presença misteriosa da vida... / Mas
quando surges és tão outra e múltipla e imprevista / que
nunca te pareces com o teu retrato... / E eu tenho de fechar meus olhos
para ver-te!” (QUINTANA, Mario.
Presença. In: _____. Quintana de bolso:
Rua dos Cataventos e outros poemas. Porto Alegre: L&PM, 2011. p. 59. [Col.
L&PM Pocket, 71]).
13 BOTTON,
2011, p. 97-8.
14 “Tinha entendido que nunca mais
conheceria significado ou alegria sem Eloise ao seu lado – uma sensação que, no
entanto, diminuía estranhamente quanto mais parecia que esse privilégio lhe
seria de fato negado.” (BOTTON, 2011, p. 98).
15 BOTTON,
2011, p. 98. “Há
duas catástrofes na existência: a primeira é quando nossos desejos não são
satisfeitos; a segunda é quando são.” (Bernard Shaw, citado em: COMTE-SPONVILLE,
2001, p. 36).