8.
Da carnavalização dos sentidos
Homens incomuns, doutrinas, festas,
ritos, livros e lugares sagrados... Esperança, Desejo... falta. A fé religiosa – bem
como as doutrinas político-históricas –, qualquer uma, é toda e inteiramente construída
sobre tais fundamentos; que apontam para um
ou vários fundamentos. A ideia de uma
“medida áurea”, uma referência sobre a qual as coisas possam ser sentadas ou medidas como
“isto é melhor que aquilo” ou “isto é pior que aquilo”, etc.
Quando Hemingway afirma que “o
amor é infinitamente mais duradouro do que o ódio”1,
não é de outra afecção que fala senão do amor romântico, reafirmando o seu status ideal, sem considerar as tantas “barreiras” (ou freios) psicológicas que nos foram dadas pela natura, e sem as quais abraçaríamos a
barbárie, celebrando-a em favor do nosso desejo, da sua realização. Há, claro,
a “força do contrário”; isto é, do desejo do meu querer que esbarra no
querer do Outro, mais forte que eu, que
não posso enfrentá-lo, e ao qual me submeto – não por alguma ética ou alguma moral, mas
pelo próprio instinto de preservação. Sem a agência do intelecto, é coisa comum de ser observada no mundo natural. Aos que têm o intelecto, não. O perdedor ganhou, em sua
memória sentimental (ou orgulhosa), a
lembrança da conquista malfadada. Por sua feiura, sua fraqueza, sua debilidade... e
há sempre alguma. É preciso, em favor da sanidade da mente e do corpo,
encontrar um novo objeto a ser conquistado. Novo desejo, O
objeto antigo, agora, parece distante; e o antigo desejo, já, transforma-se em repulsa, ou amizade funcional:
“Olá! Como vai? Adeus.” A moça era linda e inteligente, mas tinha um defeito terrível: não gostava de mim. Como não consigo me odiar – por não ser o que desejo que ela deseje –, odeio-a, por
amor a mim, por amor de mim.
Acontece que a lembrança é, às
vezes, uma “lembrança encobridora” (Deckerinnerung),
um “lembrar-se de esquecer”, inconsciente. Algo que se
faz, agora, tem a função de apagar o que
foi feito, e que não foi bom – mas eu nem percebo isso, simplesmente faço,
em obediência a um comendo mental que existe em favor da minha saúde.
“Portanto, se quero viver, devo esquecer...” Algo assim, como é dito por Roland Barthes em sua aula inaugural, como professor na cadeira de semiologia
literária, no Collége de France.2
Mais que a lembrança, o esquecimento
é tão necessário quanto o comer, o respirar, o beber... O “duradouro”, porém –
em nossa memória sentimental, na perspectiva
romântica ou realista –, permanece. O “duradouro” é a lembrança esquecida daquilo
que me fez ser como sou, e está
relacionado ao próprio Eu que se lembra, que se esquece; que se lembra de
esquecer, que se lembra de lembrar; este Eu do qual não posso, nunca, escapar...
a não ser com o suicídio: a única questão filosófica realmente séria: “Só existe um problema filosófico realmente sério: o suicídio. Julgar se a vida vale ou não vale a pena ser vivida é responder à pergunta fundamental da filosofia.3” E, no poema de Emily Dickinson:
Ourself
behind ourself, concealed –
Should
startle most –
Assassin
hid in our Apartment
Be Horror’s least.4
A questão – da fuga do Eu,
desfavorável a mim, por minha “sorte ruim” e sua memória renitente – é colocada
por Camus, de cara, logo no início de O
mito de Sísifo (1942); é a primeira frase do primeiro parágrafo. Mais
adiante, falando dos “muros absurdos”:
Os grandes sentimentos levam consigo o seu universo, esplêndido ou miserável.
Iluminam com sua paixão um mundo
exclusivo, onde eles encontram seu
ambiente. Há um universo do ciúme, da ambição, do egoísmo ou da generosidade.
Um universo significa uma metafísica e uma atitude de espírito. O que é verdade
para sentimentos já especializados, será ainda mais para emoções cuja base é
tão indeterminada, ao mesmo tempo tão confusas e tão “certas”, tão distantes e
tão “presentes” quanto aquelas que a beleza nos oferece ou que o absurdo
suscita.5
Grandes sentimentos têm a ver,
inescapavelmente, com o Eu, e com a sua fé na possibilidade de... um feliz “mais adiante”. Quando não há
esperanças (ou um motivo pelo qual a vida valha a pena), a extinção do Eu aparece
como remédio (e corresponde, não por acaso, à “salvação”, no budismo... mas sem a
hipótese do suicídio). Em Émile Durkheim, os suicídios são de três tipos:
egoísta, altruísta e anômico6. Todos
eles, no final, são reações do Eu (consciente) contra o Eu (às vezes inconsciente),
contra a sua condição no Mundo. O louco não comete suicídio sem algum lampejo
consciente do Eu, na razão – embora o senso comum julgue isso ao contrário. E quando isso não é assim, é o acidente; como a criança que não
vê o perigo, e se lança ao abismo.
Quando Seymour, o personagem mais querido de J. D. Salinger, mete
uma bala em sua própria cabeça, no final de “Um dia ideal para os
peixes-banana”, não há – e essa é a parte mais feliz do conto – um motivo
aparente; ele que, antes, parecia tão feliz, brincando e conversando
alegremente, na praia, com a pequenina Sybil Carpenter. Em Seymour, Salinger,
parece, realiza o que, em vida, nunca ousou: o suicídio. Salinger
morreu com 91 anos, “de causas naturais”, em 28 de janeiro de 2010, em sua
casa, em New Hampshire, EUA. Noutro conto, “Para Esmé, com amor e
sordidez”, Salinger é, muito claramente, o soldado que conversa com a garota:
– Você tem um senso de humor muito apurado, não é? –
falou, suspirosa. – Papai dizia que eu não tinha nem um pouco de senso de
humor. Que eu estava despreparada para enfrentar a vida porque não tinha senso
de humor.
Encarando-a, acendi um cigarro e disse-lhe não
acreditar que o senso de humor tivesse qualquer utilidade numa hora de aperto.
– Papai disse que tinha.
Tratava-se de uma afirmação de fé, não de um
contra-argumento, por isso resolvi bater rapidamente em retirada.7
O amor é “amor de nada ou de algo” (de um indivíduo por outro, ou por um
objeto; do fiel para com o seu deus, ou
à sua Ideia), e “é de consigo ter
sempre o bem”, como Sócrates afirma, repetindo Diotima8.
O amor é a afirmação da fé daquele que
ama, e sua confissão objetiva na
subjetividade da vontade: o Eu voltado para si.
– Ama o amante o que é belo; que é que ele ama?
– Tê-lo consigo – respondi-lhe.
– Mas essa resposta – dizia-me ela – ainda requer
uma pergunta desse tipo: Que terá aquele que ficar com o que belo?
– Absolutamente – expliquei-lhe – eu não podia mais
responder-lhe de pronto essa pergunta.
– Mas é, disse ela, como se alguém tivesse mudado a
questão e, usando o bom em vez do belo, perguntasse: Vamos, Sócrates, ama o amante
o que é bom; o que é que ele ama?
– Tê-lo consigo – respondi-lhe.9
As declarações de amor ou confissões afetivas sobre o Outro, sobre o
tanto que eu gosto dele, têm o fito
de mantê-lo enquanto objeto de deleite do meu próprio Eu. No “eu te amo” há, intrinsecamente (e
inconscientemente): “amo você não por
você mesma, mas porque me amo, e
encontro em ti o que me satisfez.” Ou
seja: a beleza do corpo (propaganda da saúde, para a geração de indivíduos igualmente
bonitos e saudáveis), e da alma: empatia, aspirações correspondentes, et cetera. “Não é o que é seu, penso, que cada um estima? A não
ser que se chame o bem de próprio e de seu, e o mal de alheio; pois nada mais
há que amem os homens senão o bem [deles mesmos]”10. E, antes: “o Amor é amor pelo belo.11” E, depois: “Por isso, quando do belo
se aproxima o que está em concepção, aclama-se, e de júbilo transborda, e dá à
luz e gera; quando porém é do feio que se aproxima, sombrio e aflito
contrai-se, afasta-se, recolhe-se e não gera, mas, retendo o que concebeu,
penosamente o carrega. [...] [O amor é] da geração e da parturição no belo.12” O amor desinteressado – o Eu
esquecido de si – é ágape, isto é:
idealismo. Isto é: nada é. E é: delírio febril da razão, ou metafísica
teológica.
Na Vontade, a beleza do corpo é saúde, garantia de geração saudável – Eros. A valoração do feio – que está
relacionado à administração salvífica da graça, na doctrina christiana – é, em Nietzsche, atraso do progresso da
espécie, e seu declínio – ágape. Daí
a crítica de Nietzsche ao programa cristão, em O anticristo. Maldição ao cristianismo (Der Antichrist. Fluch auf das Christentum), de 1888:
O cristianismo tomou o partido de tudo o que é
fraco, baixo, malogrado, transformou em ideal aquilo que contraria os instintos de conservação da vida forte; corrompeu a
própria razão das naturezas mais fortes de espírito, ensinando-lhes a perceber
como pecaminosos, como enganosos, como tentações
os valores supremos do espírito. E exemplo mais lamentável – a corrupção de
Pascal, que acreditava na corrupção de sua razão pelo pecado original, quando
ela fora corrompida apenas pelo seu cristianismo!13
No amor romântico, como na teologia clássica, “‘Fé’ significa não querer
saber o que é verdadeiro”14, pois
a fé não duvida, aceita... pela fé. “Onde está o sábio? [...] Onde está o
raciocinador deste século? Acaso Deus não tornou louca a sabedoria deste mundo?15” Pela fé, a razão e o realismo são rebaixados,
em favor do idealismo... e do carnaval dos sentidos.
1 HEMINGWAY,
Ernest. Vida. In: HOTCHNER, A. E. (Ed.). A boa vida segundo Hemingway. São Paulo: Larousse do Brasil,
2008. p. 120.
2 BARTHES,
Roland. Aula. São Paulo: Cultrix,
1996. p. 46. O texto de Barthes, naturalmente, não tem a mesma intenção que o
meu – embora não seja dissonante. Aproprio-me do mesmo na intenção de ilustrar
o que eu mesmo digo, como licença poética.
3 CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Rio
de Janeiro: Edições BestBolso, 2010. p. 19.
4 “O ‘eu’, por trás de nós oculto, /
É muito mais assustador, / E um assassino escondido em nosso quarto, / Dentre
os horrores, é o menor.” (DICKINSON,
Emily. Poemas escolhidos.
Porto Alegre: L&PM, 2007. p. 57. [Col. L&PM Pocket, 436]).
5 CAMUS, 2010,
p. 25.
6 DURKHEIM,
Émile. O suicídio. Rio de Janeiro: Zahar,
1982.
7 SALINGER, J. D. Para Esmé, com amor e
sordidez. In: _____. Nove histórias.
3. ed. Rio de Janeiro: Editora do Autor, [s.d.], p. 86.
8 O banquete, 206 a. PLATÃO. O banquete. In:
_____. Diálogos. 2. ed. São Paulo:
Abril Cultural, 1983. p. 37. (Col. Os Pensadores).
9 O banquete,
204 d-e.
10 O banquete, 206 a.
11 O banquete, 204 b.
12 O banquete, 206 d-c.
13 NIETZSCHE,
Friedrich. O anticristo: Maldição do
cristianismo: Ditirambos de Dionísio. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p.
12 [§ 5]).
14 NIETZSCHE,
2007, p. 63 (§ 52).
15 Romanos, 1, 20 (TEB). Em grego, o
substantivo συζητητής também pode ser traduzido como “debatedor”, “questionador”,
“inquiridor”, “perguntador”... Enfim, συζητητής é aquele que, de algo e sobre
algo, pergunta, duvida, quer saber; isto é: não aceita somente pela fé. E esse
é o motivo da crítica do apóstolo.