10.
Do amor que ainda há, quando não há amor
Ninguém escapa ao amour de soi, mesmo quando pensa, contra qualquer afecção, não haver mais amor nenhum. O amour de soi está no sentimento de “amor romântico”, seu melhor e mais mundano disfarce. Está também no ágape, mas apenas como discurso acerca do transcendente, perdido em conceitos metafísicos e delírios teológicos. O celeste, aí, é mero discurso religioso, ou liberdade poética... mosca que não vai além da janela de vidro de nossa sala, em nossa casa. Amour de soi → Eros → ágape ↔ Vontade. São vários os nomes para a Vontade, fundamento de todos os conceitos de amor que conhecemos e que, em uma tirada poética de Bukowski, “é um cão dos diabos!” Por quê? Porque ele – ou os efeitos de sua ação – pode aparecer nas horas mais inesperadas; inclusive enquanto dormimos.
Aquela garota
a quem você não dava a menor
atenção, aparece em seus sonhos , assim, do nada: fantasiada de estrelas , de mar e mistérios, de paraíso oferecido, aureolada de idílicas delícias secretas que pedem por descobrimentos. Ao
acordar, e sem que perceba, você ainda está sonhando com ela, e dizendo o seu nome
baixinho, quase inaudivelmente, sussurrado por entre os lábios. E aquelas imagens oníricas
vêm todas de uma vez, em um flash-back
atordoante e, estranhamente, bom. Você que
não estava “nem aí
para essas coisas ”,
sente as saudades
do que nunca teve, que não viveu: dessa moça ou moço que veio
morar em seus sonhos, em sua fantasia, em seu desejo, em sua
vontade. Mas, ah!, a Vontade está em você, mas não é sua. E há uma presença,
sim: da falta dela. Cupido lhe flechou. Que loucura! Inesperadamente, numa
espontaneidade magnética, você sente uma enorme vontade de vê-la, vê-lo;
está apaixonado/a.
Eros age de modos
vários e misteriosos; e quase sempre de
modo irônico ,
inesperado . Não
envia recados, age na Vontade, e por
ela – da qual é um simples braço.
O Amor pode estar, mais que na
tranquilidade da planície e no cício suave dos ventos que acariciam trigais, na
fúria das ondas que despedaçam a penha, e
nos espasmos dos trovões que estremecem o mundo, ou na violência
dos raios que iluminam o breu das
noites... quando na presença físico-material do seu alvo. Sim, demônio que é, e sem corpo , ele precisa
de um em que possa habitar. Nem os
deuses estão a salvo. “Eros [é] o mais belo dos deuses imortais, que afrouxa os
membros, e vindo ao coração de todo ser, homem ou deus, domina a razão e o
discreto conselho”, afirma Hesíodo em sua Teogonia1. Mas, aí daqueles que amam, permitindo-se
ao Amor. É que Eros, realizando-se, abandona a casa à sua própria sorte, e parte em busca de novas habitações – é o
discurso contundente de Diotima, repetido por Sócrates, n’O Banquete de Platão.2
E é assim que
a garota dos seus sonhos pode ser, também
– se você não
estiver vacinado com a parábola do Pequeno Príncipe e sua Rosa –, a garota
dos seus pesadelos .
Como, não? Um exemplo literário, que estampa o cotidiano dos casais
românticos. Marjorie, outrora tão linda
e desejada, é a mulher de Walter3. Ela, antes tão tudo, é, agora, objeto
das suas mais
tristes tristezas.
–
Não vais voltar tarde ?
– Havia ansiedade na voz de Marjorie Carling, qualquer
coisa que
parecia uma súplica .
–
Não, eu não voltarei tarde – respondeu Walter, com a certeza infeliz e criminosa
de que não estava dizendo a verdade. A voz dela o aborrecia. Era um pouco
arrastada, tinha um refinamento excessivo, mesmo na dor.
–
Não passes da meia-noite.
Marjorie
podia ter-lhe lembrado o tempo em que nunca saía à noite
sem ela .
Podia ter feito
isso ; mas
não queria; era
contra os seus
princípios ; não
pretendia forçar de nenhum
modo o amor
de Walter.4
Amor realizado é amor perdido, ou amordaçado – e a mordaça
mata o sentido
daquilo que , em
sua antropomorfia, é dotado de grandes asas . No
livro de Rosa Montero, Paixões, ela
fala sobre Wilde, Oscar Wilde:
Segundo todos os testemunhos, no começo de seu
casamento [com Constance Lloyd], Wilde [então com 29 anos] estava muito
apaixonado. Devia sentir-se feliz ao se imaginar curado de sua homossexualidade: a vida era muito mais confortável
na ortodoxia. Em seguida teve dois filhos com Constance; Wilde os adorava e
escreveu lidos contos de fadas para eles. Mas a mulher-mãe se transformou para ele num objeto sexual impossível de
suportar: “Quando casei, minha esposa era moça bonita, branca e esbelta como um
lírio. (...) Depois de um ano, havia se transformado em uma coisa pesada,
informe e disforme (...) com seu espantoso corpo inchado e doente por culpa de
nosso ato de amor.” De alguma forma, conseguiu que Constance aceitasse pôr fim
às relações sexuais [...]. No entanto, sempre se tratavam bem; continuaram
morando juntos e gostavam um do outro. Pouco depois, Robert Ross, um garoto de
17 anos e já experiente nesses assuntos, seduziu o cândido Wilde, e o levou
para a cama.5
O resto da história amorosa de
Wilde com Robert, é de desastre sobre desastre; e a única vítima é o
próprio Wilde: enganado, traído, usado, preso, doente, esquecido e...
apaixonado.
A realização de um grande amor é
a melhor de todas as coisas, e a pior. Lembre-se de Shaw: “Há duas catástrofes na existência:
a primeira é quando nossos desejos não são satisfeitos; a segunda é quando são.6” Quando
o sonho vira
realidade, deixa de ser
sonho, é coisa concreta ,
longe da fantasia... que é o alimento dos sonhos , da
vontade do objeto que falta, e do amor romântico-ideal. Sim, Eros se alimenta de sonhos, e das
vontades que o sonho traz; e aí daquele que tem sonhos muito altos... como
Ícaro, o enlouquecido Ícaro com as suas asas de cera. Pode haver coisa mais
certa? Pode haver coisa mais triste?
Lição de Diotima a Sócrates, n’O banquete: o amor é vontade de amar, e somente há enquanto é falta .
Mas o amor romântico, ideal, sonha com a eternidade do seu prazer7. É, também, desejo, e fé, e falta. Não
há amores, embora os níveis distintos; o que há são as maneiras de descrever
essa mesmíssima falta: sua expectativa
ou sua realização, e a nossa frustração, por um ou outro viés. A realização de
um amor é a realização da sua
Vontade, e a morte do nosso desejo...
a Vontade está aí ainda, mas já sonhando com outros objetos. A expectativa amorosa
é o que chamamos de “paixão” (passio),
que é o mesmo que “sofrimento”.
Não há saída contra o Amor, contra
a Vontade. É a primeira constatação de Buda, tratando sobre a condição humana, e ensinando a
primeira das suas quatro Verdades Santas: “Eis, ó monges, a Verdade Santa
acerca da dor: o nascimento é dor, a velhice é dor, a doença é dor, a morte é
dor, a união com aquilo de que não gostamos é dor, não lograr um desejo é dor...8” E, como vimos, lograr também. Não há
saída.
2
“Muita tolice seria não considerar uma só e a mesma beleza em todos os corpos;
e depois de entender isso, deve ele fazer-se amante de todos os belos corpos e
largar esse amor violento de um só, após desprezá-lo e considerá-lo
mesquinho...” (O banquete, 210 b). PLATÃO.
O banquete. In: _____. Diálogos. 2.
ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983. p. 41. (Col. Os Pensadores). Tommaso
Campanella, em sua A Cidade do Sol,
de 1602, inspirado na obra de Platão, procura excluir da sua cidade ideal a “ideia
de família”, e do sentimento de pertence – do marido à sua mulher, ou aos seus
filhos –, julgando que tal sentimento, mesquinho, é um desserviço ao progresso
e à felicidade dos solares, da cidade perfeita. Tudo é de todos (incluindo as
mulheres), e todos são por todos – subscrevendo o que, aí, através de Sócrates,
Diotima diz em respeito à geração dos mais belos (de melhor saúde) à geração
dos mais belos, etc. O amor realizado, isto é: gerado o filho, parte do seu
objeto em direção a outro (conforme certos regulamentos que Campanella anota em
sua descrição das relações sexuais entre os solares), se o apego a um indivíduo,
por amor ao todo. O sacrifício do desapego é dom da virtude, do homem virtuoso,
da mulher virtuosa. Cf. CAMPANELLA, Tommaso. A Cidade do Sol. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Col. Os
Pensadores).
3
Personagens de Point counter point (1928), de Aldous Huxley (1894-1963).
4
HUXLEY, Aldous. Contraponto. São
Paulo: Abril Cultural, 1982. p. 7. (Col. Grandes Sucessos). A novela Contraponto é “uma descrição crua da
vida de vários casais que se amam, mas não conseguem demonstrar o seu amor; que
se detestam, mas não têm coragem de exprimir seu ódio; que não se suportam, mas
não ousam abandonar o comodismo e a rotina da existência que levam ao lado
daquele – ou daquela – que um dia escolheram.” (Da contracapa).
5
MONTERO, Rosa. Oscar Wilde e Lorde Alfred Douglas: dançando descalço no sangue.
In: _____. Paixões: amores e
desamores que mudaram a história. Rio de Janeiro: PocketOuro, 2009. p. 57-8.
6
George Bernard Shaw (1856-1950),
citado em: COMTE-SPONVILLE, André. A
felicidade, desesperadamente. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 36.
7 “Pois quer todo o prazer – eternidade!” (NIETZSCHE,
Friedrich. O canto ébrio. In: _____. Assim falou Zaratustra: um livro para
todos e para ninguém. São Paulo: Círculo do Livro, [s.d.]. p. 324 [§ 11]).
8 BUDA, citado
em: ARVON, Henry. O budismo. Lisboa:
Publicações Europa-América Ltda., [s.d.]. p. 41-1. (Col. Saber).