terça-feira, 24 de julho de 2012


10.





Do amor que ainda há, quando não há amor




Ninguém escapa ao amour de soi, mesmo quando pensa, contra qualquer afecção, não haver mais amor nenhum. O amour de soi está no sentimento de “amor romântico”, seu melhor e mais mundano disfarce. Está também no ágape, mas apenas como discurso acerca do transcendente, perdido em conceitos metafísicos e delírios teológicos. O celeste, aí, é mero discurso religioso, ou liberdade poética... mosca que não vai além da janela de vidro de nossa sala, em nossa casa. Amour de soi  Eros  ágape  Vontade. São vários os nomes para a Vontade, fundamento de todos os conceitos de amor que conhecemos e que, em uma tirada poética de Bukowski, é um cão dos diabos!” Por quê? Porque ele  ou os efeitos de sua ação – pode aparecer nas horas mais inesperadas; inclusive enquanto dormimos.
Aquela garota a quem você não dava a menor atenção, aparece em seus sonhos, assim, do nada: fantasiada de estrelas, de mar e mistérios, de paraíso oferecido, aureolada de idílicas delícias secretas que pedem por descobrimentos. Ao acordar, e sem que perceba, você ainda está sonhando com ela, e dizendo o seu nome baixinho, quase inaudivelmente, sussurrado por entre os lábios. E aquelas imagens oníricas vêm todas de uma vez, em um flash-back atordoante e, estranhamente, bom. Você que não estava “nem para essas coisas”, sente as saudades do que nunca teve, que não viveu: dessa moça ou moço que veio morar em seus sonhos, em sua fantasia, em seu desejo, em sua vontade. Mas, ah!, a Vontade está em você, mas não é sua. E há uma presença, sim: da falta dela. Cupido lhe flechou. Que loucura! Inesperadamente, numa espontaneidade magnética, você sente uma enorme vontade de vê-la, vê-lo; está apaixonado/a.  
Eros age de modos vários e misteriosos; e quase sempre de modo irônico, inesperado. Não envia recados, age na Vontade, e por ela – da qual é um simples braço.
O Amor pode estar, mais que na tranquilidade da planície e no cício suave dos ventos que acariciam trigais, na fúria das ondas que despedaçam a penha, e nos espasmos dos trovões que estremecem o mundo, ou na violência dos raios que iluminam o breu das noites... quando na presença físico-material do seu alvo. Sim, demônio que é, e sem corpo, ele precisa de um em que possa habitar. Nem os deuses estão a salvo. “Eros [é] o mais belo dos deuses imortais, que afrouxa os membros, e vindo ao coração de todo ser, homem ou deus, domina a razão e o discreto conselho”, afirma Hesíodo em sua Teogonia1. Mas, aí daqueles que amam, permitindo-se ao Amor. É que Eros, realizando-se, abandona a casa à sua própria sorte, e parte em busca de novas habitações – é o discurso contundente de Diotima, repetido por Sócrates, n’O Banquete de Platão.2 
E é assim que a garota dos seus sonhos pode ser, também – se você não estiver vacinado com a parábola do Pequeno Príncipe e sua Rosa –, a garota dos seus pesadelos. Como, não? Um exemplo literário, que estampa o cotidiano dos casais românticos. Marjorie, outrora tão linda e desejada, é a mulher de Walter3. Ela, antes tão tudo, é, agora, objeto das suas mais tristes tristezas.

– Não vais voltar tarde? – Havia ansiedade na voz de Marjorie Carling, qualquer coisa que parecia uma súplica.
– Não, eu não voltarei tarde – respondeu Walter, com a certeza infeliz e criminosa de que não estava dizendo a verdade. A voz dela o aborrecia. Era um pouco arrastada, tinha um refinamento excessivo, mesmo na dor.
– Não passes da meia-noite.
Marjorie podia ter-lhe lembrado o tempo em que nunca saía à noite sem ela. Podia ter feito isso; mas não queria; era contra os seus princípios; não pretendia forçar de nenhum modo o amor de Walter.4

Amor realizado é amor perdido, ou amordaçado – e a mordaça mata o sentido daquilo que, em sua antropomorfia, é dotado de grandes asas. No livro de Rosa Montero, Paixões, ela fala sobre Wilde, Oscar Wilde:

Segundo todos os testemunhos, no começo de seu casamento [com Constance Lloyd], Wilde [então com 29 anos] estava muito apaixonado. Devia sentir-se feliz ao se imaginar curado de sua homossexualidade: a vida era muito mais confortável na ortodoxia. Em seguida teve dois filhos com Constance; Wilde os adorava e escreveu lidos contos de fadas para eles. Mas a mulher-mãe se transformou para ele num objeto sexual impossível de suportar: “Quando casei, minha esposa era moça bonita, branca e esbelta como um lírio. (...) Depois de um ano, havia se transformado em uma coisa pesada, informe e disforme (...) com seu espantoso corpo inchado e doente por culpa de nosso ato de amor.” De alguma forma, conseguiu que Constance aceitasse pôr fim às relações sexuais [...]. No entanto, sempre se tratavam bem; continuaram morando juntos e gostavam um do outro. Pouco depois, Robert Ross, um garoto de 17 anos e já experiente nesses assuntos, seduziu o cândido Wilde, e o levou para a cama.5

O resto da história amorosa de Wilde com Robert, é de desastre sobre desastre; e a única vítima é o próprio Wilde: enganado, traído, usado, preso, doente, esquecido e... apaixonado.
A realização de um grande amor é a melhor de todas as coisas, e a pior. Lembre-se de Shaw: “Há duas catástrofes na existência: a primeira é quando nossos desejos não são satisfeitos; a segunda é quando são.6” Quando o sonho vira realidade, deixa de ser sonho, é coisa concreta, longe da fantasia... que é o alimento dos sonhos, da vontade do objeto que falta, e do amor romântico-ideal.  Sim, Eros se alimenta de sonhos, e das vontades que o sonho traz; e aí daquele que tem sonhos muito altos... como Ícaro, o enlouquecido Ícaro com as suas asas de cera. Pode haver coisa mais certa? Pode haver coisa mais triste?
Lição de Diotima a Sócrates, n’O banquete: o amor é vontade de amar, e somente há enquanto é falta. Mas o amor romântico, ideal, sonha com a eternidade do seu prazer7. É, também, desejo, e fé, e falta. Não há amores, embora os níveis distintos; o que há são as maneiras de descrever essa mesmíssima falta: sua expectativa ou sua realização, e a nossa frustração, por um ou outro viés. A realização de um amor é a realização da sua Vontade, e a morte do nosso desejo... a Vontade está aí ainda, mas já sonhando com outros objetos. A expectativa amorosa é o que chamamos de “paixão” (passio), que é o mesmo que “sofrimento”.
Não há saída contra o Amor, contra a Vontade. É a primeira constatação de Buda, tratando sobre a condição humana, e ensinando a primeira das suas quatro Verdades Santas: “Eis, ó monges, a Verdade Santa acerca da dor: o nascimento é dor, a velhice é dor, a doença é dor, a morte é dor, a união com aquilo de que não gostamos é dor, não lograr um desejo é dor...8” E, como vimos, lograr também. Não há saída.





1 HESÍODO, Teogonia 116 ss. HESÍODO. Teogonia: a origem dos deuses. São Paulo: Iluminuras, 1991.
2 “Muita tolice seria não considerar uma só e a mesma beleza em todos os corpos; e depois de entender isso, deve ele fazer-se amante de todos os belos corpos e largar esse amor violento de um só, após desprezá-lo e considerá-lo mesquinho...” (O banquete, 210 b). PLATÃO. O banquete. In: _____. Diálogos. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983. p. 41. (Col. Os Pensadores). Tommaso Campanella, em sua A Cidade do Sol, de 1602, inspirado na obra de Platão, procura excluir da sua cidade ideal a “ideia de família”, e do sentimento de pertence – do marido à sua mulher, ou aos seus filhos –, julgando que tal sentimento, mesquinho, é um desserviço ao progresso e à felicidade dos solares, da cidade perfeita. Tudo é de todos (incluindo as mulheres), e todos são por todos – subscrevendo o que, aí, através de Sócrates, Diotima diz em respeito à geração dos mais belos (de melhor saúde) à geração dos mais belos, etc. O amor realizado, isto é: gerado o filho, parte do seu objeto em direção a outro (conforme certos regulamentos que Campanella anota em sua descrição das relações sexuais entre os solares), se o apego a um indivíduo, por amor ao todo. O sacrifício do desapego é dom da virtude, do homem virtuoso, da mulher virtuosa. Cf. CAMPANELLA, Tommaso. A Cidade do Sol. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Col. Os Pensadores).
3 Personagens de Point counter point (1928), de Aldous Huxley (1894-1963).
4 HUXLEY, Aldous. Contraponto. São Paulo: Abril Cultural, 1982. p. 7. (Col. Grandes Sucessos). A novela Contraponto é “uma descrição crua da vida de vários casais que se amam, mas não conseguem demonstrar o seu amor; que se detestam, mas não têm coragem de exprimir seu ódio; que não se suportam, mas não ousam abandonar o comodismo e a rotina da existência que levam ao lado daquele – ou daquela – que um dia escolheram.” (Da contracapa).
5 MONTERO, Rosa. Oscar Wilde e Lorde Alfred Douglas: dançando descalço no sangue. In: _____. Paixões: amores e desamores que mudaram a história. Rio de Janeiro: PocketOuro, 2009. p. 57-8.
6 George Bernard Shaw (1856-1950), citado em: COMTE-SPONVILLE, André. A felicidade, desesperadamente. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 36.
7Pois quer todo o prazer – eternidade!” (NIETZSCHE, Friedrich. O canto ébrio. In: _____. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. São Paulo: Círculo do Livro, [s.d.]. p. 324 [§ 11]).
8 BUDA, citado em: ARVON, Henry. O budismo. Lisboa: Publicações Europa-América Ltda., [s.d.]. p. 41-1. (Col. Saber).


LinkWithin

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...