9.
Do Natural e da Natureza, que é a casa de Satã
“De repente, atravessando uma
longa vereda, depararam-se-lhe dois cavalos, arreados e presos pelas rédeas a
uma árvore: eram os animais de montaria de Julien e Gilberte. [...] Ao chegar junto aos pacientes animais ,
que ruminavam tristemente
como habituados às longas paradas ”, diz Maupassant,
Jeanne
chamou pelos dois .
Ninguém respondeu. Na relva , marcada pelos
rastros , jaziam uma luva
de mulher e dois
rebenques . Tinham estado
ali , portanto; e certamente
se haviam afastado, deixando os cavalos
no local . Esperou-os durante um quarto de hora ,
surpresa, sem poder
atinar com o que eles
estariam fazendo. Como saltara do cavalo e se deixara ficar imóvel , apoiada a um
tronco , dois passarinhos , sem
notarem a sua presença ,
vieram pousar-lhe bem junto
aos pés . Saltitando um
em torno
do outro , de asas
abertas e esvoaçantes, trocavam mútuas saudações , pipilando; de repente ,
o macho saltou sobre
a fêmea num longo
amplexo . Jeanne surpreendeu-se diante do que via , como se tudo isso fosse
estranho para
ela . Por
fim , disse para
si mesma :
– Ah! Estamos na primavera!2
A resposta estava aí, no óbvio
ofertado. Mas a cópula dos passarinhos, aos olhos inocentes de Jeanne, era motivo para uma única,
cândida e ingênua constatação: “Estamos na primavera !”
Os que amam cegamente, apaixonados que estão, somente veem o que desejam ver. É como
no provérbio: “o amor é cego ”. Conclusão ligeira e sem
as complexas investigações que são
necessárias ao tema. Na verdade, e se exigido uma maior exatidão, o amor é quem
faz cegar. Eclipse da razão, a “cegueira” é um engodo e um artifício da Vontade, em
função da vida e sua permanência.
A natureza com seus prodígios e
encantamentos; a Lua dos apaixonados e o céu estrelado; as flores campestres que se oferecem às
borboletas coloridas que bailam leves e livres sobre os jardins perfumados; e os passarinhos
cantando felizes, em coro, celebrando a criação e o seu...
Ah, que grande a ilusão dos nossos sentidos! Não nos basta o mundo assim, dado; precisamos transcendê-lo e, para além do que vemos, vermos algo a mais: maior e mais encantado, razão e limite ilimitado de tudo o que é belo e bom, incorrupto e eterno. Acostumados à
imagem romântica do mundo, exaltamos os encantos da natureza; almejamos as perfeitas
virtudes dos corações perfeitos – a ação daquele ou daquela que, por amor ao
outro, nega-se a si mesmo. Ah, que grande a ilusão do amor desinteressado de si! Com a nossa fala, a mais comum e vulgar expressão do nosso ser, declaramos um amor doce e cândido... visgo que prende o passarinho.
Em “Kinski, meu melhor inimigo” (Mein Liebster Feind, 1999), Werner Herzog põe a nu tal engodo, sutilmente expondo os dois eixos deste grande
conflito, nem sempre muito evidente - principalmente aos menos dados às dúvidas, e desarmados de senso crítico. De um lado a visão romântica da Natureza,
majoritária (Klaus Kinski > os românticos > os teólogos > os
idealistas); de outro, o realismo racionalista, minoritário (Herzog >
Schopenhauer > Darwin > Aristóteles, com limites). É o próprio Herzog quem,
falando sobre Kinski3, afirma:
Entre Kinski e eu havia
algo de irreconciliável: o seu conceito pela natureza. Ele se estilizava como
um “homem da Natureza”. Creio que tudo o que ele dizia sobre a selva era
afetado. Ele declarava que tudo por aqui [nas selvas do Peru] era erótico, mas
nunca entrou na selva. Ele ficou no acampamento por meses, mas nunca deu um
passo para dentro da selva. Uma vez ele adentrou cerca de 50 metros, onde uma
árvore caíra. É claro que o fotógrafo teve que ir com ele tirando centenas de
fotos dele abraçado a essa árvore e fingindo copular com ela. Poses e parafernálias era o que lhe
importava. Seu equipamento de alpinismo era mais importante que a própria
montanha. Sua roupa camuflada feita por Yves Saint Laurent era mais importante
que qualquer selva. Nesse sentido, Kinski era favorecido com uma grande
estupidez natural.
A diferença de nossas visões tornou-se
mais aparente durante “Fitzcarraldo”. É claro que desafiamos a própria
natureza. Mas ela é grandiosa e tivemos que aceitar que ela era mais forte que
nós. Kinski sempre diz que ela é cercada de elementos eróticos. Eu não vi nada
erótico, vi obscenidades. A natureza como algo violento e vil. Não vi nada
erótico aqui. Veria fornicação, asfixia, embate e luta pela sobrevivência,
crescimento e putrefação. É lógico que há muita tristeza, mas é a mesma
tristeza que nos cerca. As árvores estão tristes, assim como os pássaros, acho
que eles não cantam, eles gritam de dor.
Dê uma olhada mais de perto, e verá que há
sim uma certa harmonia: harmonia da opressão e morte coletiva. E quando digo
isso, o digo cheio de admiração pela selva. Não a odeio, eu a amo, amo muito.
Mas amo contra meu próprio julgamento.4
A visão da Natureza, em Kinski, é a visão do senso comum – geralmente
inconsciente –, e é também a mais equivocada. Acredita, sem pensar, nas reais e
visíveis belezas do Mundo, e na origem divina das relações afetivas, numa
hierarquia modelar que põe o homem como “cabeça da criação” – como exposto no
livro do Gênesis. Na ordem cósmica, e
no sexo, ele é Sol, e ela, Lua; ele, ativo; ela, passiva. Tanto equilíbrio no
mundo, supõem os velhos teólogos ortodoxos e mofados, embriagados no idealismo, aponta para uma mente
inteligente por trás de tudo – como o relógio, que supõe o relojoeiro.5
Noutro filme, incompreensível para alguns – “Anticristo” (Antichrist,
2009), do dinamarquês Lars von Trier –, há uma cena em que uma raposa6, como em uma fábula de horror,
sentencia: “O caos reina”. É o prenúncio do “Desespero”. Onde? Na natureza. No Anticristo, os personagens não têm nomes,
são apenas Ele e Ela, e estão instalados em uma cabana no meio da Floresta do
Éden, onde Ela (uma intelectual que estuda sobre bruxaria e violências
históricas contra as mulheres) é tratada por Ele (que é terapeuta), na tentativa
de fazê-la superar o trauma deixado pela morte do filho de ambos, que havia
caído de uma janela enquanto eles transavam. Se a relação sexo = culpa é óbvia,
é porque é óbvia mesmo, imersa na tradição moral cristã. Na inocência do homem
no Éden, antes da Queda – Santo Agostinho fantasia –, não havia o desejo do
sexo (libidinoso), somente a sua necessidade (à procriação), mas sem os males
da paixão, a tirania da vontade. Não havia, ele diz, “a vergonha do desejo”.7 E diz mais:
Os membros
genitais obedeceriam ao arbítrio da vontade tal como os demais, e o marido
ter-se-ia introduzido nas entranhas da esposa sem o aguilhão arrebatador da paixão libidinosa, na tranquilidade da alma
e sem corrupção alguma da integridade do corpo. [...] E então poderia assim o sémen
viril penetrar no útero da esposa mantendo-se a integridade do órgão genital
feminino – tal como presentemente o fluxo do sangue menstrual pode sair do
útero de uma virgem sem prejuízo para a sua integridade. De fato, é pela mesma
via que um se introduz e o outro sai.8
Orígenes de Alexandria, o maior dos alegoristas da Antiguidade cristã,
interpretando literalmente um versículo no Evangelho
de Mateus9, chega ao ponto de se emascular,
para lançar fora o “instrumento do mal”, o seu próprio pênis. Assim, pensava, poderia
viver mais santamente, sem que o seu órgão reprodutor-sexual10 fosse outro senhor, contra o
Senhor.
Ele, Ela. Aí, no Éden, era como se fosse um recomeço para ambos. Mas,
para Ela, a natureza é a “igreja do Demônio”. Não há lugar para a tradicional
imagem idílica da selva – onde o animal devora o outro, e é devorado, sem misericórdia,
sem culpa e sem juízos morais. Na cena incomum, em que a raposa anuncia o caos
e o seu reinado – na imagem medonha de um medonho animal falante –, a ordem está
pervertida. O caos, porém, não reclama súditos aos quais possa comandar – o que
seria uma nova ordem. O diferente se apresenta, mas não é fixo, jamais
instalado: ser loucura, ser absurdo em um mundo absurdo de
absurdos. “Lars Von Trier é um diretor atormentado!” Bodejaram, quase unânimes,
os críticos da indústria cinematográfica de Hollywood, engessados nos modelos
que seguem e defendem a antiga ordem: a que produz lucros enormes. Mais que a
arte e o pensamento, a indústria visa o lucro – como pode ser visto em Rojeck,
Mailer, Biskind e Adorno & Horkhaimer.11
No Anticristo de Lars von
Trier, como n’O Anticristo (Der Antichrist. Fluch auf das Christentum,
1888), de Nietzsche, há um enfretamento dos modelos românticos, dominantes: a
estética imanente-transcendente e os conceitos bom/mau são, ao menos em tese,
transvalorados. No Anticristo de
Lars von Trier, há três capítulos (além do
prelúdio e do prólogo) bem definidos. Não há culto a essa Trindade nada divina,
que comanda o Mundo natural – como é visto e descrito por Herzog, em sua oposição
a Kinski. O capítulo quarto (“Os três mendigos”) reforça os três
anteriores, no sentido da trindade referida, em sua tese de transvaloração. De
fato, na suposta razão que procura ordenar o caos, é onde se instala o delírio
e o culto à ordem, para fazer surgir alguma
coisa à qual eu não saberia dar um nome; mas que é mais que niilismo, que mero
niilismo.
N’O Anticristo de Nietzsche,
por outro viés, a crítica é muito mais clara, e totalmente direcionada contra a
moral cristã, e contra aquilo que ela santificou: a fraqueza da fé. A “fé”, ele
afirma, é um “não querer saber o que é verdadeiro.12” Contra tal espírito, é a transgressão
do niilismo que se propõe para além do bem e do mal, no fatum, a partir do fatum.
“Nosso fatum [fado, destino]”, ele
diz, “– era a plenitude, a tensão, a contenção das forças. Éramos ávidos de
relâmpagos e atos, ficávamos o mais longe possível da felicidade dos fracotes,
da ‘resignação’... Um temporal estava em nosso ar, a natureza que somos
escureceu – pois não tínhamos caminho.
A fórmula de nossa felicidade: um Sim, um Não, uma linha reta, uma meta...13” Ela, Ele... E então: Ah!, os dualismos
que mantivemos (Apolo/Dionísio): para a verdade, para o amor, para a filosofia,
para a teologia, etc. Nós nos esquecemos do que somos, em função do que gostaríamos
ser, e nos perdemos de nós mesmos, em alguma parte do caminho.
“Suponhamos que a verdade seja uma mulher”, Nietzsche dizia, no
prefácio de Para além do bem e dom mal (Jenseits Von Gut Und Böse. Vorspiel Einer
Philosophie, 1886).14
Suponhamos que a Verdade seja um conceito, ou uma construção
psicológico-político-social, como a condição da “mulher”, na obra de Simone de
Beauvoir, de 1949, contra a tirania do masculino – também exaltada e
beatificada pela Igreja.15 Se o gênero vale à Natura, e se ela pode ser
personificada de algum modo – a Terra, nas mais variadas mitologias, é
representada como mulher, feminina e fecunda –, então a imagem de uma mulher
lhe cai muito bem, e sem forçamentos. Assim também se pode falar da Verdade, o
que quer que ela seja... como Nietzsche fez.
Sim, suponhamos então que a
verdade seja uma mulher, como Ela. Ela conhece a figura masculina, tal qual a do
marido (terapeuta, psicólogo, psicanalista, figura da ordem mental desejada
pela moderna ciência moderna, e pelo status da razão aplicada ao saber e ao
progresso); também conhece as forças da natureza, irracionais, das quais tem
medo. Passiva às ações dEle, que assume o lugar da Natureza, domesticando-a para
que Ela, através dele, também a enfrente e, assim, vença os seus medos – ou chegue à ordem
(psíquica), à razão –, Ela, a princípio, se deixa levar, obediente à técnica
dEle:
– Gostaria de fazer mais um exercício – Ele diz. –
É como fazer de conta. Meu papel será todos os pensamentos que te dão medo. O
seu será o do pensamento racional.
Ela assente, com a cabeça.
– Eu sou a natureza. Todas as coisas que você chama
de natureza.
Ela se mostra maleável, deixando que Ele assuma o
seu papel, e diz:
– Ok, senhor Natureza. O que você quer?
– Machucá-la tanto quanto eu puder.
– Como?
– Como você acha?
– Me amedrontando?
Ele balança a cabeça, negando que seja somente
isso.
– Matando você – responde.
– A natureza não pode me machucar. Você é só o
verde lá fora.
– Não, eu sou mais.
– Eu não entendo – Ela parece confusa, realmente.
– Estou no exterior, mas também... dentro.
Sim, pois é certo que, da Natureza, ou na Natureza,
todos somos partes. E tanto que, para elucidar o que Ele tenciona, continua:
– Eu sou a natureza de todos os seres humanos.
– Ah, esse tipo de natureza. O tipo de natureza que
faz pessoas fazerem coisas ruins contra as mulheres.
– É exatamente o que sou.
– Esse tipo de natureza me interessou quando eu
estava aqui. Esse tipo de natureza era o tema da minha tese. Mas você não deve
subestimar Éden.
– O que Éden fez? – Ele pergunta.
– Encontrei algo mais que o que esperava. Se a
natureza humana é má, então isso vale também para a natureza das mulheres.
– Natureza feminina.
– A natureza de todas as irmãs [bruxas]. As
mulheres não têm controle de seus corpos, a natureza tem. E eu tenho isso por
escrito nos meus livros.
– A literatura que você usou em sua pesquisa era
sobre coisas ruins cometidas contra as mulheres, e você a leu como prova da
maldade das mulheres? – Isso lhe parecia um contrassenso, um paradoxo às
pretensões da tese à qual ela, antes, propunha defender. – Você deveria ser
crítica com esses textos, essa era sua tese! Ao invés disso, você os abraçou.
Você entende o que está dizendo?
– Esqueça – Ela diz. – Não sei porque eu disse
isso.16
Ela
é uma metáfora da Natureza: hostil, caótica. Ele é o sexo dominante – aquele
que tenta colocá-la em ordem, dominando-a, vencendo o caos. Ele, razão; ela,
emoção. Razão = ordem; emoção = caos. Trazer a ordem supõe o domínio dEle sobre
Ela; supõe também a status rebaixado do Segundo Sexo, como o feminino é definido por Beauvoir, em
oposição ao domínio do masculino. “Todo ser humano do sexo feminino não é, portanto,
necessariamente mulher; cumpre-lhe participar dessa realidade misteriosa e
ameaçada que é a feminilidade”17,
diz Beauvoir. Ser mulher é sentir-se mulher.18 Na
igualdade genérica, não pode haver um
sexo – mas isso também não supõe um
equilíbrio. As cenas de mutilação
genital, masculina e feminina (Ela decepa o próprio clitóris com uma tesoura
enferrujada), estão na ordem do conflito. Quando perguntado sobre o porquê de
tanta violência, em uma entrevista, Lars von Trier respondeu: “Simplesmente achei que seria errado não
mostrar. Sou um cineasta que acredita que devemos colocar na tela tudo o que
pensamos. Sei que é doloroso ver, mas esse filme tem muito a ver com essas
dores.” Na mesma entrevista, ele afirma que não acredita em Deus,
e que o filme é uma forma de devolver a Deus tudo o que aprendeu sobre ele.
Não há amor aí, e nem beleza, somente o
fatum e o pólemos, o conflito – “Não a satisfação, mas mais poder; sobretudo não a paz, mas a guerra.19”
Ela é a Natureza, com a qual ele luta, para domesticá-la; mas acaba
destruindo-a, para não ser destruído. No “Epílogo”, Ele encontra alimento nesta
nova Natureza, da qual é parte: sua natureza capaz de “matar o amor, a
paixão” (Ela), por amor a si mesmo: amour
de soi.
Eis um anticristo. Sim, a moral cristã ensina que o
marido deve ser capaz de, por amor à sua mulher, morrer por ela, como
exemplificado no Cristo, que morre por sua noiva, a Igreja.20 A moral anticristã, ao contrário, ensina
o amor fati, o amour de soi, a fidelidade à Terra – na apreciação do realismo,
contra o idealismo romântico e sua embriaguez. O sentimento de comunidade e de
um amor ideal, recíproco, antes de ser uma fraqueza, é um equívoco. Ademais, e
contra um amor “tão altruísta” (e fantasioso), Nietzsche afirmaria: “O amor é o
estado em que as pessoas mais veem as coisas como não são.”21
Na alegoria, a velha Natureza está ali, nos tantos
corpos femininos que jazem no Éden, as almas ancestrais. Expulsas (ou libertas)
para este novo Éden, seguem em direção a... Quem saberia? O caos continua
reinando; e anticristãos são todos e todas que ousam superar o domínio
ancestral da ordem, do sexo dominante e da sua posição inferior – e louvada na
piedade subserviente da pia doctrina
christiana. Mas, ah!, não há culpa senão a nossa culpa, e pelos nossos
erros.
Suponha que Jeanne, na novela de Maupassant,
seja uma vítima da tradição histórico-político-social à qual estava submetida,
no tempo que não era seu; suponha. Ainda assim, e por sua inocência, ela é
culpada. É uma vítima de si mesma. Como poderia dizer, depois de tudo: “A vida
não é tão boa nem tão má como as pessoas julgam.22”
Como? Nascer na condição de escravo não é uma opção nossa, e nem uma culpa
contra a qual mereçamos punições; o nosso agir como escravos, no entanto, é.
1 Novela de
Guy de Maupassant, escrita em 1883; excelente exemplo de realismo fantástico.
2 MAUOASSANT,
Guy de. Uma vida. São Paulo: Nova
Cultural, 2003. p. 188.
3 Com quem
teve uma parceria errática e duradoura, ao longo de cinco filmes: Aguirre, der Zom Gottes (1972), Woyzeck (de 1979, baseado na peça de
Georg Büchner), Nosferatu: Phantom der
Nacht (1979), Fizcarraldo (1982)
e Cobra Verde (1987).
4 Filmado em 1982, Fitzcarraldo é uma produção
teuto-peruano, baseada na história verídica de Brian Sweeney Fitzgerald,
“Fitzcarraldo”, na pronúncia dos nativos. Fã de Enrico Caruso, Fitzcarraldo
investe na construção de uma casa de ópera, na cidade de Iquitos, no alto
Amazonas, fracassa. Antes, investira em uma estrada de ferro, a Transandina,
também sem sucesso. Praticamente falido, tenta conseguir recursos com um novo
empreendimento: uma fábrica de gelo; novo fracasso. Pelos improváveis e
malfadados empreendimentos, foi chamado de “O conquistador do inútil”.
Conseguiu algum dinheiro com sua amante, a dona do bordel da cidade. Com o
recurso, compra um grande barco fluvial. Nele, tentará encontrar uma nova rota
para transportar borracha, das terras às quais obteve autorização governamental
para explorar. Esperançoso e alucinado, Fitzcarraldo, em seu barco, transpõe
morros e matas, ao custo de muito sofrimento e da vida da tripulação. O trecho
com as impressões de Herzog sobre a floresta, que aparecem nesse documentário,
é recortado de outro, Burden of dreams,
de 1982, com direção de Les Blank, e pode ser encontrado no YouTube. Disponível
em: <http://www.youtube.com/watch?v=mYBA0yvmwGc>
Acesso em: 10 abr. 2011.
5 E daí os tantos
argumentos tradicionais em prol da existência de Deus (axiológico, cosmológico,
henológico, do bom senso, moral, teleológico, etc.), como o argumento
ontológico de Anselmo de Aosta (1033-1109)
ou as cinco vias de Tomás de Aquino (1225-1274),
dentre os mais conhecidos; e daí o famoso argumento do relógio, de William
Paley (1743-1805). Para os argumentos ontológicos,
resumidos e comentados, ver: TOMATIS, Francesco. O argumento ontológico: a existência de Deus de Anselmo a
Schelling. São Paulo: Paulus, 2003. (Col. Filosofia). O argumento de Paley
aparece em sua Natual Theology, de
1802 (ainda sem tradução em português). Também pode ser visto, na íntegra, com
contra argumentações, em: SORLEY, W. R. Moral
Values and the Idea of God. 2. ed. Cambridge: Cambridge University Press,
1921. p. 326.
6 O mais
esperto dos animais, conforme a tradição literária.
7 De Civ. Dei,
XIII, XXIV.7. Afinal: “A beleza do corpo, obra de Deus sem dúvida, mas bem
ínfimo, carnal e temporal, é mal amada quando Deus, bem eterno, interior e
sempiterno é posto em segundo plano.” (De
Civ. Dei, XV, XXII). AGOSTINHO, Santo. A
Cidade de Deus. 2. ed. Lisboa: Serviço de Educação e Bolsas / Fundação
Calouste Gulbenkian, 2000. v. 2.
8 De Civ. Dei, XIV, XXVI.
9 Mateus 19, 12: “Porque há eunucos que
assim nasceram do ventre da mãe; há eunucos que foram castrados pelos homens; e
há eunucos que se castraram a si mesmos por causa do Reino dos céus. Quem pode
receber que o receba.”
10 O relato é
registrado por Eusébio de Cesaréia (265-340), em sua Historia
ecclesiastica (talvez escrita entre 303 e 323): “Entendeu as
palavras: ‘E há eunucos que se fizeram eunucos por causa do reino dos céus’ (Mt
19,12), de modo simplista e juvenil, seja por julgar que assim cumpria a
palavra do Senhor, seja porque, sendo jovem, pregava as coisas divinas, não
somente a homens, mas ainda a mulheres, e querendo tirar aos infiéis todo
pretexto de calúnia vergonhosa, foi impelido a cumprir realmente a palavra do
Senhor.” (CESARÉIA, Eusébio de. História
Eclesiástica. São Paulo: Paulus, 2000. p. 289-90 [VI, 8.2]. [Col.
Patrística, 15]).
11 Os autores
citados, e suas obras, por ordem: ROJEK, Chris. Celebridade. Rio de Janeiro: Rocco, 2008. (Col. Idéias
Contemporâneas). MAILER, Norman. Um sonho
americano. Porto Alegre: L&PM, 2011. (Col. L&PM Pocket, 572).
BISKIND, Peter. Como a geração
sexo-drogas-e-rock’n’roll salvou Hollywood. Rio de Janeiro: Intrínseca,
2009. ADORNO, Theodor;
HORKHEIMER, Max. A Dialética do
Esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
12 NIETZSCHE,
Friedrich. O anticristo: Maldição do
cristianismo: Ditirambos de Dionísio. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p.
63 (§ 52). Ou, dito de outro modo: “A esse instinto de teólogo eu faço guerra:
encontrei sua pista em toda parte. Quem possui sangue de teólogo no corpo, já
tem ante todas as coisas uma atitude enviesada e desonesta.” (NIETZSCHE, 2007,
p. 15 [§ 9]). Ou, por fim: “A melhor maneira de enganar a humanidade é com a moral!” (NIETZSCHE, 2007, p. 52 [§
44]).
13 NIETZSCHE,
2007, p. 10 (§ 1).
14 NIETZSCHE,
Friedrich. Além do bem e do mal:
prelúdio a uma filosofia do futuro. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. p. 63
(Prólogo).
15 “Não é a
natureza que define a mulher: esta é que se define retomando a natureza em sua
afetividade.” (BEAUVOIR, Simone de. O
segundo sexo: 1 – fatos e mitos. 4. ed. São Paulo: Difusão Européia do
Livro, 1970. p. 59). E, antes: “As religiões forjadas pelos homens refletem
essa vontade de domínio: buscaram argumentos nas lendas de Eva, de Pandora,
puseram a filosofia e a teologia a serviço de seus desígnios, como vimos pelas
frases citadas de Aristóteles e Sto. Tomás. Desde
a Antiguidade, moralistas e satíricos deleitaram-se com pintar o quadro das
fraquezas femininas.” (BEAUVOIR, 1970, p. 16).
16 Anticristo. Direção: Lars von Trier.
Califórnia Filmes, 2009. 1 DVD (98 min). NSTC, color. Título original: Antichrist.
17 BEAUVOIR, 1970,
p. 7. “O termo ‘fêmea’ é pejorativo, não porque enraíze a mulher
na Natureza, mas porque a confina no seu sexo.” (BEAUVOIR, 1970, p. 25).
Convém à mulher, pois, emancipar-se – que não corresponde à renúncia do seu
sexo, mas em assumi-lo, exigindo os direitos iguais ao outro, o masculino.
18 “A mulher é uma
fêmea na medida em que se sente fêmea.” (BEAUVOIR, 1970, p. 59).
19 NIETZSCHE,
2007, p. 11 (§ 2).
20 Na epístola Aos Efésios 5, 25: “Maridos, amai as vossas
mulheres como Cristo amou a Igreja e se entregou por ela.” (TEB).
21 NIETZSCHE,
2007, p. 28 (§ 23).