Da humilde, beata e misericordiosíssima dúvida
O verdadeiro sábio não morreria pela verdade, nem pela mentira; talvez se animasse a morrer pela vida – mas aí o paradoxo seria evidente, absurdamente evidente. Não, nem pela vida! “O Sábio”, dizia Epicuro a Meneceu, “nem desdenha viver, nem teme deixar de viver; para ele, viver não é um fardo e não-viver não é um mal.” E quanto à verdade? A sua verdade, disso o sábio saberá, é sua; sua somente. E o que lhe garante, além da sua própria fé, da sua própria convicção, que ela o seja em absoluto? Que saberia ele, absolutamente? A maior de todas as certezas, sendo nossa, pode, também, ser o maior de todos os nossos equívocos. Como no Tao Te Ching, de Lao-Tzu: “O Sábio dedica-se a não agir, / Comove sem ensinar, / Cria dez mil coisas sem instrução, / Mora mas não possui, / Age mas não tem presunção, / Realiza sem colher louros.” Possuir é crer no poder; presunção é certeza; colher louros é ceder à vaidade, acreditar que há recompensas. É preciso duvidar de tudo! E toda dúvida somente é legítima se, antes de ser lançada sobre o Outro, estiver impregnada em nós. Certezas são fatalismos; reducionismos incipientes em louvor da preguiça; entreguismo da alma (ψυχή) que se submete, estanque: água represada que apodrece a vida, compromete o rio e o seu destino, cerceando a dádiva fluida da correnteza. Todo o progresso (todo!) nasce da dúvida, que também é guerra, disputa, luta (πόλεμος): dinâmica dialética que faz a tese ser, sempre, antítese para si mesma, para gestar a síntese, que será outra tese para outra antítese, que será síntese e, depois, outra tese... E a tese final, o Absoluto, será sempre EU (aquele que duvida); semelhantemente ao que é dito por Santo Agostinho, no Livro X da De Trinitate: “Se eu duvido, vivo; se duvido, lembro-me da dúvida; se duvido, entendo que duvido; se duvido, é porque busco a certeza; se duvido, penso; se duvido, sei que não sei; se duvido, é porque julgo que não devo concordar temerariamente. E ainda que duvide de todas as outras coisas, não posso duvidar destas, pois, se não existissem, seria impossível qualquer dúvida: si fallor, sum.” Semelhantemente ao que será “repetido” por René Descartes, no Meditationes de Prima Philosophia: “Mas o que sou eu? Um ser que pensa! [Sed quid igitur sum? Res cogitans…] O que é isso? Na verdade, um ser que duvida, que entende, que afirma, que nega, que quer, que não quer, que imagina também e sente”, que pode ser resumido na fórmula clássica, na Parte IV do Discurso do método: “cogito, ergo sum.” Das certezas que os sábios têm ou poderão algum dia ter, será sempre mais sábio aquele que duvidar das certezas do que não duvida.