sábado, 31 de julho de 2010

4.

No Brasil, a figura de Arthur Bispo do Rosário é exemplar. Transferido do Hospício Pedro II, Rio de janeiro – onde fora internado em 1938 –, chega à Colônia Juliano Moreira, Jacarepaguá, em 1939; aí permanecerá pelo resto da sua vida (cerca de cinquenta anos). É na Juliano Moreira que ele começa a produzir seus primeiros trabalhos artísticos, aproveitando-se do lixo e da sucata disponíveis. Descoberto por acaso, no início da década de 80, classificam-no como vanguardista, e suas obras foram comparadas às do franco-americano Marcel Duchamp. Os aspectos da indústria cultural – ou da sociedade de consumo – são assimilados de modo crítico na produção artística de Bispo do Rosário, no mesmo sentido em que o pintor e cineasta norte-americano Andy Warhol, com as latas de sopa Campbell ou as garrafas de Coca-Cola, emprega para reinventar e inventar a pop art, em que as imagens empregadas no processo criativo já se encontravam amplamente difundidas, mas sem a função artística ou, melhor, sem o olhar do artista.



Sopa de letrinhas, Andy Warhol, 1960


Os temas marinhos, recorrentes, apontam, conforme os psicanalistas, para a sua juventude na Marinha. Destacam-se, depois, os objetos mumificados, as assemblagens (ou vitrines, como dizia Bispo), as faixas de mísseis e os estandartes em que as palavras, empregadas como signos pulsantes numa ordem predeterminada, produzem, mais que a mensagem discursiva, o visual imediato/imediático, a obra-mesma – a palavra só tem a sua função como o todo da representação. Exemplo disso é a ilustração que faz para a capa, contracapa e encarte do álbum Severino (1997), dos Paralamas do sucesso. Ademais, as ligações comparativas da arte do Bispo com o Dadaísmo ou a read made de Duchamp não são infundadas. Isso o inclui, sem qualquer demérito, entre os artistas da Arte Moderna Mundial.


Ordenar o caos, reconstruir o mundo... Bispo do Rosário, Sapatos femininos, s.d.

5.

A obra mais representativa do Bispo, de acordo com os seus críticos, é o Manto da Apresentação. O Manto, segundo ele, fora feito seguindo uma ordem divina – como toda a sua obra –, e deveria ser usado por ele mesmo no dia do Juízo Final, marcando a passagem de Deus pela terra, de quem ele era o enviado com a missão de recriar o mundo. “O que eu faço: faço para Deus. Por que Ele me pediu, para eu recriar o mundo Dele. Não adianta gostar, por que eu não faço para homem algum.” O Bispo dizia, quando perguntado sobre a sua obra.

6.

Até que ponto o Bispo do Rosário era louco? Ele sabia, maior parte do tempo, da sua condição psiquiátrica, chegando a evitar o tratamento médico e os remédios recebidos pelos “verdadeiros” loucos. Até que ponto era gênio? Referenciálo como modelo da Arte Contemporânea brasileira é lícito? Se não, porquê? Tais perguntas, evidentemente, escapam ao meu interesse mais imediato aqui. Há, todavia, no Brasil, uma série de livros (veja as referências a este capítulo) que respondem – ou tentam responder – tais perguntas, diretamente ligados ao Bispo.

Interessa-nos, portanto, afirmar (sem cocluir nada, no entanto) que a relação entre arte e loucura, do ponto de vista dos especialistas em obras de arte – que são aqueles que, em última instância, respondem aos curadores sobre a validade e o critério para as exposições em museus, galerias, etc. –, não está assim tão clara e não é, por isso mesmo, concludente. O que nos faz retornar ao tema inicial, ou, mais enfaticamente, ao subtítulo que problematiza a arte, a linguagem e o problema do fundamento. Até que ponto isso tudo nos autoriza a dizer: Sorry, no art today? Até que ponto não nos autoriza?


Fim do Capítulo 1

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