quarta-feira, 21 de julho de 2010

Discurso, ideologia e subjetividade


1.

Dizer simplesmente que a arte é um reconhecimento subjetivo, pessoal, atribuição que cabe única e exclusivamente ao artista ou ao espectador, é engrossar o coro do sorry, no art today. Longe de negar o valor das extravagâncias intuitivas do artista, penso aqui na separação benéfica que é, até onde posso entender, relevante à existência e preservação da verdadeira arte – para o caso de haver uma verdadeira arte. Ou então, se assim não for (falo assim para que eu não estabeleça, com base em preconceitos, um “princípio ideal” que seja referência àquela “verdadeira arte” que supus existir), a valoração da boa arte, do bom artista. Mas, Que digo?! Dizer que essa arte é boa e que aquela outra não é, é, por outro caminho, fazer o mesmo jogo do preconceito antes “evitado”. Como você percebe, somos nós que determinamos (ou pensamos poder determinar) o que é ou não é arte – às vezes, é verdade, induzidos pela Indústria Cultural –, ou o que é ou não é boa arte. Por um ou outro caminho, esbarramos em padrões estéticos que já estão em nós ou estão sendo, por nós, incorporados. As perguntas que precisamos fazer agora são: como é que assimilamos tais “padrões” estéticos? Por que prevalecem certas artes em detrimento de outras?

2.

Diante de tudo isso, convém voltar à questão do modelo ideológico do Mercado, ou da cultura dominante. É ele (ou ela, como você quiser) que diz, através dos comerciais, das músicas, dos filmes, dos livros, ou de tudo isso junto: “use isto”, “compre aquilo”, “faça assim”... Talvez você lembre daquela famosa passagem sobre a “dialética do senhorio e da servidão”, de Hegel, na Fenomenologia do espírito (1807). O meu desejo nunca é, realmente, o meu desejo, ou o simplesmente ter o objeto do meu desejo; o meu desejo é, antes, o desejo do Outro, e o objeto do meu desejo tem de ser, por isso, o objeto do desejo do Outro. Mais do que o Outro ou o objeto do seu/meu desejo, eu desejo a aceitação do Outro – que deve se identificar comigo por querermos (ou usarmos) os mesmos objetos, sermos idênticos na aceitação desses desejos (ou valores) comuns.

3.

Embora o discurso do Mercado diga que as pessoas são únicas, ele, na prática, às trata como iguais. Tanto é assim que as roupas feitas nas fábricas, por exemplo, não seguem a individualidade (os acidentes), mas o padrão (a unidade simples, una). Alguém, aqui, talvez possa objetar: “Ah, mas o que determina a individualidade é o gosto de cada pessoa. Quer dizer: ela compra aquilo que mais lhe agrada e, assim, mostra o seu gosto, diz o que é”. Sim; é verdade. Nós dizemos muito do que somos por meio do que vestimos. Mas, embora eu concorde em partes com aquela afirmação do meu pseudo-objetor, tenho que lembrar que, no grande corpo social – sirvo-me aqui de uma definição durkheiminiana para a sociedade –, embora tenhamos nossas particularidades, nossos gostos estéticos, nossas esquisitices, a roupa que vestimos não é, afinal, para nós mesmos, mas para as pessoas que nos cercam; para que elas possam nos aceitar como pares, um igual, ou, na palavra cristã, semelhante. Theodor W. Adorno nos lembra disso quando, num diálogo com Becker, diz que “há inúmeros adultos que no fundo apenas representam um ser adulto que nunca conseguiram ser totalmente, e assim possivelmente precisam sobre-saltar sua identificação com tais modelos, exagerar, encher o peito, bravejar com voz adulta, só para dar credibilidade frente aos outros ao papel mal-sucedido para eles próprios”.



Não seriam os adultos atores sem palco? O ator Elvércio Guimarães no curta-metragem Ator sem palco, com roteiro e direção de Itabirana Maíra Camargo (2007)


Muito do ser adulto pode ser, conforme Adorno, mera representação (um “papel”) para, diante dos demais adultos, sermos aceitos como tais: igual entre os iguais. Nesse conceito de papel de adulto, não residiria também, em nós, a resignação intelectual que faz com que vejamos uma tela que é uma merda como se fosse coisa sobremodo excelente, de grande inovação estilística, e essas frescuras todas? Afinal, todos dizem diante da “arte” muito louca do artista mais louco ainda: “Oh! Que coisa mais, mais... louca!” Isso não nos lembra Heidegger em sua conceituação à inautenticidade? “Cada um é o outro e ninguém é si-mesmo”. Parece que temos de admitir isso, ou então mudarmos radicalmente de postura ante o mundo e o Outro, ou ante as esquisitices do mundo e as esquisitices do Outro. Admitir a esquisitice como condição humana é uma coisa; admiti-la, sem concessões, como arte, é outra coisa. Sim, dificilmente nos livraremos (se isso é possível) de ser Ser-para-o-outro, embora pensemos, sob certas medidas, apresentar nossas “próprias predileções”. Não por acaso Nietzsche também escreve sobre “como ser o que se é”, enfatizando uma natureza (humana) livre dos valores impostos pela cultura cristã ocidental – uma “moral” sem essa Moral, com valores para além do bem e do mal. E é aqui que nós voltamos à questão anteriormente proposta: o que determina o gosto estético, ou o seu mero valor conceitual?

4.

Veja que há, por trás dos nossos gostos, uma enormidade de fatores culturais – que são, geralmente, impostos pelo Mercado, pela Indústria Cultural, pela ideologia dominante – nos quais estamos submergidos – ou por nosso desejo de status, de aceitação. E é assim que, da forma como nós consumimos essa ou aquela roupa, consumimos a arte, ou as artes; não porque, muitas vezes, nos agrade, mas porque “agrada a todos”, e nós queremos, mais que a arte, a aceitação do outro – a arte não entra na questão como fim (arte-pela-arte), mas como meio. Acontece que, quanto mais a arte é usada como meio, tanto menos ela pode ser considerada como arte. Por fim, parece faltar sempre uma criança que, do meio da multidão que se admira com os trajes novos do imperador, grite sem constrangimento: “O rei está nu!”. Mas nem eu e nem você somos mais assim, tão crianças, e nem tão inocentes quanto aquela do conto de Andersen; infelizmente... Infelizmente?

Continua...


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