Capítulo 2
O conceito de amor em Arthur Schopenhauer: Um bocadilho de filosoficeS para não-filósofos
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É o querer, sim, que nos rouba o Paraíso; mas é também ele que, inadvertidamente, põe-nos de novo à sua porta.
– Muriel Maia, A outra face do nada, 1991, p. 152
1.
O amor é um dos temas centrais das filosofias de todos os tempos. Aliás, o próprio termo (philosophia) é radicado no amor; amor à sabedoria. Ou seja, é algo sempre em vista de; não é um saber definido, mas a definir-se, alimentado e alimentando-se numa ignorância confessa que, assim reconhecendo-se, é, provavelmente, de todos os saberes, o que mais se aproxima do “saber total”. O jargão que diz que a philosophia è una scienza colla quale o senza la quale il mondo diventa tale e quale, famoso por sua jocosidade, não é sem fundamento. Sendo um saber-de-si, um saber pelo saber, a filosofia eleva-se ao status de uma finalidade própria, não como serva – como os cristãos dos primeiros séculos tencionaram fazê-la –, não como meio, mas como fim. Todavia, que ela possa ser útil à vida, e que lhe seja, não há dúvida.
Ligado à filosofia, o amor, não sublimado, tem a natureza fincada na Vontade, no desejo de vida e, assim, distancia-se dela no quesito si-mesmo. O amor romântico, enquanto visto pela filosofia – ao menos da maneira que aqui o veremos –, tem a finalidade servil do coito, da procriação, seja aos homens ou aos animais. Mas os animais, embora sensíveis ao desejo, à libido – mas sem as mascaras da civilidade –, desconhecem o que seja “amor”. O sexo, para eles, é uma função biológica tão natural como o comer, o beber, o dormir, etc. Notemos ainda como às plantas, por sua assexualidade, é incomum a aplicação do termo “amor”. Somente aos homens, pela consciência moral e o sentimento de transcendência, é comum a idéia de “amor”, de “amar”.
2.
Os discursos sobre o amor parecem sempre querer transcender as falas miúdas dos amores meramente humanos – se é que existem amores que não sejam meramente humanos. Isso tudo vem a reboque no lastro da cultura ocidental, predominantemente platônico-cristã, que impôs desde cedo um padrão de discurso que faz tudo esbarrar no divino Absoluto, que é o Real, sendo tudo o mais apenas aparências, sombras imperfeitas procedentes de uma perfeição extra-mundana. É o amor sublime (divino) em oposição ao amor feinho (humano), como diz a poetisa mineira Adélia Prado em um poema 1 – que é o único recurso literário, realmente, capaz de tratar sobre a verdade possível, dizível. De tal diferença conceitual, basta ver como, no Novo Testamento, o termo ágape (amor desinteressado, amor que ama gratuitamente) vem em substituição a Eros (amor pelo que é belo, erótico). Uma oposição evidente, pelo menos em sua função mais imediata, que apresenta, na linguagem comum, significados “múltiplos, dispares e contrastantes”, como diz Nicola Abbagnano 2.
A imagem do Ocidente cristão. Eros é rejeitado, por estar associado à degradação moral, à perversão sexual. Ágape, que não é um deus, logo sem uma personalidade formada, assume o seu lugar. A young girl defending herself against Eros (1880), de William Bouguereau (1825-1905).
1 PRADO, Adélia. Bagagem. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1979. p. 103. (Col. Poiesis): “Eu quero amor feinho. / Amor feinho não olha um pro outro. / Uma vez encontrado é igual a fé, / não teologa mais. / Duro de forte o amor feinho é magro, doido por sexo / e filhos tem os quantos haja. / Tudo que não fala, faz [...].” Adélia parece querer aproximar o amor humana – esse que é “doido por sexo” – ao amor divino, que não olha a beleza para desejar, querer. Uma, evidente, licença poética, sem aquelas razões que a teologia, por vezes, procura dar ao termo – e daí o “não teologa mais”, no poema.
2 ABBAGNANO, Nicola. Amor. In: _____. Dicionário de filosofia. 2. Ed. Trad. de Alfredo Bosi. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 38.
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