quinta-feira, 22 de julho de 2010

Arte, loucura e genialidade

1.

Há, por fim – mas isso apenas por conveniência –, outro tema que, relativo à arte, deve ser tratado, mesmo que de modo breve: o da genialidade e da loucura, ou da fronteira que separa a arte genial da loucura do louco. O tema, de fato, não é novo, podendo ser visto na genealogia que caracteriza a obra de Michel Foucault, a exemplo dos seus cinco primeiros trabalhos: História da loucura na Idade Clássica (1961), O nascimento da clínica (1963), As palavras e as coisas (1966), A arqueologia do saber (1969) e Vigiar e punir (1975). O tema da loucura e da punição social voltará, anos depois, em: A sociedade punitiva (1973), O poder psiquiátrico (1974) e Os anormais (1975). Provavelmente nehum outro autor tenha dedicado tanto tempo e nem levado tão a sério a temática da loucura e a relação do louco com a sociedade. Desde Foucault, e talvez ele tenha contribuído muito para isso - dada a influência que exerceria na psicanálise moderna e o no meio acadêmico - muita coisa mudou em “nossa maneira de ver a loucura.

2.

Passado é o tempo em que a afirmação “fulano é louco, pela arte – entenda a palavra, aqui, do modo mais abrangente possível – que produzia, era recebida como agressão verbal, ou moral. Hoje, tal acusação está mais para elogio da virtude, subentendida; e dada a situação, diz que vê o artista flertar (ou flertando) com a genialidade. Mas isso nem sempre foi assim. O lugar dos loucos, antes de ocuparem as galerias, os palcos, et cetera, era o asilo, o isolamento social. Os asilos escondiam os corpos dos loucos, os “associais e desprovidos de cidadania”, excluídos do mundo dos mentalmente sãos. O asilo era “para o próprio bem estar do louco”. E embora Freud tenha apontado para a existência de uma neurose humano-coletiva – coisa que é levada ao extremo por Machado de Assis no seu O alienista (de 1882) -, há, mesmo hoje, uma separação prática entre o louco e o não-louco, ou o louco comum e o artista que, pela via da arte, pode ser um louco com permissão, um louco-livre... e até aplaudido por sua virtuosa loucura.



Você também não seria um? O louco, de Pamela Colman Smith, para o livro Pictorial Key to the Tarot (de 1909), de Arthur Edward Waite


3.

O brilhante matemático estadunidense John Forbes Nash Jr. – representado no cinema por Russell Crowe no filme Uma mente brilhante (A beautiful mind, 2001), dirigido por Ron Howard e Brian Grazer –, quando tinha a sua loucura controlada por remédios, não conseguia produzir, porque também não conseguia pensar direito – um paradoxo da razão. Teve que aprender a conviver com a esquizofrenia paranóica acompanhada de depressão e baixo auto-estima, conforme o diagnóstico oficial, para continuar produzindo; o que lhe rendeu o Nobel de Economia em 1994. Quatro anos antes, em Londres, fora realizada pela primeira vez uma exposição com as obras de alguns doentes mentais no Bethlem Royal Hospital. Na década de 20, por fim, artistas como Max Ernst e Paul Klee manifestaram sua admiração ante a estranheza e a espontaneidade dessas criações que eles próprios procuravam atingir, muitas vezes, por meios artificiais. Tais relações de valor entre arte e loucura, ou entre o gênio e a maluquice, não eram mais novidade. Em 1945, o pintor francês Jean Dubuffet já lançara a idéia de uma art brut, valendo-se de algumas obras produzidas por indivíduos psiquiatrizados; o conceito procurava qualificar tais obras artisticamente, inserindo-as dentro de um processo criativo natural. E embora fossem “criações de não-profissionais” – mesmo porque era preciso definir o que era um “profissional da arte” – tais obras começaram a ser encaradas sob a nova perspectiva.

Em outras palavras, Dubuffet começou a problematizar o que depois chamaria de “arte culta”, privilegiando assim um tipo de produção marginal cujos temas, materiais, técnicas e sistemas de figuração apresentavam pouca ou nenhuma relação com a tradição ocidental ou com tendências da moda, nenhum compromisso com o Mercado ou com os destinatários da produção artística. Seria uma arte-pela-arte, primitiva, crua, a Arte bruta em sua raiz essente – um modo de produção extraído por seus autores do fundo de seu próprio ser, e que plasticamente transgredia “as imagens do mundo apresentadas pela cultura”; isso era mais do que Dalí e o oniricismo surrealista, mais do que a produção abstrato-artificial do são que, mediante o uso de alguma substância química ou psicotrópica, viajam para dimensões que transcendem o “real”. Sim, da art brut não se espera que seja “normal”, mas que seja, por outro lado, “o mais possível inédita e imprevista, isto é, extremamente imaginativa” e real na sua irrealidade – fruto do real sofrimento e daquela solidão pura que faz emergir o autêntico impulso criativo. Tais artes são, segundo Dubuffet, mais preciosas e verdadeiras do que as produções dos profissionais. “Após uma certa familiaridade com essas florações altamente febris”, diz ele, “tão total e intensamente vividas por seus autores, não podemos subtrair-nos à sensação de que a arte cultural, ao lado delas, parece, em seu conjunto, fútil jogo de sociedade, falaciosa ostentação”.

Continua...

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