segunda-feira, 31 de dezembro de 2012


29.






De como Eros foi cuspido (Parte 2)*



“Todo o homem de hoje2, em quem a estatura moral e o relevo intelectual não sejam de pigmeu ou de charro, ama, quando ama, com o amor romântico. O amor romântico é um produto extremo de séculos sobre séculos de influência cristã3; e, tanto à sua substância, como quanto à sequência do seu desenvolvimento, pode ser dado a conhecer a quem não o perceba comparando-o com uma veste, ou traje, que a alma ou a imaginação fabriquem4 para com ele vestir as criaturas, que acaso apareçam, e o espírito ache que lhes cabe.
“Mas todo o traje, como não é eterno, dura tanto quanto dura; e em breve, sob a veste do ideal que formámos, que se esfacela, surge o corpo real da pessoa humana, em quem o vestimos.5
O amor romântico, portanto, é um caminho de desilusão. Só o não é quando a desilusão, aceite desde o princípio, decide variar de ideal constantemente, tecer constantemente, nas oficinas da alma, novos trajes, com que constantemente se remove o aspecto da criatura, por eles vestida.”
*****
“Nunca amamos alguém. Amamos, tão-somente, a ideia que fazemos de alguém. É a um conceito nosso – em suma, é a nós mesmos – que amamos.6
“Isto é verdade em toda a escala do amor. No amor sexual buscamos um prazer nosso dado por intermédio de um corpo estranho. No amor diferente do sexual, buscamos um prazer nosso dado por intermédio de uma ideia nossa. O onanista é abjecto7, mas, em exacta verdade, o onanista é a perfeita expressão lógica do amoroso. É o único que não disfarça nem se engana.
“As relações entre uma alma e outra, através de coisas tão incertas e divergentes como as palavras comuns e os gestos que se empreendem, são matéria de estranha complexidade8. No próprio acto em que nos conhecemos, nos desconhecemos. Dizem os dois ‘amo-te’ ou pensam-no e sentem-no por troca, e cada um quer dizer uma ideia diferente, uma vida diferente, até, porventura, uma cor ou aroma diferente, na soma abstracta de impressões que constitui a atividade da alma.9
“Estou hoje lúcido como se não existisse. Meu pensamento é em claro como um esqueleto, sem os trapos carnais da ilusão de exprimir. [...]”





* Os textos que seguem (dois fragmentos) são transcrições de: PESSOA, Fernando. Autobiografia sem factos. In: _____. Livro do desassossego: composto por Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p. 136-7 [§ 111 e 112]. As notas são minhas, e os itálicos. 
2 O livro do desassossego começou a ser escrito em 1913 – que foi quando apareceu, publicada, a prosa “Na Floresta do Alheamento”. Os dois trechos, transcritos acima, fazem parte do conjunto de fragmentos ao qual Bernardo Soares (Fernando Pessoa) chamou de Estética da abdicação (trecho 105 a 114), dentro da “Autobiografia sem fatos”. Pessoa trabalharia no Livro até sua morte (30 de novembro de 1935), deixando-o como podemos ver: incompleto, fragmentário; podendo ser lido a partir de qualquer parte.
3 É na intenção de provar essa máxima, máxima, principalmente através da literatura (histórica, romântica, filosófica e teológica), que o conjunto de textos até então apresentados existe. Outras intenções – como a exposição da insustentabilidade de certos dogmas e fundamentalismos, tanto na teologia (principalmente) como nalgumas escolas do pensamento dito liberal – aparecem naturalmente, mesmo ao leitor menos atento.
4 É a fantasia, a máscara moral da cristandade ocidental. A que foi colocada sobre o sexo (como já mostrei e ainda mostrarei) é a maior e mais evidente de todas. Em relação às concepções cristãs, principalmente as de Agostinho de Hipona, por seu alcance na formação moral do Ocidente – sobre o corpo e o sexo –, teólogas modernas, de orientação feminista, têm apontado, às vezes anacronicamente, as falhas de tais concepções doutrinárias. Uma delas, Uta Ranke-Heinemann, valendo-se de um texto fragmentado da obra de Fredrich Heer (HEER, Fredrich. Gottes erste Liebe: Die Juden im Spannungsfeld der Geschichte. Esslingen, 1981. p. 69-71), afirma que Agostinho, “como muitos neuróticos, [...] separa de forma radical o amor da sexualidade”. (RANKE-HEINEMANN, Uta. Eunucos pelo reino de Deus: mulheres, sexualidade e a Igreja Católica. 3. ed. Rio de Janeiro: Record / Rosa dos Tempos, 1996. p. 88-9). A perspectiva de Ranke-Heinemann é também equivocada: é romântica, é típica daquele Romantismo que marca o jovem Werter, na obra de J. W. Goethe (1749-1832). Ademais, a autora parece querer manter aquela união mística entre o amor romântico e o Desejo, ignorando-o como “mero” artifício da Vontade – uma opção do sentimento, não da razão (cf. SCHOPENHAUER, Arthur. Metafísica de las costumbres. Madrid: 1993. [Col. Classicos del Pensamiento]). Um dos principais equívocos de tais teólogas – como se isso já não fosse um equívoco – é o modo como elas se armam com a “paixão da causa”, numa hermenêutica assumidamente sexista, cega às questões maiores. De todo modo, e contra o modo apressado (e anacrônico) de tais juízos, o renomado agostinólogo italiano, Agostinho Trapè, afirma que, ultimamente, “está na moda [...] falar mal sobre esse ponto – e não somente esse – do bispo de Hipona” (TRAPÈ, Agostinho. S. Agostino: l’uomo, il pastore, il mistico. Fossano: Editrice Esperienze, 1976. p. 227). Todavia, e não obstante a leitura apaixonada de Ranke-Heinemann sobre a “sexualidade em Agostinho”, é estranho que tanto se associe a moral cristã à sexualidade, como se isso encerrasse a maior parte dos seus “problemas”. Uma leitura coerente sobre o tema da moral sexual, em Agostinho, pode ser vista em: BROWN, Peter. Agostinho: sexualidade e sociedade. In: _____. Corpo e sociedade: o homem, a mulher e a renúncia sexual no início do cristianismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1990. p. 318-51.
5 Uma posição claramente antimetafísica, ou realista – como é tão comum de se notar na alma perturbada de Bernardo Soares, ou na poesia de Alberto Caeiro. A sentença: “Os deuses são a encarnação do que nunca poderemos ser” (PESSOA, 1999, p. 340 [§ 375]), no Livro do desassossego, poderia perfeitamente estar em Feuerbach.  
6 Como em Alberoni: “O indivíduo loucamente apaixonado é como o convertido que deixa casa, filhos, tudo pela fé. Ou como o terrorista que mata, mas por razões idealistas. O prazer não possui essa dignidade ética. O erotismo masculino [...] é absolutamente o inverso da ética. Esta impõe que se considere o outro ser humano como fim e jamais como meio. O objeto do desejo erótico masculino, ao contrário, é meio, como o alimento, como a água, como a cama para quem tem sono. Tudo o que serve para satisfazer uma necessidade é meio. Até mesmo a reciprocidade, no erotismo masculino, é egoísta. O prazer da mulher é desejado em vista do próprio prazer.” (ALBERONI, Franscesco. O erotismo: fantasias e realidades do amor e da sedução. São Paulo: Círculo do Livro, [s.d.]. p. 49).
7 Na história bíblica (Gênesis 38, 4-10), Onã – e daí a palavra onanismo –, sempre que tem relações com a viúva de seu irmão, para lhe suscitar descendência (como era costume entre os hebreus da época), retira o membro da vagina da mulher, deixando que o sêmen caia ao chão; “já que o filho não será meu”, pensa. A prática, no sentido, equivale ao ato da masturbação, em que não há a fertilização de um par.
8 Quando trata sobre “A relação intelectual” entre os casais, Pierre Weil destoa de Pessoa e, em uma somatória de banalidades, percorre o caminho fácil do senso comum: “Os parceiros gostam cada vez mais um do outro [quando] encontram opiniões em acordo e sintonia com o que pensam e sentem, sobre assuntos e motivações os mais diversos, tais como política, religião, arte, música, filosofia da vida, hobbies etc...” (WEIL, Pierre. Amar e ser amado: a comunicação no amor. 16 ed. Petrópolis: Vozes, 1986. p. 66). Nem de longe ocorre ao autor que, no outro, é o nosso reflexo o que vemos e amamos. E por isso, também, logo deixamos de amar – no sentido erótico sensual –, porque nos cansamos da masturbação, queremos o corpo de outro, e não apenas o nosso (veja a nota acima). Por esse dilema é que Pessoa diz: “O amor romântico é um caminho de desilusão.” E não é, quando na ilusão dos interstícios da/na referida procura: “Só o não é”, ele diz, “quando a desilusão, aceite desde o princípio, decide variar de ideal constantemente, tecer constantemente, nas oficinas da alma, novos trajes, com que constantemente se remove o aspecto da criatura, por eles vestida.” (PESSOA, 1999, p. 137 [§ 111]). Por fim: “No amor sexual buscamos um prazer nosso dado por intermédio de um corpo estranho.” (PESSOA, 1999, p. 137 [§ 112]). O outro, com ou sem a nossa ética, qualquer que seja ela, é o nosso objeto, e sempre em função de nós mesmos.
9 De fato, e como afirma em outra parte (fazendo coro a Sócrates e Kierkegaard): “A ironia é o primeiro indício de que a consciência se tornou consciente. E a ironia atravessa dois estádios: o estádio marcado por Sócrates, quando disse ‘sei só que nada sei’, e o estádio marcado por Sanches, quando disse ‘nem sei se nada sei’. O primeiro passo chega àquele ponto em que duvidamos de nós dogmaticamente, e todo o homem superior o dá e atinge. O segundo passo chega àquele ponto em que duvidamos de nós e de nossa dúvida, e poucos homens o têm atingido na curta extensão já tão longa do tempo que, humanidade, temos visto o sol e a noite sobre a vária superfície da terra. Conhecer-se é errar, e o oráculo que disse ‘Conhece-te’ [a ti mesmo] propôs uma tarefa maior que a de Hércules e um enigma mais negro que o da Esfinge.” (PESSOA, 1999, p. 165 [§ 149]).


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