28.
De como Eros foi cuspido (Parte 1)*
“No cristianismo o religioso suspendeu o erótico, não só por um
equívoco ético, como o pecaminoso, mas sim como o indiferente1, porque não há no espírito nenhuma
diferença de homem ou mulher2. Aqui, o
erótico não está ironicamente neutralizado, mas suspenso, porque a tendência do
cristianismo é a de levar o espírito adiante. Quando, no pudor, o espírito fica
aflito e encabulado por revestir-se da diferença de gênero, a individualidade
de repente salta fora e, em vez de impregná-la eticamente, agarra uma
explicação que provém da mais alta esfera do espírito3.
Este é um dos aspectos da visão monástica, quer esta se defina mais como
rigorismo ético, quer como contemplação predominante.4
“Tal como no pudor a angústia5
esta posta, também está presente em todo gozo erótico, não porque este seja
pecaminoso, de modo algum; por isso também não adianta nada se o pastor
abençoar dez vezes o casal. Mesmo quando o erótico se exprime com tanta beleza
e pureza e segundo os bons costumes quanto possível, sem ser perturbado em sua
alegria por alguma reflexão voluptuosa, a angústia está ainda assim presente,
porém não como fator de perturbação, e sim como um momento adicional.6
“É extremamente difícil, no tocante a isso, fornecer observações
experimentais. Normalmente, há que se ter aqui o cuidado que os médicos
empregam de jamais verificar o pulso sem se certificarem antes de que não estão
a segurar o próprio em vez do pulso do paciente; igualmente é preciso ter
cautela para evitar que a emoção que se descobre seja, afinal, a inquietação
que o observador sente diante de sua própria observação.”
* O texto que
segue é transcrição literal de: KIERKEGAARD, Sören A. O conceito de angústia: uma simples reflexão
psicológico-demonstrativo direcionada ao problema dogmático do pecado
hereditário de Vigilius Haufniensis. Petrópolis: Vozes; São Paulo: Editora
Universitária São Francisco, 2010. p. 76-7. (Col. Pensamento Humano). As notas,
com exceção da 4, do próprio Kierkegaard, são minhas.
1 O sentido
para “diferente”, aqui, é aquele da adiáfora
(ἀδιάφορα), entre cínicos e estoicos. Adiáfora
diz respeito àquelas coisas que, como afirma Sexto Empírico (180-220 d.C.), “não contribuem nem
para a felicidade nem para a infelicidade, como a saúde e a riqueza ou, em
outros termos, aquilo de que se pode fazer bom ou mau uso” (Pirr. hyp., III, 177; EMPIRICI, Sexti. Pirroneion hypotyposeon libri tres. In: ____. Opera. Hermannus Mutschmann Ed. Lipsiae in Aedibus B. G. Teubneri, 1912.
v. 1).
2 É o espírito
cristão (natureza espiritual), reflexo da piedosa alma imortal: aquele nosso Eu que, no céu (aqui é preciso fé),
não reconhece o sexo por sua função erótica (libido, vontade, procriação, etc.), como na resposta do Cristo aos Saduceus: “Na ressurreição, as pessoas não
casam nem são dadas em casamento, são como anjos no céu.” (Mateus, 22, 30; TEB). E ainda, nas palavras do Apóstolo: “E assim
como nós existimos à imagem do homem terrestre, assim também existiremos à
imagem do homem celeste.” (1Coríntios,
15, 49; TEB). O corpo espiritual, ressuscitado, na exposição apostólica, não
herda a corrupção da carne (seus apetites), que não ressuscita.
3 Isto é, do
ideal que se deseja ao espírito: sua elevação a Deus (à Ideia, em Sócrates-Platão),
pelo caminho da piedade (do amor – como foi mostrado n’O banquete). A doutrina é nitidamente idealista. Idealista e
otimista em relação à verdade e ao progresso do espírito (contra a individualidade
egoísta), no trato com o Outro, que é meu “semelhante”. A mulher, no
cristianismo, é também irmã do seu marido, e, por isso, objeto do respeito “extra
ético” (dado no salto da individualidade), quando na relação erótico-carnal. Tal relação, mais que
o imediato prazer individual, deve
existir em função de um novo ser, gerado à imagem e semelhança de Deus. Mais adiante, quando eu
voltar à questão do Eu individual na “ética sexual” do cristianismo – baseando-me
nas obras de Francesco Alberoni (O
erotismo: fantasias e realidades do amor e da sedução [1986]) e Max Stirner
(O único e sua propriedade [1845]),
principalmente –, mostrarei que tal análise não se sustenta senão pela voz da
fé. Voz que – como se nota no “neoplatonismo paulino”, radical –, hoje, se não
é afônica, é completamente distorcida ou diluída na fé individual conforme a
conveniência (a hermenêutica da situação).
4 “Por
estranho que possa parecer a quem não está acostumado a observar com audácia os
fenômenos, há, não obstante, uma completa analogia entre a concepção irônica do
erótico enquanto o cômico, de Sócrates, e a atitude de um monge a respeito das mulieres subintroductae [‘mulheres
subintroduzidas’, ou ‘virgens subintroduzidas’,
virginis subintroductae, como foram chamadas algumas religiosas no medievo, as
que coabitavam com monges em conventos, compartilhando o mesmo leito. Também
chamadas de agapetas – ‘cultoras de
ágape, o espírito cristão da fraternidade universal’ –, praticavam certa forma
de amor e sexo sublimados, com os monges: carícias, beijos e afeto... mas sem o
coito com penetração]. O abuso só interessa, naturalmente, àquele que fareja abusos.”
(N. do A., exceto as chaves). Para compreender o método da ironia, em Sócrates
e em Kierkegaard, seu herdeiro maior, ver: KIERKEGAARD, S. A. O conceito de ironia constantemente referido
a Sócrates. Petrópolis: Vozes, 1991. p. 11. (Col. Pensamento Humano).
5 Lembrar que
o tema de Kierkegaard, aqui, é o da angústia. Introduzido por ele, na filosofia
– com a publicação de O conceito de
angústia, em 1844 –, o termo faz referência à atitude do homem diante de
sua situação no mundo; e sua raiz é a possibilidade. Diferentemente do temor e
de outros estados anímicos semelhantes, que se referem a algo determinado (temor
a...), a angústia não se refere a nada que seja exato, preciso, rigoroso – é o
sentimento puro da possibilidade, a dimensão do futuro diante de mim, sem garantias. “A inocência é ignorância”, e quanto
mais ignorância, menos angústia – que existe mesmo nas crianças. E, “que haja
crianças nas quais ela não se encontra, nada prova, pois o animal também não a
tem, e quanto menos espírito, menos angústia.” (O
conceito de angústia, 1, § 5; KIERKEGAARD, 2010, p. 45-6). “O angustiar-se
como alguma coisa”, Heidegger diz, “não possui nem o caráter de espera nem de
atendimento. O com quê a angústia se angustia já está ‘pre-sente’, é a própria
pre-sença. [...] A insignificância do mundo, aberta na angústia, desentranha o
nada das ocupações, isto é, a impossibilidade de se projetar um poder-ser da
existência primariamente fundado na ocupação. Desentranhar essa impossibilidade
significa, porém, deixar via à luz a possibilidade de um poder-ser em sentido
próprio. Que sentido temporal possui esse desentranhar? A angústia angustia-se
pela presença nua e crua, lançada na estranheza. Ela recoloca o fato puro do
estar-lançado [no mundo] mais próprio e singular. [...] A angústia se eleva a
partir do ser-no-mundo enquanto ser-lançado-para-a-morte.” (Sein und Zeit, § 68 b; HEIDEGGER,
Martin. Ser e Tempo: parte II. 9. ed.
Petrópolis: Vozes, 2002. p. 140-2. [Col. Pensamento Humano]).
6 Como
sumariado na máxima latina: post coitum omne animalium triste est.
Ou como anotado por Lucrécio: “Giramos sempre no mesmo círculo sem nunca poder sair...
Enquanto o objeto de nossos desejos permanece distante, ele nos parece superior
a todo o resto; se ele é nosso, passamos a desejar outra coisa, e a mesma sede
da vida nos mantém em permanente tensão...” (LUCRÉCIO. De rerum natura, III, 1080-1084. Citado em: COMTE-SPONVILLE, André.
A felicidade, desesperadamente. São
Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 29). Afirmação subscrita por Schopenhauer,
ao afirmar que a “vida [do homem], [...] oscila como um pêndulo, para
aqui e para acolá, entre a dor e o tédio” (SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo como Vontade e como Representação.
São Paulo: Editora UNESP, 2005. p. 402. [IV, 57]). No mesmo sentido, Sartre é sentencioso,
e no mesmo espírito de Kierkegaard: “O prazer é a morte e o fracasso do desejo”,
e é por isso que “o desejo está fadado ao fracasso.” (SARTRE, Jean-Paul. L’être et le
néant. Paris: Gallimard, 1969. p. 467).