quinta-feira, 27 de dezembro de 2012


28.






De como Eros foi cuspido (Parte 1)*



“No cristianismo o religioso suspendeu o erótico, não só por um equívoco ético, como o pecaminoso, mas sim como o indiferente1, porque não há no espírito nenhuma diferença de homem ou mulher2. Aqui, o erótico não está ironicamente neutralizado, mas suspenso, porque a tendência do cristianismo é a de levar o espírito adiante. Quando, no pudor, o espírito fica aflito e encabulado por revestir-se da diferença de gênero, a individualidade de repente salta fora e, em vez de impregná-la eticamente, agarra uma explicação que provém da mais alta esfera do espírito3. Este é um dos aspectos da visão monástica, quer esta se defina mais como rigorismo ético, quer como contemplação predominante.4
“Tal como no pudor a angústia5 esta posta, também está presente em todo gozo erótico, não porque este seja pecaminoso, de modo algum; por isso também não adianta nada se o pastor abençoar dez vezes o casal. Mesmo quando o erótico se exprime com tanta beleza e pureza e segundo os bons costumes quanto possível, sem ser perturbado em sua alegria por alguma reflexão voluptuosa, a angústia está ainda assim presente, porém não como fator de perturbação, e sim como um momento adicional.6
“É extremamente difícil, no tocante a isso, fornecer observações experimentais. Normalmente, há que se ter aqui o cuidado que os médicos empregam de jamais verificar o pulso sem se certificarem antes de que não estão a segurar o próprio em vez do pulso do paciente; igualmente é preciso ter cautela para evitar que a emoção que se descobre seja, afinal, a inquietação que o observador sente diante de sua própria observação.”






* O texto que segue é transcrição literal de: KIERKEGAARD, Sören A. O conceito de angústia: uma simples reflexão psicológico-demonstrativo direcionada ao problema dogmático do pecado hereditário de Vigilius Haufniensis. Petrópolis: Vozes; São Paulo: Editora Universitária São Francisco, 2010. p. 76-7. (Col. Pensamento Humano). As notas, com exceção da 4, do próprio Kierkegaard, são minhas.  
1 O sentido para “diferente”, aqui, é aquele da adiáfora (ἀδιάφορα), entre cínicos e estoicos. Adiáfora diz respeito àquelas coisas que, como afirma Sexto Empírico (180-220 d.C.), “não contribuem nem para a felicidade nem para a infelicidade, como a saúde e a riqueza ou, em outros termos, aquilo de que se pode fazer bom ou mau uso” (Pirr. hyp., III, 177; EMPIRICI, Sexti. Pirroneion hypotyposeon libri tres. In: ____. Opera. Hermannus Mutschmann Ed. Lipsiae in Aedibus B. G. Teubneri, 1912. v. 1).
2 É o espírito cristão (natureza espiritual), reflexo da piedosa alma imortal: aquele nosso Eu que, no céu (aqui é preciso fé), não reconhece o sexo por sua função erótica (libido, vontade, procriação, etc.), como na resposta do Cristo aos Saduceus: “Na ressurreição, as pessoas não casam nem são dadas em casamento, são como anjos no céu.” (Mateus, 22, 30; TEB). E ainda, nas palavras do Apóstolo: “E assim como nós existimos à imagem do homem terrestre, assim também existiremos à imagem do homem celeste.” (1Coríntios, 15, 49; TEB). O corpo espiritual, ressuscitado, na exposição apostólica, não herda a corrupção da carne (seus apetites), que não ressuscita.    
3 Isto é, do ideal que se deseja ao espírito: sua elevação a Deus (à Ideia, em Sócrates-Platão), pelo caminho da piedade (do amor – como foi mostrado n’O banquete). A doutrina é nitidamente idealista. Idealista e otimista em relação à verdade e ao progresso do espírito (contra a individualidade egoísta), no trato com o Outro, que é meu “semelhante”. A mulher, no cristianismo, é também irmã do seu marido, e, por isso, objeto do respeito “extra ético” (dado no salto da individualidade), quando na relação erótico-carnal. Tal relação, mais que o imediato prazer individual, deve existir em função de um novo ser, gerado à imagem e semelhança de Deus. Mais adiante, quando eu voltar à questão do Eu individual na “ética sexual” do cristianismo – baseando-me nas obras de Francesco Alberoni (O erotismo: fantasias e realidades do amor e da sedução [1986]) e Max Stirner (O único e sua propriedade [1845]), principalmente –, mostrarei que tal análise não se sustenta senão pela voz da fé. Voz que – como se nota no “neoplatonismo paulino”, radical –, hoje, se não é afônica, é completamente distorcida ou diluída na fé individual conforme a conveniência (a hermenêutica da situação).
4 “Por estranho que possa parecer a quem não está acostumado a observar com audácia os fenômenos, há, não obstante, uma completa analogia entre a concepção irônica do erótico enquanto o cômico, de Sócrates, e a atitude de um monge a respeito das mulieres subintroductae [‘mulheres subintroduzidas’, ou ‘virgens subintroduzidas’, virginis subintroductae, como foram chamadas algumas religiosas no medievo, as que coabitavam com monges em conventos, compartilhando o mesmo leito. Também chamadas de agapetas – ‘cultoras de ágape, o espírito cristão da fraternidade universal’ –, praticavam certa forma de amor e sexo sublimados, com os monges: carícias, beijos e afeto... mas sem o coito com penetração]. O abuso só interessa, naturalmente, àquele que fareja abusos.” (N. do A., exceto as chaves). Para compreender o método da ironia, em Sócrates e em Kierkegaard, seu herdeiro maior, ver: KIERKEGAARD, S. A. O conceito de ironia constantemente referido a Sócrates. Petrópolis: Vozes, 1991. p. 11. (Col. Pensamento Humano).
5 Lembrar que o tema de Kierkegaard, aqui, é o da angústia. Introduzido por ele, na filosofia – com a publicação de O conceito de angústia, em 1844 –, o termo faz referência à atitude do homem diante de sua situação no mundo; e sua raiz é a possibilidade. Diferentemente do temor e de outros estados anímicos semelhantes, que se referem a algo determinado (temor a...), a angústia não se refere a nada que seja exato, preciso, rigoroso – é o sentimento puro da possibilidade, a dimensão do futuro diante de mim, sem garantias. “A inocência é ignorância”, e quanto mais ignorância, menos angústia – que existe mesmo nas crianças. E, “que haja crianças nas quais ela não se encontra, nada prova, pois o animal também não a tem, e quanto menos espírito, menos angústia.”  (O conceito de angústia, 1, § 5; KIERKEGAARD, 2010, p. 45-6). “O angustiar-se como alguma coisa”, Heidegger diz, “não possui nem o caráter de espera nem de atendimento. O com quê a angústia se angustia já está ‘pre-sente’, é a própria pre-sença. [...] A insignificância do mundo, aberta na angústia, desentranha o nada das ocupações, isto é, a impossibilidade de se projetar um poder-ser da existência primariamente fundado na ocupação. Desentranhar essa impossibilidade significa, porém, deixar via à luz a possibilidade de um poder-ser em sentido próprio. Que sentido temporal possui esse desentranhar? A angústia angustia-se pela presença nua e crua, lançada na estranheza. Ela recoloca o fato puro do estar-lançado [no mundo] mais próprio e singular. [...] A angústia se eleva a partir do ser-no-mundo enquanto ser-lançado-para-a-morte.” (Sein und Zeit, § 68 b; HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo: parte II. 9. ed. Petrópolis: Vozes, 2002. p. 140-2. [Col. Pensamento Humano]).  
6 Como sumariado na máxima latina: post coitum omne animalium triste est. Ou como anotado por Lucrécio: “Giramos sempre no mesmo círculo sem nunca poder sair... Enquanto o objeto de nossos desejos permanece distante, ele nos parece superior a todo o resto; se ele é nosso, passamos a desejar outra coisa, e a mesma sede da vida nos mantém em permanente tensão...” (LUCRÉCIO. De rerum natura, III, 1080-1084. Citado em: COMTE-SPONVILLE, André. A felicidade, desesperadamente. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 29). Afirmação subscrita por Schopenhauer, ao afirmar que a “vida [do homem], [...] oscila como um pêndulo, para aqui e para acolá, entre a dor e o tédio” (SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo como Vontade e como Representação. São Paulo: Editora UNESP, 2005. p. 402. [IV, 57]). No mesmo sentido, Sartre é sentencioso, e no mesmo espírito de Kierkegaard: “O prazer é a morte e o fracasso do desejo”, e é por isso que “o desejo está fadado ao fracasso.” (SARTRE, Jean-Paul. L’être et le néant. Paris: Gallimard, 1969. p. 467).


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