Do amor à
felicidade
Não há dúvida de que a felicidade, em todos os sentidos, seja
a principal meta das filosofias, do filosofar. Pascal, como vimos, dizia que
“todos os homens procuram ser felizes; isso não tem exceção...” E que “é esse o
motivo de todas as ações de todos os homens, inclusive dos que vão se enforcar”1. Platão, no Eutidemo, pergunta: “Não é verdade que nós,
homens, desejamos todos ser felizes? De fato, quem não deseja ser feliz?2” De tão óbvia, a resposta era desnecessária.
Quem não deseja ser feliz? “A busca da felicidade é a
coisa mais bem distribuída do mundo”, diz André Comte-Sponville, numa
corruptela da famosa sentença carteseana3. Amartya
Sen, no início de Desenvolvimento como
liberdade, narra uma história oriental do século VIII a.C. Nela, um
preocupado casal conversa sobre o tema: em que a riqueza os poderia ajudar na
obtenção daquilo que eles mais desejavam: viver para sempre? A mulher pergunta:
“Caso o mundo inteiro, repleto de riquezas, pertencesse a mim, isto me tornaria
imortal?” “Não”, responde o marido, “sua vida seria apenas como a vida das
pessoas muito ricas. A riqueza não traz a imortalidade.” “Então”, ela diz, “de
que me serve ser rica se isso não me torna imortal?” Sen se apressa a mostrar
que, séculos depois, o Cristo apresenta a mesma questão, dizendo: “Que adianta
ao homem ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma?”4
Mais do que a eternidade, é à eternidade feliz que perseguimos – e é essa, justamente, a maior, melhor
e mais bem sucedida promessa da propaganda cristã5.
O que é o inferno (cristão), senão o contrário da eternidade feliz? Zaratustra, em seu canto ébrio, olha para os
homens, dizendo-lhes:
E se quisestes,
algum dia, duas vezes o que houve uma vez, se dissestes, algum dia: “Gosto de
ti, felicidade! Volve depressa, momento!”, então quisestes a volta de tudo –
Tudo de novo,
tudo eternamente, tudo encadeado, entrelaçado, enlaçado pelo amor, então, amastes o mundo –
– Ó vós, seres
eternos, o amais eternamente e para todo o sempre; e também vós dizeis ao
sofrimento: “Passa, momento, mas volta!” Pois
quer todo o prazer – eternidade!6
Noutros casos, em que a felicidade, quando a ideia de
eternidade é vaga ou inexistente – como em Sêneca e Epicuro, por exemplos –, a
felicidade (eudaimonía) é para hoje, agora, enquanto
há a vida. Na vida, a eudaimonía somente pode ser adquirida mediante o otium filosófico, com vistas à ataraxía,
a imperturbabilidade da alma, tranquillitate
animi: “Todos os homens”, Sêneca escreve a Gálio, “querem viver felizes,
mas, para descobrir o que torna a vida feliz, vai-se tentando, pois não é fácil
alcançar a felicidade, uma vez que quanto mais a procuramos mais dela nos
afastamos. Podemos nos enganar no caminho, tomar a direção errada; quanto maior
a pressa, maior a distância.”7 Para
Epicuro, os deuses existem, mas não se envolvem com os homens, nem para o seu bem
e nem para o seu mal. Por isso, e sem medo, devemos resolver a nossa própria
vida, adequando-a à natureza deste mundo:
evitando os excessos, cultivando a tranquilidade serena e, assim fazendo, sendo
felizes: uma das qualidades intrínsecas do sábio.8
Mais que a felicidade, que é como uma ponta de iceberg, é
preciso notar o desejo,
ou o desejar, verbo no infinitivo. O querer ser feliz é o desejo de felicidade: a
vontade situada em uma contrária experiência individual – como ilustrado na
cena final de The great
estasy of Robert Carmichael, o violento e perturbador filme de
Thomas Clay:
Voz
do Lago: O que para cada um de nós é inevitável?
Yudhishthira:
Felicidade.9
Como o viver,
ao que vive (àquele vivente historial, da existencialidade heideggeriana10), também o desejo de felicidade, e sua
noção ideal, ou romântico-idealista. Mas a felicidade, assim, está sempre
depositada no Outro, exterior a nós: que nos falta. O que não temos e sentimos
que deveríamos ter, deveria ser nosso, isso é o que desejamos, para que
possamos, afinal, ser felizes – felicidade adiada, consignada ao futuro e à sua
conquista: “o eroticamente desejado é belo, suave, perfeito, venturoso.11”
O desejo vem antes; a felicidade, depois. Seria a ordem
natural, se a felicidade fosse mais que um conceito. E não há como evitar o
pensamento de que esse desejar seja o
reflexo mais nítido do nosso amour de soi,
do nosso amor a nós mesmos. Mesmo aquele “desejar o mal ao próximo” – como fazemos
aos nossos inimigos ou aos objetos das nossas frustrações (“tomara que o outro
ou a outra seja pior que eu, para que ela aprenda, para que ele aprenda”; “tomara
que dê errado, para que deixe de ser besta”, etc.), etc. – é, por outro viés,
desejar o nosso bem, nossa satisfação em ver o outro em desgraça.
Qualquer que seja o meu desejo, ele é falta, e falta é
querença: o não ter o que se quer; e é, por fim, nas palavras de Schopenhauer,
a infelicidade (ou o sofrimento) de, tendo o que se deseja (futuro), não mais desejá-lo
após havê-lo (passado). No presente, no lugar do desejo e da sua satisfação, ficou
o tédio. Daí Schopenhauer, novamente, agora se valendo de Lucrécio, dizer que a
“vida [do homem], oscila como um pêndulo, para aqui e para acolá, entre a dor e
o tédio”12. Sartre, n’O Ser e o Nada, por fim, é sentencioso:
“O prazer é a morte e o fracasso do desejo”13
Duas
mulheres conversam sobre seus amores. Uma delas diz: “Eu o amo porque o amo.
Pelas coisas que ele me fala. Me canta canções. Me mostra o mundo. Toca o meu
corpo, e ele estremece. Nada me dá, mas me faz bonita... Eu o amarei mesmo que
me abandone. Sentirei saudades...” A outra diz: “Eu o amo porque está sempre
pronto a atender os meus desejos. Nada me recusa. Quando não me quer dar eu
choro, insisto, prometo beijos e ele muda de idéia...” Assim são os dois tipos
de religião.14
Na parábola, figuram ágape
e Eros; mas não tem jeito. No final,
acaba sendo sempre a mesma coisa, voltada para o Eu que ama... que deseja, que quer ser feliz, que vive o absurdo
de, neste mundo, por todos os lados, ver o enorme muro que se ergue contra o
seu horizonte feliz.
1 “Todos os homens procuram ser felizes; não há exceção. Por
diferentes que sejam os meios que empregam, tendem todos a esse fim. O que leva
uns a irem para a guerra e outros a não irem é esse mesmo desejo que está em
todos, acompanhado de diferentes pontos de vista. A vontade nunca efetua a
menor diligência, senão com esse objetivo. Esse é o motivo de todas as ações de
todos os homens, até mesmo do que vão enforcar-se.” (Pens., VII, 425. PASCAL, Blaise. Pensamentos. 4. ed. São Paulo: Nova
Cultural, 1998. p. 137. [Col. Os Pensadores]).
2 PLATÃO. Eutidemo, 278 e. Na tradução inédita que
vem no final da obra de: CANTO, Monique. L’intrigue
philosophique. Essai sur l’Euthydème de Platon. Paris: Les Belles Lettres, 1987. p. 253.
3 COMTE-SPONVILLE,
André. A felicidade, desesperadamente.
São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 2. Em Descartes: “O bom senso é a coisa do mundo melhor partilhada.” (DESCARTES, René. Discurso do método. São Paulo: Nova Cultural, 1996. p. 63. [Col. Os Pensadores]).
4 SEN,
Amartya. Desenvolvimento como liberdade.
São Paulo: Cia. das Letras, 2000. p. 27.
5 Como aparece
em Romanos 8, 15-17, uma entre
dezenas de referências à vita post mortem:
“Vós não recebestes um espírito que vos torne escravos e vos reconduza ao medo,
mas um Espírito que faz de vós filhos adotivos e pelo qual nós clamamos: Abbá, Pai. Esse Espírito é quem atesta
ao nosso espírito que somos filhos de Deus. Filhos, e portanto herdeiros:
herdeiros de Deus, co-herdeiros de Cristo, visto que, participando dos seus
sofrimentos, também teremos parte na sua glória.” (TEB).
6 NIETZSCHE, Friedrich. O canto ébrio. In: _____. Assim falou Zaratustra: um livro para
todos e para ninguém. São Paulo: Círculo do Livro, [s.d.]. p. 324 [§ 11].
7 SÊNECA. Da
felicidade. In: _____. Da vida retirada;
Da tranquilidade da alma; Da felicidade. Porto Alegre: L&PM, 2009. p.
91 (§ 1). (Col. L&PM Pocket, 789). O De
uita beata – classificado pelos estudiosos de Sêneca como um dos seus
tratados morais, juntamente com o De otio
(Sobre o ócio) e De tranquillitate animi (Sobre
a tranquilidade da alma) –, escrito em 58 d.C., além de influenciar, cedeu
o título ao De beata uita de
Agostinho de Hipona, escrito em 386. O Hiponense, aí, faz a felicidade esbarrar
em Deus: fonte originária (e mantenedora) de onde emana tudo o que se pode
chamar de “felicidade”, “vida feliz”. Cf. AGUSTIN, San. De la vida feliz. Buenos Aires: Aguilar, 1955. (Col. Biblioteca de
Iniciación Filosófica, 30). Voltarei ao tema da eudaimonía cristã mais adiante.
8 A
felicidade, para Epicuro, é algo que pode ser atingido pelo esforço próprio do
homem, sem que esse tenha que apelar a divindade (ou divindades). Ser feliz,
para Epicuro, equivale a ser sábio, e ser sábio é saber como conduzir a vida de
modo ético e prudente perante as pessoas e o mundo. Contra a infelicidade,
Epicuro ensina a doutrina dos quatro remédios, o tetraphármakon: 1) a não temeridade à divindade, que é alheia à
sorte dos homens; 2) a não temeridade à morte, que nada é; 3) a compreensão de
que o prazer (ou felicidade) é fácil de ser adquirido, ao passo em que 4) a dor
é sempre breve e suportável. Trato mais detalhadamente sobre este tema, em
Epicuro, em: SALES, Antonio Patativa de. O tema da ΕΥΔΑΙΜΟΝΙΑ na Carta Epicuro: a Meneceu. In: Revista Ágora filosófica: pensamento
Antigo-Tardio e Medieval, Recife, ano 4, n. 2, p. 21-32, 2004. No que diz
respeito à referida carta, ver: EPICURO. Carta sobre a felicidade: a Meneceu.
São Paulo: UNESP, 1997. Bilíngue.
9 The great
estasy of Robert Carmichael (O
grande êxtase de Robert Carmichael) é uma filme britânico independente, escrito
– juntamente com Joseph Lang – e dirigido por Thomas Clay, lançado em 2005, com
distribuição da Boudu Film LLP. O filme
foi lançado no mesmo ano, no Brasil, com o título: “Delinquentes”, distribuído
pela Europa Filmes.
10 “A
existencialidade ou transcendência – na terminologia heideggeriana – é
constituída pelos atos de apropriação das coisas do mundo, por parte de cada
indivíduo. O termo ‘existencialidade’ não é empregado no mesmo sentido em que
se diz que uma pedra ou a Lua ‘existem’, mas como antecipação de suas próprias
possibilidades.” (CHAUÍ, Marilena de Souza. Vida e obra. In: HEIDEGGER, Martin.
Conferências e escritos filosóficos.
São Paulo: Abril Cultural, 2006. p. 7. [Col. Os Pensadores]).
11 Banq., 204c. PLATÃO. O banquete. Porto Alegre: L&PM,
2012. p. 97. (Col. L&PM Pocket, 711).
12
SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo como
Vontade e como Representação. São Paulo: Editora UNESP, 2005. p. 402. (IV,
57).
13 SARTRE,
Jean-Paul. L’être et le néant. Paris: Gallimard, 1969. p. 467.
14 ALVES, Rubem. Mais badulaques. São Paulo: Parábola
Editorial, 2004. p. 130. Já fiz essa associação entre a teologia cristã e o
idealismo romântico em “De uma hermenêutica para o sublime”
(§ 24). Assim, no próprio Alves: “Se você quiser saber como é a alma de uma pessoa, peça-lhe para falar sobre o seu Deus. Tudo o que ela disser sobre o seu Deus estará falando de si mesma.” (ALVES, 2004, p. 49).