terça-feira, 11 de dezembro de 2012

26.





Do amor à felicidade




Não há dúvida de que a felicidade, em todos os sentidos, seja a principal meta das filosofias, do filosofar. Pascal, como vimos, dizia que “todos os homens procuram ser felizes; isso não tem exceção...” E que “é esse o motivo de todas as ações de todos os homens, inclusive dos que vão se enforcar”1. Platão, no Eutidemo, pergunta: “Não é verdade que nós, homens, desejamos todos ser felizes? De fato, quem não deseja ser feliz?2” De tão óbvia, a resposta era desnecessária.
Quem não deseja ser feliz? “A busca da felicidade é a coisa mais bem distribuída do mundo”, diz André Comte-Sponville, numa corruptela da famosa sentença carteseana3. Amartya Sen, no início de Desenvolvimento como liberdade, narra uma história oriental do século VIII a.C. Nela, um preocupado casal conversa sobre o tema: em que a riqueza os poderia ajudar na obtenção daquilo que eles mais desejavam: viver para sempre? A mulher pergunta: “Caso o mundo inteiro, repleto de riquezas, pertencesse a mim, isto me tornaria imortal?” “Não”, responde o marido, “sua vida seria apenas como a vida das pessoas muito ricas. A riqueza não traz a imortalidade.” “Então”, ela diz, “de que me serve ser rica se isso não me torna imortal?” Sen se apressa a mostrar que, séculos depois, o Cristo apresenta a mesma questão, dizendo: “Que adianta ao homem ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma?”4
Mais do que a eternidade, é à eternidade feliz que perseguimos – e é essa, justamente, a maior, melhor e mais bem sucedida promessa da propaganda cristã5. O que é o inferno (cristão), senão o contrário da eternidade feliz? Zaratustra, em seu canto ébrio, olha para os homens, dizendo-lhes:

E se quisestes, algum dia, duas vezes o que houve uma vez, se dissestes, algum dia: “Gosto de ti, felicidade! Volve depressa, momento!”, então quisestes a volta de tudo
Tudo de novo, tudo eternamente, tudo encadeado, entrelaçado, enlaçado pelo amor, então, amastes o mundo –
– Ó vós, seres eternos, o amais eternamente e para todo o sempre; e também vós dizeis ao sofrimento: “Passa, momento, mas volta!” Pois quer todo o prazer – eternidade!6

Noutros casos, em que a felicidade, quando a ideia de eternidade é vaga ou inexistente – como em Sêneca e Epicuro, por exemplos –, a felicidade (eudaimonía) é para hoje, agora, enquanto há a vida. Na vida, a eudaimonía somente pode ser adquirida mediante o otium filosófico, com vistas à ataraxía, a imperturbabilidade da alma, tranquillitate animi: “Todos os homens”, Sêneca escreve a Gálio, “querem viver felizes, mas, para descobrir o que torna a vida feliz, vai-se tentando, pois não é fácil alcançar a felicidade, uma vez que quanto mais a procuramos mais dela nos afastamos. Podemos nos enganar no caminho, tomar a direção errada; quanto maior a pressa, maior a distância.”7 Para Epicuro, os deuses existem, mas não se envolvem com os homens, nem para o seu bem e nem para o seu mal. Por isso, e sem medo, devemos resolver a nossa própria vida, adequando-a à natureza deste mundo: evitando os excessos, cultivando a tranquilidade serena e, assim fazendo, sendo felizes: uma das qualidades intrínsecas do sábio.8    
Mais que a felicidade, que é como uma ponta de iceberg, é preciso notar o desejo, ou o desejar, verbo no infinitivo. O querer ser feliz é o desejo de felicidade: a vontade situada em uma contrária experiência individual – como ilustrado na cena final de The great estasy of Robert Carmichael, o violento e perturbador filme de Thomas Clay:

Voz do Lago: O que para cada um de nós é inevitável?
Yudhishthira: Felicidade.9

Como o viver, ao que vive (àquele vivente historial, da existencialidade heideggeriana10), também o desejo de felicidade, e sua noção ideal, ou romântico-idealista. Mas a felicidade, assim, está sempre depositada no Outro, exterior a nós: que nos falta. O que não temos e sentimos que deveríamos ter, deveria ser nosso, isso é o que desejamos, para que possamos, afinal, ser felizes – felicidade adiada, consignada ao futuro e à sua conquista: “o eroticamente desejado é belo, suave, perfeito, venturoso.11
O desejo vem antes; a felicidade, depois. Seria a ordem natural, se a felicidade fosse mais que um conceito. E não há como evitar o pensamento de que esse desejar seja o reflexo mais nítido do nosso amour de soi, do nosso amor a nós mesmos. Mesmo aquele “desejar o mal ao próximo” – como fazemos aos nossos inimigos ou aos objetos das nossas frustrações (“tomara que o outro ou a outra seja pior que eu, para que ela aprenda, para que ele aprenda”; “tomara que dê errado, para que deixe de ser besta”, etc.), etc. – é, por outro viés, desejar o nosso bem, nossa satisfação em ver o outro em desgraça.
Qualquer que seja o meu desejo, ele é falta, e falta é querença: o não ter o que se quer; e é, por fim, nas palavras de Schopenhauer, a infelicidade (ou o sofrimento) de, tendo o que se deseja (futuro), não mais desejá-lo após havê-lo (passado). No presente, no lugar do desejo e da sua satisfação, ficou o tédio. Daí Schopenhauer, novamente, agora se valendo de Lucrécio, dizer que a “vida [do homem], oscila como um pêndulo, para aqui e para acolá, entre a dor e o tédio”12. Sartre, n’O Ser e o Nada, por fim, é sentencioso: “O prazer é a morte e o fracasso do desejo”13

Duas mulheres conversam sobre seus amores. Uma delas diz: “Eu o amo porque o amo. Pelas coisas que ele me fala. Me canta canções. Me mostra o mundo. Toca o meu corpo, e ele estremece. Nada me dá, mas me faz bonita... Eu o amarei mesmo que me abandone. Sentirei saudades...” A outra diz: “Eu o amo porque está sempre pronto a atender os meus desejos. Nada me recusa. Quando não me quer dar eu choro, insisto, prometo beijos e ele muda de idéia...” Assim são os dois tipos de religião.14

Na parábola, figuram ágape e Eros; mas não tem jeito. No final, acaba sendo sempre a mesma coisa, voltada para o Eu que ama... que deseja, que quer ser feliz, que vive o absurdo de, neste mundo, por todos os lados, ver o enorme muro que se ergue contra o seu horizonte feliz.


   



1 “Todos os homens procuram ser felizes; não há exceção. Por diferentes que sejam os meios que empregam, tendem todos a esse fim. O que leva uns a irem para a guerra e outros a não irem é esse mesmo desejo que está em todos, acompanhado de diferentes pontos de vista. A vontade nunca efetua a menor diligência, senão com esse objetivo. Esse é o motivo de todas as ações de todos os homens, até mesmo do que vão enforcar-se.” (Pens., VII, 425. PASCAL, Blaise. Pensamentos. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1998. p. 137. [Col. Os Pensadores]).
2 PLATÃO. Eutidemo, 278 e. Na tradução inédita que vem no final da obra de: CANTO, Monique. L’intrigue philosophique. Essai sur l’Euthydème de Platon. Paris: Les Belles Lettres, 1987. p. 253.
3 COMTE-SPONVILLE, André. A felicidade, desesperadamente. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 2. Em Descartes: “O bom senso é a coisa do mundo melhor partilhada. (DESCARTES, René. Discurso do método. São Paulo: Nova Cultural, 1996. p. 63. [Col. Os Pensadores]).  
4 SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Cia. das Letras, 2000. p. 27.
5 Como aparece em Romanos 8, 15-17, uma entre dezenas de referências à vita post mortem: “Vós não recebestes um espírito que vos torne escravos e vos reconduza ao medo, mas um Espírito que faz de vós filhos adotivos e pelo qual nós clamamos: Abbá, Pai. Esse Espírito é quem atesta ao nosso espírito que somos filhos de Deus. Filhos, e portanto herdeiros: herdeiros de Deus, co-herdeiros de Cristo, visto que, participando dos seus sofrimentos, também teremos parte na sua glória.” (TEB).
6 NIETZSCHE, Friedrich. O canto ébrio. In: _____. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. São Paulo: Círculo do Livro, [s.d.]. p. 324 [§ 11].
7 SÊNECA. Da felicidade. In: _____. Da vida retirada; Da tranquilidade da alma; Da felicidade. Porto Alegre: L&PM, 2009. p. 91 (§ 1). (Col. L&PM Pocket, 789). O De uita beata – classificado pelos estudiosos de Sêneca como um dos seus tratados morais, juntamente com o De otio (Sobre o ócio) e De tranquillitate animi (Sobre a tranquilidade da alma) –, escrito em 58 d.C., além de influenciar, cedeu o título ao De beata uita de Agostinho de Hipona, escrito em 386. O Hiponense, aí, faz a felicidade esbarrar em Deus: fonte originária (e mantenedora) de onde emana tudo o que se pode chamar de “felicidade”, “vida feliz”. Cf. AGUSTIN, San. De la vida feliz. Buenos Aires: Aguilar, 1955. (Col. Biblioteca de Iniciación Filosófica, 30). Voltarei ao tema da eudaimonía cristã mais adiante.
8 A felicidade, para Epicuro, é algo que pode ser atingido pelo esforço próprio do homem, sem que esse tenha que apelar a divindade (ou divindades). Ser feliz, para Epicuro, equivale a ser sábio, e ser sábio é saber como conduzir a vida de modo ético e prudente perante as pessoas e o mundo. Contra a infelicidade, Epicuro ensina a doutrina dos quatro remédios, o tetraphármakon: 1) a não temeridade à divindade, que é alheia à sorte dos homens; 2) a não temeridade à morte, que nada é; 3) a compreensão de que o prazer (ou felicidade) é fácil de ser adquirido, ao passo em que 4) a dor é sempre breve e suportável. Trato mais detalhadamente sobre este tema, em Epicuro, em: SALES, Antonio Patativa de. O tema da ΕΥΔΑΙΜΟΝΙΑ na Carta Epicuro: a Meneceu. In: Revista Ágora filosófica: pensamento Antigo-Tardio e Medieval, Recife, ano 4, n. 2, p. 21-32, 2004. No que diz respeito à referida carta, ver: EPICURO. Carta sobre a felicidade: a Meneceu. São Paulo: UNESP, 1997. Bilíngue.
9 The great estasy of Robert Carmichael (O grande êxtase de Robert Carmichael) é uma filme britânico independente, escrito – juntamente com Joseph Lang – e dirigido por Thomas Clay, lançado em 2005, com distribuição da Boudu Film LLP. O filme foi lançado no mesmo ano, no Brasil, com o título: “Delinquentes”, distribuído pela Europa Filmes. 
10 “A existencialidade ou transcendência – na terminologia heideggeriana – é constituída pelos atos de apropriação das coisas do mundo, por parte de cada indivíduo. O termo ‘existencialidade’ não é empregado no mesmo sentido em que se diz que uma pedra ou a Lua ‘existem’, mas como antecipação de suas próprias possibilidades.” (CHAUÍ, Marilena de Souza. Vida e obra. In: HEIDEGGER, Martin. Conferências e escritos filosóficos. São Paulo: Abril Cultural, 2006. p. 7. [Col. Os Pensadores]).
11 Banq., 204c. PLATÃO. O banquete. Porto Alegre: L&PM, 2012. p. 97. (Col. L&PM Pocket, 711). 
12 SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo como Vontade e como Representação. São Paulo: Editora UNESP, 2005. p. 402. (IV, 57).
13 SARTRE, Jean-Paul. L’être et le néant. Paris: Gallimard, 1969. p. 467.
14 ALVES, Rubem. Mais badulaques. São Paulo: Parábola Editorial, 2004. p. 130. Já fiz essa associação entre a teologia cristã e o idealismo romântico em “De uma hermenêutica para o sublime” (§ 24). Assim, no próprio Alves: “Se você quiser saber como é a alma de uma pessoa, peça-lhe para falar sobre o seu Deus. Tudo o que ela disser sobre o seu Deus estará falando de si mesma.” (ALVES, 2004, p. 49).  



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