segunda-feira, 27 de agosto de 2012


15.





Da palavra que o amor esconde, e do seu contrário



“Mudança de comportamento”, composição do Edgard Scandurra, tem o refrão: “Eu morreria por você / na guerra ou na paz. / Eu morreria por você / sem saber como sou capaz”1. É poesia, discurso de poeta, idealismo romântico. No mundo real, sem a fantasia, vale o dito pascalino – embora Pascal tivesse, aqui, outras intenções:

Todos os homens procuram ser felizes; não há exceção. Por diferentes que sejam os meios que empregam, tendem todos a esse fim. O que leva uns a irem para a guerra e outros a não irem é esse mesmo desejo que está em todos, acompanhado de diferentes pontos de vista. A vontade nunca efetua a menor diligência, senão com esse objetivo. Esse é o motivo de todas as ações de todos os homens, até mesmo do que vão enforcar-se.2

Sem o recurso da (licença) poética (ou do idealismo romântico, ou da teologia), não há ninguém, além de nós mesmos, por quem queiramos realmente viver ou morrer; e nisso, para bem viver, está a nossa felicidade, como fim... quer nos pensemos vivos ou mortos. Para o “ninguém, além de nós mesmos”, não há mistério algum, e nenhuma profundidade. Coisas evidentes, de tão evidentes, às vezes soam obscuras, profundas, misteriosas. “Estava o tempo todo aí”, dizemos; “o tempo todo diante dos meus olhos”, “se fosse uma cobra tinha me mordido”. Na distração, parece que entramos no estado de caça do para além do dado, fora do fenômeno, do real do mundo real – como se, por trás das coisas, houvesse o... mistério.
Alberto Caeiro (Fernando Pessoa), sobre o mistério das coisas e da sua profundidade, era sentencioso:

O mistério das cousas! Sei lá o que é mistério!
O único mistério é haver quem pense no mistério.
Quem está ao sol e fecha os olhos,
Começa a não saber o que é o sol
E a pensar muitas cousas cheias de calor.3

E bastava ver, e sentir o visto.
As coisas do mundo (e nós entre elas) são o que são (aparecem), no fenômeno simples: o real do imediato. Pensar sobre as coisas – constituição físico-atômica, substância, forma, gênero, procedência, etc. – é o mesmo que distanciar-se delas4. Nada existe para ser compreendido; tudo existe a ser visto, vivido na experiência imediata do encontro: com o Outro e com o Mundo – com as coisas do mundo, em que o Outro está incluído e, naturalmente, as relações (de amor ou ódio) que mantemos. O “compreender”, aí, tem a ver com o sentido profundo de um “objetivo exterior ao Mundo”, supralunar, fundante/fundamental. Mesmo o , fenomenicamente dado, conhecido como é (ou como aparece), imediatamente desnudo pelos nossos sentidos, é impenetrável – como a palavra sobre a palavra, qualquer que seja ela. Não é por acaso que Paul Valéry, evocando mais do que a constituição etimológica das palavras – dando ênfase àquilo que está por trás delas, quando escritas, pensadas ou pronunciadas –, afirma não haver uma só palavra que possamos compreender, se buscamos os seus limites5. Não é por acaso que Sartre, depois, retoma a sentença, ilustrando-a:

Esta frase: “Partirei amanhã para o campo” envolve o infinito. Primeiramente, é preciso que haja um “amanhã”, isto é, um sistema solar, constantes físicas e químicas. É preciso também que eu ainda viva, que nenhum acontecimento grave tenha abalado minha família ou a sociedade em que vivo. Estas condições são, sem dúvida, implicitamente requeridas por essa simples frase. Além disso, Binet6 disse muito bem, o sentido da palavra “campo” é inesgotável; seria preciso acrescentar: o sentido da palavra eu e o das palavras “partir” e “amanhã”. Finalmente, recuamos assustados diante da profundidade dessa inocente pequena frase. É o caso de recordar a observação de Valéry: não há uma palavra que possamos compreender, se vamos até o fundo.7

É o mesmo Valéry que questiona: “Em que se transforma: Eu penso, e em que se transforma: Eu existo? O que se torna, ou o que volta a ser, esse verbo SER, que fez uma carreira tão grande no vazio?8” E a questão volta ao que, antes, era presente na poesia do nosso Pessoa: pensar é uma coisa; ser, outra. Enfeitiçados pela fé nas capacidades do nosso entendimento, acreditamos em verdades “que se asseguram por si-mesmas”, ou por outra, superior a todas e fonte de todas. Assim fazemos, de nosso intelecto, nosso ídolo, nossa religião, nossa igreja – novamente me vem a máxima de Thomas Paine9. “A filosofia”, dizia Wittgenstein, “é uma luta contra o enfeitiçamento do nosso entendimento pelos meios da nossa linguagem.10” Vencido tal feitiço, temos a liberdade de, por exemplo, rejeitar tal liberdade. Todos os românticos – e aqui o sentido é totalmente abrangente – fazem assim, e são assim. Se não fossem, não seriam românticos. 
As falas do amor (romântico), por isso, são as falas do nosso Eu triplamente iludido: pelas promessas de uma realidade palpável (ou ao menos inteligível) do Amor, por nossa crença na possibilidade de havê-lo e, havendo-o, mantê-lo conosco, mantê-lo em nós. Assim poderemos, afinal, ser felizes. Acreditamos, tolamente, cegamente. “O fim em todas as coisas é o bem e, de modo geral, em toda a natureza o fim é o sumo bem”, Aristóteles garantia.11  
Acontece que, por “amor romântico”, e na impossibilidade de fixação de um único sentido à palavra (ou ao termo), podemos compreender tudo o que, neste ou em outro mundo (conforme a nossa fé), possa ser notado e desejado: ao nosso conhecimento, prazer, utilização, etc.12
O haver “algo” (a ser notado e desejado) é suficiente para que haja a filosofia, pelo espanto (thauma)13 da evidência do além-de-mim (o Mundo, o Outro), e por sua estranheza – naquelas mesmas relações simples de conhecimento, prazer, utilização, dentre outras. É o realismo aristotélico que evocamos, aí. Mas, com Valéry, parece que se pode ir um pouco mais adiante.
Portanto, se se pode falar em um “espanto filosófico valéryano”, ele não é causado pelo fato de haver “alguma coisa ao invés do nada” (como geralmente ocorre no registro do Cristianismo), mas pelo fato de “as coisas serem assim como são, e não de outro modo” (como costuma ocorrer no registro da Antiguidade Clássica, e em Protágoras, dentre os mais antigos). “– O impressionante”, Valéry afirma, “não é que as coisas sejam; mas que elas sejam dessa maneira e não de outra”14. O poeta-pensador vai mais distante que Aristóteles, mas não o suficiente. Acontece que é preciso ir ainda mais, bem mais. Valéry afirma-se como católico, “quase um radical idólatra”, ele diz, em oposição aberta aos jansenistas e calvinistas15. E isso, dito assim, expõe os alicerces do que subjaz ao seu pensamento, em matéria de metafísica e/ou transcendência, no âmbito da filosofia ou teologia – mesmo que existam, como existem, de fato, variantes apontadas contra a tradição de ambas. 
A subjetividade filológico-histórico-conceitual da palavra “amor”, em Valéry, torna-a impossível às definições – mesmo que fragmentada em milhares de conceitos menores, e “dissecada” pela mais fina e arguta das hermenêuticas, das exegeses, etc. E por que é que isso é assim? Porque apesar de professar-se “egotista”16 (que prefere, em lugar de egoísta), no sentido de “somente percebo e posso falar do além-de-mim a partir de mim-mesmo”, Valéry não nega o absoluto extramundano, fundamento ou de sua fé ou sua razão, e o encantamento do mundo-espelho. Nisso, colocar obstáculos no caminho das definições não é mais que, por um artifício filológico-conceitual, afirmar a transcendência do entendimento das referidas definições (que supõem coisas, ideias, etc.), e do que as palavras podem dar a entender... principalmente quando isso se mostra impossível. Do amor, como palavra conceituada, descrição afecção ou propósito na vida (ou para a vida), nenhum outro, ainda, conseguiu superar o velho e rabugento Schopenhauer:

Considere-se o seguinte: todo querer tem de nascer de uma necessidade; toda necessidade, entretanto, é uma carência sentida, a qual é forçosamente um sofrimento. Decerto, toda satisfação põe fim a esse sofrimento. Mas, 1) o desejo retorna rápido e fácil; a satisfação, de modo lento e difícil; para cada desejo satisfeito, permanecem contra ele pelo menos dez que não são. Nossa cobiça dura muito e nossas exigências não conhecem limites; a satisfação, no entanto, é breve e módica: com ela crescem as exigências, porém o contentamento assegurado pela satisfação decresce, devido ao avanço do hábito; 2) a satisfação última de um desejo é, nela mesma, apenas aparente: nada nos torna efetivamente contentes, pois, assim que um desejo é satisfeito, um novo ocupa o seu lugar; o desejo realizado é um erro conhecido, e o novo, um erro ainda desconhecido. Uma satisfação duradoura, invencível, não pode de fato advir de objeto algum alcançado pelo querer, mas se assemelha à esmola que damos ao mendigo, a qual torna sua vida menos miserável, hoje, e no entanto prolonga seu tormento amanhã.17

Seja em qual for o sentido, tempo e espaço que utilizemos as palavras “amor”, “amar”, é a Vontade do amante sobre o amado que aparece; e mesmo quando, ao contrário, o que sentimos pelo Outro, nosso objeto, seja o ódio. Aí também está o querer, a vontade, o desejo: do beijo adocicado ou do escárnio cruel. Tudo é amour de soi, reduzido à objetividade da nossa Vontade, do nosso Eu, amado acima de tudo e de todos; o nosso Eu insatisfeito, eternamente insatisfeito. Tanto mais amor, tanto mais egoísmo.  









1 SCANDURRA, Edgard. Mudança de comportamento. In: Ira!: o melhor do Ira!. São Paulo: WEA Music do Brasil, 1996. 1 disco sonoro. Faixa 3 (2 min 58 s).
2 Pens., VII, 425. PASCAL, Blaise. Pensamentos. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1998. p. 137. [Col. Os Pensadores]).
3 PESSOA, Fernando. De “O Guardador de Rebanhos”. In: CAEIRO, Alberto (pseudônimo). Ficções do interlúdio. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 218.
4 “Mas abre os olhos e vê o sol, / E já não pode pensar em nada, / Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos / De todos os filósofos e de todos os poetas. / A luz do sol não sabe o que faz / E por isso não erra e é comum e boa.” (PESSOA, 1998, p. 218).
5 Em Au sujet du ‘Cémitière Marin’, sobre a poética, Valéry formula uma passagem que tornou-se célebre: “Quanto à interpretação da letra [...], não há sentido verdadeiro de um texto. [il n’y a pas de vrai sens d’um texte]. Não há autoridade do autor. Seja o que for que tenha pretendido dizer, escreveu o que escreveu. Uma vez publicado, um texto é como uma máquina que qualquer um pode usar à sua vontade e de acordo com seus meios: não é evidente que o construtor a use melhor que os outros. Do resto, se ele conhece bem o que quis fazer, esse conhecimento sempre perturba, nele, a perfeição daquilo que fez.” (VALÉRY, Paul. Au sujet du ‘Cémitière Marin’. In: _____. Œuvres. Paris: Bibliothèque de la Pléiade / Gallimard, 1997. p. 1507. v. 1)
6 Pedagogo e psicólogo, o francês Alfred Binet (1857-1911) é mais conhecido por sua contribuição à psicometria, tendo inventado o primeiro “teste de inteligência”, base dos nossos modernos testes de QI.
7 SARTRE, Jean-Paul. A imaginação. 6. ed. São Paulo: DIFEL, 1982. p. 60.
8 VALÉRY, 1997, p. 1247. Tal perspectiva, como Jean Sebeski notou (cf. SEBESKI, Jean. Confluenes valeryennes. In: CELEYRETTE-PIETRI, Nicole & SOULEZ, Antonia (Orgs.). Revue Litteraire Bimestrielle – Valéry, la logique et le langage. Paris: Université Paris XII [Val de Marne le 29 novembre 1986], 1988. p. 24-24.) aproxima-se de outra perspectiva, de Carnap, segundo a qual, o metafísico é um “músico sem talento musical”. (CARNAP, Rudolph. Le dépassement de la métaphysique par l’analyse logique du langage. In: SOULEZ, Antonia (Org.). Manifeste du Cercle de Vienne et autres écrists. Paris: PUF, 1985. p. 177).
9 “Minha mente é a minha igreja.” (PAINE, Thomas. The Age of Reason. London: Forgotten Books, 1884. p. 18).
10 WITTGENSTEIN, Ludwing. Investigações filosóficas. São Paulo: Abril Cultural, 1975. p. 54. (Col. Os Pensadores).
11 Metafízica, A 2, 982 b 5. ARISTÓTELES. Metafísica. São Paulo: Loyola, 2002. p. 11. v. 2: texto grego com tradução ao lado.
12 “A linguagem interior cria um Outro no Mesmo.” (VALÉRY, Paul. Caheirs. In: Judith Robinson-Valéry (Org.). Choix de textes. Paris: Bibliothèque de la Pléiade / Gallimard, 1973. p. 461. v. 1).
13 Em Aristóteles (ele, novamente): “De fato, os homens começaram a filosofar, agora como na origem, por causa da admiração [θαυμάζειν], na medida em que, inicialmente, ficavam perplexos [θαυμάσαντες] diante das dificuldades mais simples.” (Met., 982b 10-5; a ênfase é minha).
14 VALÉRY, 1997, p. 1221.
15 Embora não se deva superestimar a influência do Catolicismo sobre Valéry, é fato que, em uma carta de 1890, que ele endereça a Pierre Louis, há claríssimas considerações sobre suas inclinações religiosas – e pelas quais alguns críticos mais ávidos não tardaram em classificá-la como antissemita; qualificativo que, por vezes, pairou ferozmente sobre a imagem do poeta. “Com relação à Bíblia”, ele escreve, “eu creio que você despreza o objeto de minhas preferências místicas. Eu sou, sobretudo, católico, quase idólatra e detesto todo calvinismo e jansenismo, isto é, todas as seitas inartísticas (!). Eu não gosto dos Judeus, pois eles não têm arte. Das raças vizinhas, eles pilharam tudo em matéria de arquitetura, etc.” (VALÉRY, Paul. Lettres à quelques-uns, L’Imaginair. Paris: Gallimard, 1997. p. 13).
16 “Sou um miserável Robinson”, ele se apresenta, “numa ilha de carne e de espírito, rodeado por todas as partes de ignorância, e fabrico generosamente meus utensílios e minhas artes.” (VALÉRY, 1957, p. 961). Ou: “A palavra Eu designa sempre virtualidades — Não há Eu redutível ao atual.” (VALÉRY, Paul. Caheirs. Paris: CNRS, 1957-1961. p. 311. v. 23. [fac-símile]). “O eu – eu o olho como uma propriedade fundamental da consciência – um ponto virtual [...] para o qual [...] o meu conhecimento se ordena.” (VALÉRY, Paul. Caheirs. In: Judith Robinson-Valéry. (Org.). Choix de textes. Paris: Bibliothèque de la Pléiade / Gallimard, 1974. p. 284. v. 2.).
17 SCHOPENHAUER, Arthur. Da parte subjetiva da satisfação estética. In: _____. Metafísica do Belo. São Paulo: Editora UNESP, 2003. p. 90.


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