13.
Do
amor devotado à arte, e ao artista
Como todo mundo sabe, Vinicius de Moraes foi um grande
conquistador; um tipo de Don Juan brasileiro. Mas, conforme conta Ronaldo
Bôscoli em Eles e Eu, livro-memória, escrito
por Luiz C. Maciel e Ângela Chaves: “Vinicius estava preocupado com sua vida
amorosa. Não sabia se as namoradas o amavam como homem ou à sua fama como
poeta”. E foi por isso que o Poetinha resolveu perguntar a Otto Lara Resende:
“Otto, você é meu amigo, me diga sinceramente. Você daria pra mim, mesmo que
não soubesse que sou o Vinicius de Moraes?” “Claro que daria!”, Otto respondeu.1
A dúvida do Vinícius tem fundamentos, e bem muitos.
O melhor deles nos mostra que, dentre outras, as
pessoas não amam exatamente o artista,
mas aquilo que ele representa: a imagem, o símbolo, a ideia de transcendência, o
divino. O exibicionismo do artista pop2
é carregado de magia contagiante, como a de um sacerdote, no rito litúrgico. Quanto
maior o seu sucesso, tanto maior a sua proximidade com o divino, e, através
dele, a nossa.
Nas tradições alexandrinas e nas
romanas, o status de celebridade prefigurativa foi afirmado e reafirmado na
arena pública. Era associada com exibicionismo, drama, consumo conspícuo e louvor.
O teatro da vida pública era o palco onde as representações eram feitas e
desfeitas. Na sociedade antiga, ostentação, tributo e excesso eram traços
proeminentes da cultura de celebridade. Portanto, o exibicionismo que é
frequentemente associado com a celebridade contemporânea já existia na
sociedade antiga. Poderíamos dizer que Britney Spears, Arnold Schwarzenegger,
Robbie Williams, Bruce Willis ou Caprice, ao cultivarem a aclamações
apresentando em público, afirmam que os deuses desceram à terra.3
O artista, como o sacerdote, quanto às dores do mundo,
sugere escapes. A arte, sim, foi a saída que os gregos encontraram para o
enfrentamento do trágico que perpassa o mundo4.
O artista é amado porque as pessoas veem nele, como veem num santo messiânico
ou em um profeta, uma saída para algo mais
que isto: o trágico da vida. O artista,
porém, como os santos messiânicos ou os profetas, é apenas portador desta
“palavra do Divino”. As pessoas não o amam, exatamente, mas o Divino que habita
nele – e que pode ser qualquer sinal
que pareça transcender a materialidade fria da razão, do fenômeno, do sensível,
do “mundo da vida” (Lebenswelt), como diria Edmund Husserl.5
Jocosidade à parte – a propósito da resposta de Otto –, e sem
pretensões de definição final, o amor é uma fatalidade da Vontade que atua
igualmente entre dois que são diferentes, com a promessa vã de torná-los iguais,
na elevação conjunta da afecção. E isso, assim dito, depõe contra a ideia de
uma “alma-gêmea”, ou “corações perfeitos”.
1 MACIEL, Luiz
Carlos; CHAVES, Ângela. Eles e eu:
memórias de Ronaldo Bôscoli. 4. Ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994. p.
100.
2 No sentido
de muito aceito pelas massas, seja na “alta cultura” ou na “baixa cultura”,
conforme as interpretações individuais. Sim, porque, em relação à música, por
exemplo: “o mercado [...] contemporâneo é muito homogêneo, diluindo as
fronteiras entre ‘alta’ cultura e ‘baixa’ cultura, ou entre erudita e popular.
Basta considerar, por exemplo, o marketing
de Os Três Tenores, que atingiu o topo da parada de sucessos pop com músicas
consideradas eruditas”. (SHUKER, Roy. Introdução. In: _____. Vocabulário de música pop. São Paulo:
Hedra, 1999. p. 8-9).
3 ROJEK,
Chris. Celebridade. Rio de Janeiro:
Rocco, 2008. p. 35. (Col. Idéias Contemporâneas).
4 “A mais
bem-sucedida, a mais bela, a mais invejada espécie de gente até agora, a que
mais seduziu para o viver, os gregos – como? Precisamente eles tiveram necessidade da tragédia? [a arte trágica,
como ironia]. Mais ainda – da arte? Para que – arte grega?... Adivinha-se em
que lugar era colocado, com isso, o grande ponto de interrogação sobre o valor
da existência.” (NIETZSCHE, Friedrich. O
nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. São Paulo: Companhia das
Letras, 1992. p. 13-4 [§ 1]).
5 Introduzido
em Krisis, o termo designava “o mundo
em que vivemos intuitivamente, com suas realidades, do modo como se dão, primeiramente
na experiência simples e depois também nos modos em que sua validade se torna
oscilante (oscilante entre ser e aparência, etc.).” (Krises, § 44. HUSSERL,
Edmund. Die Krisis der europäishen
Wissenshaften und die transzendentale Phänomenologie. Eine Einleitung in die
phänomenologische Philosophie. The Hague: Martinus Nijhoff, 1976. p. 379).