14.
Do
“sentimento oceânico”
Um tratado honesto sobre o amor, depois de longas
definições do que ele seja e em quantas formas se dá a conhecer – na vasta
literatura romântica, no cinema, nos livros sagrados e em tudo o que se pode
chamar de arte –, deverá sempre estancar em uma constatação limítrofe: o
amante é quem o inventa; e mesmo o sublime, ideal, mas sem que possa distanciar-se do real:
da crueza da afecção da Vontade que joga indivíduos contra indivíduos a fim de
que, através do coito, a espécie sobreviva e se apresente em melhores condições
de seguir adiante. A beleza que acende em nós o desejo sexual é propaganda da
saúde, atestando a aptidão do corpo que se mostra pronto para gerar
descendentes igualmente belos e saudáveis. “O impulso sexual”, Schopenhauer
diz, “é a expressão mais completa da vontade de viver, seu tipo mais claramente
expresso.1” E quanto ao ideal (ou “fundamento
estético”) e às suas sublimidades, o pensador deverá, como em um sermão de final
apofático-escatológico, impetrar um silêncio obsequioso; uma vez que, contra a força
da Vontade, nihil sacrum est.2
Se isso parece generalizado demais e, igualmente,
pessimista, é que o realismo da razão evidente – a que bem melhor sabe enxergar
o mundo – não convalida poemas, nem delírios viciados ou encantamentos
teologais.
Estamos
geralmente habituados a ver os poetas ocupados em descrever o amor sexual. É
ele o objeto principal de todas as obras dramáticas, trágicas ou cômicas,
românticas ou clássicas, tanto na Índia como na Europa. É também o assunto
principal da maior parte da poesia lírica como da épica, sem falarmos da
incomensurável quantidade de romances que, desde séculos, todos os anos se
produzem nos países civilizados, tão regularmente como os frutos da terra. Em
seu conteúdo principal, todas essas obras são apenas descrições variadas,
curtas ou longas, dessa paixão. As suas mais perfeitas descrições, tais como
Romeu e Julieta, a Nova Heloísa, Werther, adquiriram glória imortal.3
Nenhum outro, antes de Schopenhauer, soube ver a paixão
romântica como – e apesar da popularização dos escritos de Darwin4 e Huxley5
– recurso da vontade de vida: o instinto sexual é o instinto da vida que quer
viver; o romance e a corte, os meios artificias de essa mesma vontade se
apresentar: menos violenta na satisfação dos seus impulsos, “civilizada”,
“domada”. Se assim não fosse, os homens se igualariam às bestas, contra toda e qualquer
moral heteronômico-normativa – em uma autonomia sem peias, absolutista. “De todos os filósofos”, Schopenhauer afirma,
foi
Platão que mais se dedicou ao tema do amor sexual, sobretudo no Banquete e Fedro. Mas, o que ele diz sobre o assunto não passa de mitos,
fábulas e anedotas, e refere-se, na sua maior parte, à pederastia. O pouco que
Rousseau disse no seu Discurso sobre a
Desigualdade, é errado e insuficiente. Kant, na terceira parte do tratado Sobre o Sentimento do Belo e do Sublime,
trata do assunto de maneira muito superficial e sem conhecimento da causa.
Platner, na sua antropologia, tratando da questão, oferece-nos apenas ideias
medíocres e banais. A definição de Spinoza merece ser citada, a título de
curiosidade, por causa da sua extrema ingenuidade: Amor est tilillatio, concomitante idea causae externae (Eth. 14,
prop. 44, dem.).
Não
tenho, pois, predecessores a copiar e nem a refutar. [...] Pouca aprovação
espero da parte daqueles que no momento ficam dominados por sua paixão, e que
naturalmente procuram exprimir pelas imagens mais sublimes e mais etéreas a
intensidade de seus sentimentos. A estes, meu ponto de vista parecerá muito
físico, muito materialista...
Todo
amor, por mais celeste que se mostre, está arraigado, na realidade, no instinto
sexual e não é outra coisa senão esse instinto, determinado e inteiramente
individualizado.6
O que, aí, pode parecer pedantismo ou esnobismo, é
sinceridade. E, afinal, o que é a modéstia? É a vaidade daquele ou daquela que
deseja apresentar-se ao mundo como modesto, e em recompensa, ser querido e
louvado pelos demais7.
Schopenhauer está além de tão tola e reducionista armadilha ético-moral – se é
que se pode usar a expressão. Tratando do seu lugar entre aqueles que escrevem seriamente
sobre o amor – com qualquer acréscimo conceitual que o façam: amor sexual, amor
a deus, amor ao próximo, et cetera –,
é bem acima deles e de suas ilusões que Schopenhauer
se coloca, sem a paixão que cega e sem as apologias retórico-viciadas nesta ou
naquela noção engessada no delírio coletivo-cotidiano. O amor, diferentemente
do que as religiões afirmam e ensinam, sobre ele e sobre elas próprias, não é nenhum
sentimento oceânico8. Sem o ofício
teológico-poético (se possível) não há, ao menos na linguagem, o delírio, a
embriaguez da razão e, consequentemente, nenhum sentimento oceânico – definição
inadequada, sub-reptícia e vulgar nos discursos sobre o amor... por remetê-lo a
uma fonte que, em tese, não seria o próprio Eu, pleno amour de soi – que não é mais que outro modo de falar dessa
mesmíssima luta pela sobrevivência individual.
Por trás da corte e dos olhos que brilham, enamorados,
está a individual luta pela autoconservação, autosobrevivência9; e o outro, que romanticamente seria o par, no casal, é a presa, individual –
caça que é, também, caçador, caçadora.
1
SCHOPENHAUER, Arthur. O instinto sexual.
São Paulo: Edições INEDOS, 1951. p. 35.
2
A grande crítica sobre o amor, em qualquer que seja a sua manifestação (ou
descrição), já foi, toda e completamente, realizada por Schopenhauer em sua obra
monumental: Die Welt als Wille und
Vorstellung (O Mundo como Vontade e
como Representação, de 1819),
principalmente nos capítulos: Leben der
Gattung, Metaphysik der
Geschlechtsliebe e Die Paederastie.
3
SCHOPENHAUER, 1951. p. 39.
4
Publicado em 1859, a primeira edição de A origem das espécies trazia o título,
enorme: On the origin of species by means of natural selection, or the
preservation of favoured races in the struggle for life (Sobre a origem das espécies por
meio da seleção natural ou a preservação de raças favorecidas na luta pela vida).
Em 1872, já em sua sexta edição, o título seria abreviado, como o conhecemos
atualmente. N’A Origem, Darwin remove
a sublimidade da condição humana – enquanto criação de Deus, etc. –,
apresentando-a em sua materialidade, animalidade e finitude. Cf. DARWIN,
Charles. A origem das espécies. Leça
da Palmeira, Portugal: Planeta Vivo, 2009. (Col. Planeta Darwin). 440 p.
5
Thomas Henry Huxley (1825-1895), principalmente em seus artigos sobre ciência e
religião, a exemplo dos que, recentemente, foram traduzidos em nossa língua,
por Jézio Gutierre. Cf. HUXLEY, Thomas Henry. Escritos sobre ciência e religião. São Paulo: Editora UNESP, 2009.
[Col. Pequenos Frascos]). 143 p. Amigo de Darwin, Huxley foi um dos seus
maiores incentivadores, encorajando-o a publicar A origem das espécies, que Darwin relutava em fazê-lo, pelo estrago
que seria às caras afirmações da teologia cristã, relativas à origem sagrada do
homem, do amor, etc.
6
SCHOPENHAUER, 1951. p. 41-2.
7
“A modéstia” – diz Schopenhauer – “é
uma virtude inventada principalmente para uso dos velhacos, porque exige que
cada qual fale de si como se fosse um; isso estabelece uma igualdade de nível
admirável e produz a mesma aparência, como se não houvesse, em geral, mais que
velhacos.” (SCHOPENHAUER, Arthur. Arte
del buen vivir. Madrid: EDAF. p. 101. [Col. Biblioteca EDAF de Bolsillo,
47]).
8
A expressão aparece em Sigmund Freud (1855-1939), n’O mal-estar na civilização (Das Umbehagen in der Kultur, 1930). Já no primeiro parágrafo, Freud fala das cartas
que havia recebido de Romain Rolland, que rebatiam as teses de O futuro de uma ilusão (Die Zukunft
einer Illusion), de 1927:
“Enviei-lhe o meu pequeno livro que trata a religião como sendo uma ilusão, e
ele me respondeu que concordava inteiramente com esse juízo, lamentando, porém,
que eu não tivesse apreciado corretamente a verdadeira fonte da religiosidade.
Esta, diz ele, consiste num sentimento peculiar, que ele mesmo jamais deixou de
ter presente em si, que vê confirmado por muitos outros e que pode imaginar
atuante em milhões de pessoas. Trata-se de um sentimento que ele gostaria de
designar como uma sensação de ‘eternidade’, um sentimento de algo ilimitado,
sem fronteiras – ‘oceânico’, por assim dizer.” (FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Rio de
Janeiro: Imago, 1997. p. 9).
9
“Nada mais fácil que admitir a verdade deste princípio: a luta universal pela
sobrevivência; nada mais difícil – e falo por experiência – do que ter este
princípio sempre presente no espírito, pois, caso contrário, ou se vê mal toda
a economia da natureza, ou se atribui sentido errado a todos os casos relativos
à distribuição, à raridade, à abundância, à extinção e as variações dos seres
organizados. [...] Emprego, pois, para uma maior comodidade, o termo geral luta pela sobrevivência nos diferentes
sentidos que se confundem uns com os outros.” (DARWIN, Charles. A luta pela sobrevivência. Rio de Janeiro:
PocketOuro, 2009. p. 7, 9).