segunda-feira, 30 de julho de 2012


11.





Do desejo de eternidade, da libertinagem & de outros amores que se equivalem




Angelus Silesius, místico medieval, dizia:

Para, aonde vais correndo, se o céu está em ti?
E procurar Deus alhures é perdê-lo sempre.1

De semelhante modo, Mestre Eckhart dizia, nas Conversações espirituais:

Há pessoas que se afastam totalmente dos homens; gostariam de viver sempre sozinhos ou na igreja e pensam que nisto encontram paz. Perguntaram-me: Isso tudo é o melhor? Eu respondi: Não! Vê por quê: Se alguém está bem, estará bem em todos os lugares e no meio de todo tipo de pessoas. Se está mal, estará mal em todos os lugares e no meio de todo gênero de pessoas.2

São variantes óbvias do que, antes, em Agostinho, estava escrito: “Não saias de ti, volta-te para ti mesmo, a verdade habita no homem interior.3” A perspectiva, nos três autores, é teológica. Mesmo por tal perspectiva, o mergulho no Eu é ponto de partida para o Super-Eu, que chamamos de Deus, Fundamento Último, Absoluto, etc. É a constatação de Feuerbach, pelo viés do materialismo histórico, em que o homem aparece como havendo invertido a sua posição histórico-existencial no mundo, no binômio criador/criatura.4
Para além da ortodoxia teológica, o pensamento livre sobre nós mesmos, sem loucura e sem paixão, aponta para a Vontade de sermos mais que isto: finitude, limite, angústia, desespero, solidão. A ideia de “transcendência” não é mais que a sensação introspectiva, droga natural, nos iludindo com um “ir além de nós mesmos”. Mas, como? Está tudo aí, em nós, em nossa mente. Fora isso, não há mais nada. “A teologia”, Quintana escreve no Caderno H, “é o caminho mais longo para chegar a Deus.5” E isso parece resumir, atualizar e modernizar tanto Agostinho, quanto Silesius e Mestre Eckhart.
O céu, a verdade, o amor, o inferno... Tudo está em nós, de onde não podemos sair, na experiência relacional com o Outro, e com o Mundo. Mesmo quando acreditamos poder enfrentar o nosso Eu, animados pelo discurso moral que procura sufocá-lo, julgando-o impróprio e inadequado ao sentimento de compaixão, às normas da fé e da civilidade. Mas, ah!, que amor conhecemos, senão o nosso?, ou melhor: que está em nós – mesmo quando acreditamos poder devotá-lo às artes, às ciências, às doutrinas, às mulheres e/ou aos homens. Antes do pensamento, a vida. É a constatação do cogito, ergo sum, de Descartes6 – semelhante à outra mais antiga, de, novamente, Agostinho: si fallor, sum7. De fato, “cultivamos o hábito de viver antes de adquirir o de pensar”, afirma Camus, n’O mito de Sísifo8. Sabe-o bem Don Juan, profundamente analisado por Camus, na segundo parte (O homem absurdo) d’O mito. Já em A queda, depois que o seu narrador, Jean-Baptiste Clamence (o “juiz-penitente”), volta a mencionar o lendário amante espanhol, é o desejo da imortalidade do Eu que, aí, afinal, torna a se manifestar, pelo amor – o amour de soi, naturalmente. “Desesperado do amor e da castidade, compreendi, enfim, que restava a libertinagem, que substitui muito bem o amor; faz calar os risos, restabelece o silêncio e, sobretudo, confere a imortalidade.9” Trata-se de uma confissão.
A virtude penitencial (restritivo-punitiva), por amor ao Sumo Bem e à eternidade – no sentido de salvação eterna, aqui –, conforme ensinado pela Igreja Cristã, vê a libertinagem como entrave ao seu sucesso, e procura castigá-la: senão no corpo (vide o sofrido Lutero, antes de revoltar-se contra a Igreja de Roma; vide o atormentado São Francisco Solano... exemplos semelhantes são incalculáveis), no intelecto. “Pois eu sei que em mim – quero dizer em minha carne – o bem não habita”, o apóstolo diz10. De um ou de outro modo, o desiderium é um, somente: salvar a própria pele, a própria alma. Já Nietzsche, no Zaratustra, trata do desejo da eterna beatitude do corpo, para o corpo, contra toda a dor do mundo, e por todo o prazer que ele oferece:

E se quisestes, algum dia, duas vezes o que houve uma vez, se dissestes, algum dia: “Gosto de ti, felicidade! Volve depressa, momento!”, então quisestes a volta de tudo
Tudo de novo, tudo eternamente, tudo encadeado, entrelaçado, enlaçado pelo amor, então, amastes o mundo –
– Ó vós, seres eternos, o amais eternamente e para todo o sempre; e também vós dizeis ao sofrimento: “Passa, momento, mas volta!” Pois quer todo o prazer – eternidade!11

Retire-se o inferno ou o paraíso da eternidade e a teologia cristã perde o seu sentido, e a própria ideia de Deus. Sim, depois que o corpo morre – é doutrina da Igreja –, o espírito que o habitava, agora está livre12, mas não será somente espírito, eternamente. Na ressureição, o desencarnado recebe um novo corpo: destinado à vida beata ou à danação eterna. Sem o corpo, não há consciência; sem consciência, não há o Eu punido ou premiado. O corpo, mesmo transformado, permanece, precisa permanecer: para o prazer ou para a dor.
Mesmo aos libertinos, aos que não têm fé em Deus, ou na eternidade mal ou bem-aventurada, ainda há um natural desejo de permanência post-mortem. O que isso mostra? Que a vida – que está em nós, fazendo com que desejemos ainda viver quando não houver mais vida – quer viver; vida é Vontade de vida. O “juiz-penitente”, em Camus, faz referência a tal vontade, ilustrada na confissão: “Eu tinha vivido sempre na libertinagem, pois nunca deixei de querer ser imortal. Não seria essa a essência da minha natureza, e também a consequência do grande amor por mim mesmo? Sim, eu morria de vontade de ser imortal. Eu me amava demais para desejar que o precioso objeto de meu amor desaparecesse para sempre.13” E que objeto seria esse? O corpo, e a consciência que nele habita: o Eu consciente-de-mim-mesmo. A dicotomia (tempo/eternidade) é explicada na de-cisão pelo real (ratio) em detrimento do ideal (fides): “Em nosso estado de vigília e em nosso pouco conhecimento, não encontramos razões válidas para que a imortalidade seja conferida a um macaco lascivo; assim, faz-se necessário descobrir substitutos para essa imortalidade. Como eu desejava a vida eterna, dormia com prostitutas e bebia durante noites inteiras.14” O realismo d’A queda é cru, brutal, desesperado.
Mesmo assim, e embora por outro viés, o anseio do “juiz-penitente” não é estranho aos anseios das pessoas mais comuns, no que tange aos nossos destinos – nossos destinos amorosos: Eu > seu objeto (o Tu, o Outro, o Mundo) < Eu. No primeiro capítulo de Essays in Love, de Alain de Botton, podemos ver isso de modo muito bem exposto: “O anseio por um destino não é em nenhuma parte mais forte do que em nossa vida romântica.15” E, para o que se segue, ou se seguirá, as questões: “Por tantas vezes forçados a dividir nossa cama com aqueles que não têm acesso a nossa alma [Don Juan, Jean-Baptiste Clamence, outros...], não podemos ser perdoados se acreditamos (contrariamente a todas as regras de nossa era iluminada) que estamos destinados a um dia encontrar o homem ou mulher de nossos sonhos?16” Perfeitamente!      
Ah, os nossos sonhos! Quem nunca teve de abandonar alguns – a maioria, talvez – quando a realidade da vida, crua, brutal e desesperada, se abateu sobre eles? “Sonhos, sonhos são”, o Chico poetiza, coberto de razão17. O anseio por um destino amoroso – e daí a felicidade mais feliz – é coisa comum aos indivíduos. Nosso objeto, nosso destino, nossa felicidade. Não há nada externo, nem o objeto amado... está tudo em nós: o querer e o realizar, quando possível. “Não podemos ser perdoados por uma certa fé supersticiosa numa criatura que será a solução dos nossos anseios incansáveis?18” Mesmo inconscientes, é o que afirmamos, positivamente. Para encontrar (ou reencontrar19) tal criatura, e com ela a felicidade, nos submetemos às odisseias da conquista, ou ao resgate do antes conquistado, e perdido – como um Odisseu que deseja voltar à sua Ítaca, e aos braços da sua Penélope; como Orfeu que vai ao Hades em busca de sua Eurídice, que é preferível mais que todas as mulheres da Trácia; e como Alceste, morrendo em lugar do amado, a fim de que ele viva20 –, nos submetemos ao inferno do amor romântico, crentes no seu prêmio.
Se o sofrimento é o pagamento por uma grande conquista amorosa – ou a recompensa da nossa fé, ou outra recompensa que dê algum sentindo à nossa vida –, não apenas não o evitamos, como também o buscamos, já felizes.21
Ah, os nossos sonhos!, a nossa paixão!, a nossa loucura! 





1 Citado em: BRIÈRE, Yveline. (Org.). O livro da sabedoria. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 182.
2 ECKHART, Mestre. Conversações espirituais. In: _____. O livro da Divina Consolação e outros textos seletos. 5. ed. Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2005. p. 105. (Col. Pensamento Humano).
3 De vera religione, 39, 72. AGOSTINHO, Santo. A verdadeira religião; O cuidado devido aos mortos. São Paulo: Paulus, 2002. (Col. Patrística, 19).
4 “A religião é a cisão do homem consigo mesmo: ele estabelece Deus como um ser anteposto a ele, Deus não é o que o homem é, o homem não é o que Deus é. Deus é o ser infinito, o homem, finito; Deus é perfeito, o homem imperfeito; Deus é eterno, o homem transitório [etc.]. O que deve ser demonstrado é então que esta oposição, que esta cisão entre Deus e homem, com a qual se inicia a religião, é uma cisão do homem com a sua própria essência.” (FEUERBACH, Ludwig. A essência do cristianismo. 2. ed. Campinas, SP: Papirus, 1997. p. 77).  E, sobre isso, o elogio de Marx a Feuerbach: “No que diz respeito à Alemanha, a crítica da religião está, no essencial, terminada, e a crítica da religião é a condição preliminar de toda a crítica. [...] O fundamento da crítica irreligiosa é: foi o homem quem fez a religião, não foi a religião que fez o homem. Realmente, a religião é a consciência de si e o sentimento de si que possui o homem que ainda não se encontrou, ou que se tornou a perder. Mas o homem não é um ser abstrato escondido algures fora do mundo. O homem é o mundo do homem, o Estado, a sociedade. Este estado, esta sociedade, produzem a religião, consciência invertida do mundo, porque eles próprios são um mundo invertido.” (MARX, Karl. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. In: _____ & ENGELS, Friedrich. Sobre a religião. Lisboa: Edições 70, 1975. p. 47-8).
5 QUINTANA, Mario. Caderno H. Porto Alegre: Editora Globo, 2006. p. 219.
6 Ou: “Penso, logo existo.” Cf. DESCARTES, Rene. Discourse on method. New York: The Liberal Arts Press, 1950. p. 20-21. Veja ainda: DESCARTES, René. Meditações. In: Obra escolhida. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1962. p. 158-9.  Meditação quarta. (Col. Clássicos Garnier).   
7 Ou: “Se me engano, existo.” A fórmula: “Quem duvida que vive, recorda, entende, quer, pensa, conhece e julga. Porque, se duvida, vive; se duvida, lembra-se da dúvida; se duvida, entende que duvida; se duvida, é porque busca a certeza; se duvida, pensa; se duvida, sabe que não sabe; se duvida, é porque julga que não deve concordar temerariamente. E ainda que duvide de todas as outras coisas, não pode duvidar destas, pois, se não existissem, seria impossível qualquer dúvida.” (De Trinitate, X, 10, 14. AGOSTINHO, Santo. A Trindade. 2. ed. São Paulo: Paulus, 1994. (Col. Patrística). “Mersenne, já na primeira leitura do Discurso do Método, e o grande Arnauld, logo depois da publicação das Meditações metafísicas, assinalaram a Descartes a coincidência surpreendente entre certos raciocínios do grande Doutor e o argumento do cogito. Entretanto, é o caso de perguntar se Descartes conheceu efetivamente ou não tais textos?” (MARROU, Henri. Santo Agostinho e o Agostinismo. Rio de Janeiro: Livraria Agir Editora, 1957. p. 173. (Col. Mestres Espirituais).
8 CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Rio de Janeiro: Edições BestBolso, 2010. p. 23.
9 CAMUS, Albert. A queda. Rio de Janeiro: Edições BestBolso, 2008. p. 77.
10 Romanos 7, 8 (TEB).
11 NIETZSCHE, Friedrich. O canto ébrio. In: _____. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. São Paulo: Círculo do Livro, [s.d.]. p. 324 [§ 11].
12 Agostinho, por influência de Platão – que recebeu influência dos pitagóricos e dos órficos –, preserva a ideia de que o corpo é uma prisão à alma. Sócrates diz a Cebes: “É uma coisa bem conhecida dos amigos do saber, que sua alma, quando foi tomada sob os cuidados da filosofia, se encontrava completamente acorrentada a um corpo e como que colada a ele; que o corpo constituía para a alma uma espécie de prisão...” (Fédon, 83d). A interessante história de Er, que aparece no Livro X d’A República, é contada por Sócrates. Er, recolhido morto após uma batalha, ressuscita depois de doze dias. Redivivo, conta o que viu no mundo do além: “Quando a sua alma deixou o seu corpo, pôs-se a caminhar com muitas outras...” E a sequência do relato é incrivelmente semelhante às palavras do Cristo, quando fala sobre o dia do juízo (Mateus 25, 32-46). Quando Mônica – mãe de Agostinho – morre, ele tem ciência de que ela, enfim, tornara-se livre: “Enfim, no nono dia da doença, aos cinquenta e seis anos de idade, e no trigésimo terceiro de minha vida, aquela alma piedosa e santa libertou-se do corpo”. (Confissões, IX, 11,28).
13 CAMUS, 2008, p. 77.
14 CAMUS, 2008, p. 77.
15 BOTTON, Alain de. Petite philosophie de l’amour. Paris: Éditions Denoël, 1994. p. 7. (Pocket).
16 BOTTON, 1994, p. 7.
17 BUARQUE, Chico. Sonhos, sonhos são. In: _____. As cidades. São Paulo: Abril Coleções / Sony Music, 2010. p. 35. 1 disco sonoro. Faixa 3 (3 min 15 s). (Col. Chico Buarque, 16).
18 BOTTON, 1994, p. 7.
19 Neste caso, convém lembrar a recomendação de Nietzsche, sobre a esperança de “felicidade” em reaver o que foi perdido, na esperança de haver a felicidade que, uma vez, pensou-se conhecer – como no ditado: “eu era feliz e não sabia.” –: “E se quisestes, algum dia, duas vezes o que houve uma vez, se dissestes, algum dia: ‘Gosto de ti, felicidade! Volve depressa, momento!’, então quisestes a volta de tudo.” (NIETZSCHE, [s.d.], p. 324 [§ 11]).
20 A referência ao ato de Alceste, julgado superior ao de Orfeu, aparece no Banquete, de Platão, no discurso de Fedro: “A Orfeu, o filho de Eagro, eles [Hades e Perséfone] o fizeram voltar sem o seu objetivo, pois foi um espectro o que eles lhe mostraram da mulher a que vinha, e não lha deram, por lhes parecer que ele se acovardava, citaredo que era, e não ousava por seus amor morrer Alceste, mas maquinava um meio de penetrar vivo no Hades”. (O banquete, 179 d. PLATÃO. O banquete. In: _____. Diálogos. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983. p. 14. [Col. Os Pensadores]).
21 “O homem, o animal mais corajoso e mais habituado ao sofrimento, não nega em si o sofrer, ele o deseja, ele o procura inclusive, desde que lhe seja mostrado um sentido, um para quê no sofrimento.” (NIETZSCHE, Friedrich. Terceira dissertação: o que significam ideais ascéticos. In: _____. Genealogia da moral – uma polêmica. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p. 149 [§ 28]).


terça-feira, 24 de julho de 2012


10.





Do amor que ainda há, quando não há amor




Ninguém escapa ao amour de soi, mesmo quando pensa, contra qualquer afecção, não haver mais amor nenhum. O amour de soi está no sentimento de “amor romântico”, seu melhor e mais mundano disfarce. Está também no ágape, mas apenas como discurso acerca do transcendente, perdido em conceitos metafísicos e delírios teológicos. O celeste, aí, é mero discurso religioso, ou liberdade poética... mosca que não vai além da janela de vidro de nossa sala, em nossa casa. Amour de soi  Eros  ágape  Vontade. São vários os nomes para a Vontade, fundamento de todos os conceitos de amor que conhecemos e que, em uma tirada poética de Bukowski, é um cão dos diabos!” Por quê? Porque ele  ou os efeitos de sua ação – pode aparecer nas horas mais inesperadas; inclusive enquanto dormimos.
Aquela garota a quem você não dava a menor atenção, aparece em seus sonhos, assim, do nada: fantasiada de estrelas, de mar e mistérios, de paraíso oferecido, aureolada de idílicas delícias secretas que pedem por descobrimentos. Ao acordar, e sem que perceba, você ainda está sonhando com ela, e dizendo o seu nome baixinho, quase inaudivelmente, sussurrado por entre os lábios. E aquelas imagens oníricas vêm todas de uma vez, em um flash-back atordoante e, estranhamente, bom. Você que não estava “nem para essas coisas”, sente as saudades do que nunca teve, que não viveu: dessa moça ou moço que veio morar em seus sonhos, em sua fantasia, em seu desejo, em sua vontade. Mas, ah!, a Vontade está em você, mas não é sua. E há uma presença, sim: da falta dela. Cupido lhe flechou. Que loucura! Inesperadamente, numa espontaneidade magnética, você sente uma enorme vontade de vê-la, vê-lo; está apaixonado/a.  
Eros age de modos vários e misteriosos; e quase sempre de modo irônico, inesperado. Não envia recados, age na Vontade, e por ela – da qual é um simples braço.
O Amor pode estar, mais que na tranquilidade da planície e no cício suave dos ventos que acariciam trigais, na fúria das ondas que despedaçam a penha, e nos espasmos dos trovões que estremecem o mundo, ou na violência dos raios que iluminam o breu das noites... quando na presença físico-material do seu alvo. Sim, demônio que é, e sem corpo, ele precisa de um em que possa habitar. Nem os deuses estão a salvo. “Eros [é] o mais belo dos deuses imortais, que afrouxa os membros, e vindo ao coração de todo ser, homem ou deus, domina a razão e o discreto conselho”, afirma Hesíodo em sua Teogonia1. Mas, aí daqueles que amam, permitindo-se ao Amor. É que Eros, realizando-se, abandona a casa à sua própria sorte, e parte em busca de novas habitações – é o discurso contundente de Diotima, repetido por Sócrates, n’O Banquete de Platão.2 
E é assim que a garota dos seus sonhos pode ser, também – se você não estiver vacinado com a parábola do Pequeno Príncipe e sua Rosa –, a garota dos seus pesadelos. Como, não? Um exemplo literário, que estampa o cotidiano dos casais românticos. Marjorie, outrora tão linda e desejada, é a mulher de Walter3. Ela, antes tão tudo, é, agora, objeto das suas mais tristes tristezas.

– Não vais voltar tarde? – Havia ansiedade na voz de Marjorie Carling, qualquer coisa que parecia uma súplica.
– Não, eu não voltarei tarde – respondeu Walter, com a certeza infeliz e criminosa de que não estava dizendo a verdade. A voz dela o aborrecia. Era um pouco arrastada, tinha um refinamento excessivo, mesmo na dor.
– Não passes da meia-noite.
Marjorie podia ter-lhe lembrado o tempo em que nunca saía à noite sem ela. Podia ter feito isso; mas não queria; era contra os seus princípios; não pretendia forçar de nenhum modo o amor de Walter.4

Amor realizado é amor perdido, ou amordaçado – e a mordaça mata o sentido daquilo que, em sua antropomorfia, é dotado de grandes asas. No livro de Rosa Montero, Paixões, ela fala sobre Wilde, Oscar Wilde:

Segundo todos os testemunhos, no começo de seu casamento [com Constance Lloyd], Wilde [então com 29 anos] estava muito apaixonado. Devia sentir-se feliz ao se imaginar curado de sua homossexualidade: a vida era muito mais confortável na ortodoxia. Em seguida teve dois filhos com Constance; Wilde os adorava e escreveu lidos contos de fadas para eles. Mas a mulher-mãe se transformou para ele num objeto sexual impossível de suportar: “Quando casei, minha esposa era moça bonita, branca e esbelta como um lírio. (...) Depois de um ano, havia se transformado em uma coisa pesada, informe e disforme (...) com seu espantoso corpo inchado e doente por culpa de nosso ato de amor.” De alguma forma, conseguiu que Constance aceitasse pôr fim às relações sexuais [...]. No entanto, sempre se tratavam bem; continuaram morando juntos e gostavam um do outro. Pouco depois, Robert Ross, um garoto de 17 anos e já experiente nesses assuntos, seduziu o cândido Wilde, e o levou para a cama.5

O resto da história amorosa de Wilde com Robert, é de desastre sobre desastre; e a única vítima é o próprio Wilde: enganado, traído, usado, preso, doente, esquecido e... apaixonado.
A realização de um grande amor é a melhor de todas as coisas, e a pior. Lembre-se de Shaw: “Há duas catástrofes na existência: a primeira é quando nossos desejos não são satisfeitos; a segunda é quando são.6” Quando o sonho vira realidade, deixa de ser sonho, é coisa concreta, longe da fantasia... que é o alimento dos sonhos, da vontade do objeto que falta, e do amor romântico-ideal.  Sim, Eros se alimenta de sonhos, e das vontades que o sonho traz; e aí daquele que tem sonhos muito altos... como Ícaro, o enlouquecido Ícaro com as suas asas de cera. Pode haver coisa mais certa? Pode haver coisa mais triste?
Lição de Diotima a Sócrates, n’O banquete: o amor é vontade de amar, e somente há enquanto é falta. Mas o amor romântico, ideal, sonha com a eternidade do seu prazer7. É, também, desejo, e fé, e falta. Não há amores, embora os níveis distintos; o que há são as maneiras de descrever essa mesmíssima falta: sua expectativa ou sua realização, e a nossa frustração, por um ou outro viés. A realização de um amor é a realização da sua Vontade, e a morte do nosso desejo... a Vontade está aí ainda, mas já sonhando com outros objetos. A expectativa amorosa é o que chamamos de “paixão” (passio), que é o mesmo que “sofrimento”.
Não há saída contra o Amor, contra a Vontade. É a primeira constatação de Buda, tratando sobre a condição humana, e ensinando a primeira das suas quatro Verdades Santas: “Eis, ó monges, a Verdade Santa acerca da dor: o nascimento é dor, a velhice é dor, a doença é dor, a morte é dor, a união com aquilo de que não gostamos é dor, não lograr um desejo é dor...8” E, como vimos, lograr também. Não há saída.





1 HESÍODO, Teogonia 116 ss. HESÍODO. Teogonia: a origem dos deuses. São Paulo: Iluminuras, 1991.
2 “Muita tolice seria não considerar uma só e a mesma beleza em todos os corpos; e depois de entender isso, deve ele fazer-se amante de todos os belos corpos e largar esse amor violento de um só, após desprezá-lo e considerá-lo mesquinho...” (O banquete, 210 b). PLATÃO. O banquete. In: _____. Diálogos. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983. p. 41. (Col. Os Pensadores). Tommaso Campanella, em sua A Cidade do Sol, de 1602, inspirado na obra de Platão, procura excluir da sua cidade ideal a “ideia de família”, e do sentimento de pertence – do marido à sua mulher, ou aos seus filhos –, julgando que tal sentimento, mesquinho, é um desserviço ao progresso e à felicidade dos solares, da cidade perfeita. Tudo é de todos (incluindo as mulheres), e todos são por todos – subscrevendo o que, aí, através de Sócrates, Diotima diz em respeito à geração dos mais belos (de melhor saúde) à geração dos mais belos, etc. O amor realizado, isto é: gerado o filho, parte do seu objeto em direção a outro (conforme certos regulamentos que Campanella anota em sua descrição das relações sexuais entre os solares), se o apego a um indivíduo, por amor ao todo. O sacrifício do desapego é dom da virtude, do homem virtuoso, da mulher virtuosa. Cf. CAMPANELLA, Tommaso. A Cidade do Sol. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Col. Os Pensadores).
3 Personagens de Point counter point (1928), de Aldous Huxley (1894-1963).
4 HUXLEY, Aldous. Contraponto. São Paulo: Abril Cultural, 1982. p. 7. (Col. Grandes Sucessos). A novela Contraponto é “uma descrição crua da vida de vários casais que se amam, mas não conseguem demonstrar o seu amor; que se detestam, mas não têm coragem de exprimir seu ódio; que não se suportam, mas não ousam abandonar o comodismo e a rotina da existência que levam ao lado daquele – ou daquela – que um dia escolheram.” (Da contracapa).
5 MONTERO, Rosa. Oscar Wilde e Lorde Alfred Douglas: dançando descalço no sangue. In: _____. Paixões: amores e desamores que mudaram a história. Rio de Janeiro: PocketOuro, 2009. p. 57-8.
6 George Bernard Shaw (1856-1950), citado em: COMTE-SPONVILLE, André. A felicidade, desesperadamente. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 36.
7Pois quer todo o prazer – eternidade!” (NIETZSCHE, Friedrich. O canto ébrio. In: _____. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. São Paulo: Círculo do Livro, [s.d.]. p. 324 [§ 11]).
8 BUDA, citado em: ARVON, Henry. O budismo. Lisboa: Publicações Europa-América Ltda., [s.d.]. p. 41-1. (Col. Saber).


terça-feira, 17 de julho de 2012


9.




Do Natural e da Natureza, que é a casa de Satã



Em Une vie1, a meiguíssima Jeanne Le Perthuis des Vauds, sem suspeitar de que o seu marido, Julien de Lamare (sentido e razão da sua vida), andava lhe traindo com a mulher do conde de Fourville – Gilberte –, de quem pensava tratar-se apenas de “uma boa amizade a ser preservada”, decidiu seguir os cavalos que, mata adentro, transportaram os dois a um determinado local. Julien havia saído desde a manhã, sem avisar aonde iria.
“De repente, atravessando uma longa vereda, depararam-se-lhe dois cavalos, arreados e presos pelas rédeas a uma árvore: eram os animais de montaria de Julien e Gilberte. [...] Ao chegar junto aos pacientes animais, que ruminavam tristemente como habituados às longas paradas”, diz Maupassant,

Jeanne chamou pelos dois. Ninguém respondeu. Na relva, marcada pelos rastros, jaziam uma luva de mulher e dois rebenques. Tinham estado ali, portanto; e certamente se haviam afastado, deixando os cavalos no local. Esperou-os durante um quarto de hora, surpresa, sem poder atinar com o que eles estariam fazendo. Como saltara do cavalo e se deixara ficar imóvel, apoiada a um tronco, dois passarinhos, sem notarem a sua presença, vieram pousar-lhe bem junto aos pés. Saltitando um em torno do outro, de asas abertas e esvoaçantes, trocavam mútuas saudações, pipilando; de repente, o macho saltou sobre a fêmea num longo amplexo. Jeanne surpreendeu-se diante do que via, como se tudo isso fosse estranho para ela. Por fim, disse para si mesma: – Ah! Estamos na primavera!2

A resposta estava aí, no óbvio ofertado. Mas a cópula dos passarinhos, aos olhos inocentes de Jeanne, era motivo para uma única, cândida e ingênua constatação: “Estamos na primavera!” Os que amam cegamente, apaixonados que estão, somente veem o que desejam ver. É como no provérbio: “o amor é cego”. Conclusão ligeira e sem as complexas investigações que são necessárias ao tema. Na verdade, e se exigido uma maior exatidão, o amor é quem faz cegar. Eclipse da razão, a cegueira é um engodo e um artifício da Vontade, em função da vida e sua permanência.
A natureza com seus prodígios e encantamentos; a Lua dos apaixonados e o céu estrelado; as flores campestres que se oferecem às borboletas coloridas que bailam leves e livres sobre os jardins perfumados; e os passarinhos cantando felizes, em coro, celebrando a criação e o seu...
Ah, que grande a ilusão dos nossos sentidos! Não nos basta o mundo assim, dado; precisamos transcendê-lo e, para além do que vemos, vermos algo a mais: maior e mais encantado, razão e limite ilimitado de tudo o que é belo e bom, incorrupto e eterno. Acostumados à imagem romântica do mundo, exaltamos os encantos da natureza; almejamos as perfeitas virtudes dos corações perfeitos – a ação daquele ou daquela que, por amor ao outro, nega-se a si mesmo. Ah, que grande a ilusão do amor desinteressado de si! Com a nossa fala, a mais comum e vulgar expressão do nosso ser, declaramos um amor doce e cândido... visgo que prende o passarinho.
Em “Kinski, meu melhor inimigo” (Mein Liebster Feind, 1999), Werner Herzog põe a nu tal engodo, sutilmente expondo os dois eixos deste grande conflito, nem sempre muito evidente - principalmente aos menos dados às dúvidas, e desarmados de senso crítico. De um lado a visão romântica da Natureza, majoritária (Klaus Kinski > os românticos > os teólogos > os idealistas); de outro, o realismo racionalista, minoritário (Herzog > Schopenhauer > Darwin > Aristóteles, com limites). É o próprio Herzog quem, falando sobre Kinski3, afirma:

Entre Kinski e eu havia algo de irreconciliável: o seu conceito pela natureza. Ele se estilizava como um “homem da Natureza”. Creio que tudo o que ele dizia sobre a selva era afetado. Ele declarava que tudo por aqui [nas selvas do Peru] era erótico, mas nunca entrou na selva. Ele ficou no acampamento por meses, mas nunca deu um passo para dentro da selva. Uma vez ele adentrou cerca de 50 metros, onde uma árvore caíra. É claro que o fotógrafo teve que ir com ele tirando centenas de fotos dele abraçado a essa árvore e fingindo copular com ela. Poses e parafernálias era o que lhe importava. Seu equipamento de alpinismo era mais importante que a própria montanha. Sua roupa camuflada feita por Yves Saint Laurent era mais importante que qualquer selva. Nesse sentido, Kinski era favorecido com uma grande estupidez natural.
A diferença de nossas visões tornou-se mais aparente durante “Fitzcarraldo”. É claro que desafiamos a própria natureza. Mas ela é grandiosa e tivemos que aceitar que ela era mais forte que nós. Kinski sempre diz que ela é cercada de elementos eróticos. Eu não vi nada erótico, vi obscenidades. A natureza como algo violento e vil. Não vi nada erótico aqui. Veria fornicação, asfixia, embate e luta pela sobrevivência, crescimento e putrefação. É lógico que há muita tristeza, mas é a mesma tristeza que nos cerca. As árvores estão tristes, assim como os pássaros, acho que eles não cantam, eles gritam de dor.
Dê uma olhada mais de perto, e verá que há sim uma certa harmonia: harmonia da opressão e morte coletiva. E quando digo isso, o digo cheio de admiração pela selva. Não a odeio, eu a amo, amo muito. Mas amo contra meu próprio julgamento.4

A visão da Natureza, em Kinski, é a visão do senso comum – geralmente inconsciente –, e é também a mais equivocada. Acredita, sem pensar, nas reais e visíveis belezas do Mundo, e na origem divina das relações afetivas, numa hierarquia modelar que põe o homem como “cabeça da criação” – como exposto no livro do Gênesis. Na ordem cósmica, e no sexo, ele é Sol, e ela, Lua; ele, ativo; ela, passiva. Tanto equilíbrio no mundo, supõem os velhos teólogos ortodoxos e mofados, embriagados no idealismo, aponta para uma mente inteligente por trás de tudo – como o relógio, que supõe o relojoeiro.5
Noutro filme, incompreensível para alguns – “Anticristo” (Antichrist, 2009), do dinamarquês Lars von Trier –, há uma cena em que uma raposa6, como em uma fábula de horror, sentencia: “O caos reina”. É o prenúncio do “Desespero”. Onde? Na natureza. No Anticristo, os personagens não têm nomes, são apenas Ele e Ela, e estão instalados em uma cabana no meio da Floresta do Éden, onde Ela (uma intelectual que estuda sobre bruxaria e violências históricas contra as mulheres) é tratada por Ele (que é terapeuta), na tentativa de fazê-la superar o trauma deixado pela morte do filho de ambos, que havia caído de uma janela enquanto eles transavam. Se a relação sexo = culpa é óbvia, é porque é óbvia mesmo, imersa na tradição moral cristã. Na inocência do homem no Éden, antes da Queda – Santo Agostinho fantasia –, não havia o desejo do sexo (libidinoso), somente a sua necessidade (à procriação), mas sem os males da paixão, a tirania da vontade. Não havia, ele diz, “a vergonha do desejo”.7 E diz mais:

Os membros genitais obedeceriam ao arbítrio da vontade tal como os demais, e o marido ter-se-ia introduzido nas entranhas da esposa sem o aguilhão arrebatador da paixão libidinosa, na tranquilidade da alma e sem corrupção alguma da integridade do corpo. [...] E então poderia assim o sémen viril penetrar no útero da esposa mantendo-se a integridade do órgão genital feminino – tal como presentemente o fluxo do sangue menstrual pode sair do útero de uma virgem sem prejuízo para a sua integridade. De fato, é pela mesma via que um se introduz e o outro sai.8

Orígenes de Alexandria, o maior dos alegoristas da Antiguidade cristã, interpretando literalmente um versículo no Evangelho de Mateus9, chega ao ponto de se emascular, para lançar fora o “instrumento do mal”, o seu próprio pênis. Assim, pensava, poderia viver mais santamente, sem que o seu órgão reprodutor-sexual10 fosse outro senhor, contra o Senhor. 
Ele, Ela. Aí, no Éden, era como se fosse um recomeço para ambos. Mas, para Ela, a natureza é a “igreja do Demônio”. Não há lugar para a tradicional imagem idílica da selva – onde o animal devora o outro, e é devorado, sem misericórdia, sem culpa e sem juízos morais. Na cena incomum, em que a raposa anuncia o caos e o seu reinado – na imagem medonha de um medonho animal falante –, a ordem está pervertida. O caos, porém, não reclama súditos aos quais possa comandar – o que seria uma nova ordem. O diferente se apresenta, mas não é fixo, jamais instalado: ser loucura, ser absurdo em um mundo absurdo de absurdos. “Lars Von Trier é um diretor atormentado!” Bodejaram, quase unânimes, os críticos da indústria cinematográfica de Hollywood, engessados nos modelos que seguem e defendem a antiga ordem: a que produz lucros enormes. Mais que a arte e o pensamento, a indústria visa o lucro – como pode ser visto em Rojeck, Mailer, Biskind e Adorno & Horkhaimer.11
No Anticristo de Lars von Trier, como n’O Anticristo (Der Antichrist. Fluch auf das Christentum, 1888), de Nietzsche, há um enfretamento dos modelos românticos, dominantes: a estética imanente-transcendente e os conceitos bom/mau são, ao menos em tese, transvalorados. No Anticristo de Lars von Trier, há três capítulos (além do prelúdio e do prólogo) bem definidos. Não há culto a essa Trindade nada divina, que comanda o Mundo natural – como é visto e descrito por Herzog, em sua oposição a Kinski. O capítulo quarto (“Os três mendigos”) reforça os três anteriores, no sentido da trindade referida, em sua tese de transvaloração. De fato, na suposta razão que procura ordenar o caos, é onde se instala o delírio e o culto à ordem, para fazer surgir alguma coisa à qual eu não saberia dar um nome; mas que é mais que niilismo, que mero niilismo.
N’O Anticristo de Nietzsche, por outro viés, a crítica é muito mais clara, e totalmente direcionada contra a moral cristã, e contra aquilo que ela santificou: a fraqueza da fé. A “fé”, ele afirma, é um “não querer saber o que é verdadeiro.12” Contra tal espírito, é a transgressão do niilismo que se propõe para além do bem e do mal, no fatum, a partir do fatum. “Nosso fatum [fado, destino]”, ele diz, “– era a plenitude, a tensão, a contenção das forças. Éramos ávidos de relâmpagos e atos, ficávamos o mais longe possível da felicidade dos fracotes, da ‘resignação’... Um temporal estava em nosso ar, a natureza que somos escureceu – pois não tínhamos caminho. A fórmula de nossa felicidade: um Sim, um Não, uma linha reta, uma meta...13” Ela, Ele... E então: Ah!, os dualismos que mantivemos (Apolo/Dionísio): para a verdade, para o amor, para a filosofia, para a teologia, etc. Nós nos esquecemos do que somos, em função do que gostaríamos ser, e nos perdemos de nós mesmos, em alguma parte do caminho. 
“Suponhamos que a verdade seja uma mulher”, Nietzsche dizia, no prefácio de Para além do bem e dom mal (Jenseits Von Gut Und Böse. Vorspiel Einer Philosophie, 1886).14 Suponhamos que a Verdade seja um conceito, ou uma construção psicológico-político-social, como a condição da “mulher”, na obra de Simone de Beauvoir, de 1949, contra a tirania do masculino – também exaltada e beatificada pela Igreja.15 Se o gênero vale à Natura, e se ela pode ser personificada de algum modo – a Terra, nas mais variadas mitologias, é representada como mulher, feminina e fecunda –, então a imagem de uma mulher lhe cai muito bem, e sem forçamentos. Assim também se pode falar da Verdade, o que quer que ela seja... como Nietzsche fez.
Sim, suponhamos então que a verdade seja uma mulher, como Ela. Ela conhece a figura masculina, tal qual a do marido (terapeuta, psicólogo, psicanalista, figura da ordem mental desejada pela moderna ciência moderna, e pelo status da razão aplicada ao saber e ao progresso); também conhece as forças da natureza, irracionais, das quais tem medo. Passiva às ações dEle, que assume o lugar da Natureza, domesticando-a para que Ela, através dele, também a enfrente e, assim, vença os seus medos – ou chegue à ordem (psíquica), à razão –, Ela, a princípio, se deixa levar, obediente à técnica dEle:

– Gostaria de fazer mais um exercício – Ele diz. – É como fazer de conta. Meu papel será todos os pensamentos que te dão medo. O seu será o do pensamento racional.
Ela assente, com a cabeça.
– Eu sou a natureza. Todas as coisas que você chama de natureza.
Ela se mostra maleável, deixando que Ele assuma o seu papel, e diz:
– Ok, senhor Natureza. O que você quer?
– Machucá-la tanto quanto eu puder.
– Como?
– Como você acha?
– Me amedrontando?
Ele balança a cabeça, negando que seja somente isso.
– Matando você – responde.
– A natureza não pode me machucar. Você é só o verde lá fora.
– Não, eu sou mais.
– Eu não entendo – Ela parece confusa, realmente.
– Estou no exterior, mas também... dentro.
Sim, pois é certo que, da Natureza, ou na Natureza, todos somos partes. E tanto que, para elucidar o que Ele tenciona, continua:
– Eu sou a natureza de todos os seres humanos.
– Ah, esse tipo de natureza. O tipo de natureza que faz pessoas fazerem coisas ruins contra as mulheres.
– É exatamente o que sou.
– Esse tipo de natureza me interessou quando eu estava aqui. Esse tipo de natureza era o tema da minha tese. Mas você não deve subestimar Éden.
– O que Éden fez? – Ele pergunta.
– Encontrei algo mais que o que esperava. Se a natureza humana é má, então isso vale também para a natureza das mulheres.
– Natureza feminina.
– A natureza de todas as irmãs [bruxas]. As mulheres não têm controle de seus corpos, a natureza tem. E eu tenho isso por escrito nos meus livros.
– A literatura que você usou em sua pesquisa era sobre coisas ruins cometidas contra as mulheres, e você a leu como prova da maldade das mulheres? – Isso lhe parecia um contrassenso, um paradoxo às pretensões da tese à qual ela, antes, propunha defender. – Você deveria ser crítica com esses textos, essa era sua tese! Ao invés disso, você os abraçou. Você entende o que está dizendo?
– Esqueça – Ela diz. – Não sei porque eu disse isso.16

Ela é uma metáfora da Natureza: hostil, caótica. Ele é o sexo dominante – aquele que tenta colocá-la em ordem, dominando-a, vencendo o caos. Ele, razão; ela, emoção. Razão = ordem; emoção = caos. Trazer a ordem supõe o domínio dEle sobre Ela; supõe também a status rebaixado do Segundo Sexo, como o feminino é definido por Beauvoir, em oposição ao domínio do masculino. “Todo ser humano do sexo feminino não é, portanto, necessariamente mulher; cumpre-lhe participar dessa realidade misteriosa e ameaçada que é a feminilidade”17, diz Beauvoir. Ser mulher é sentir-se mulher.18 Na igualdade genérica, não pode haver um sexo – mas isso também não supõe um equilíbrio. As cenas de mutilação genital, masculina e feminina (Ela decepa o próprio clitóris com uma tesoura enferrujada), estão na ordem do conflito. Quando perguntado sobre o porquê de tanta violência, em uma entrevista, Lars von Trier respondeu: “Simplesmente achei que seria errado não mostrar. Sou um cineasta que acredita que devemos colocar na tela tudo o que pensamos. Sei que é doloroso ver, mas esse filme tem muito a ver com essas dores.” Na mesma entrevista, ele afirma que não acredita em Deus, e que o filme é uma forma de devolver a Deus tudo o que aprendeu sobre ele.       
Não há amor aí, e nem beleza, somente o fatum e o pólemos, o conflito – “Não a satisfação, mas mais poder; sobretudo não a paz, mas a guerra.19” Ela é a Natureza, com a qual ele luta, para domesticá-la; mas acaba destruindo-a, para não ser destruído. No “Epílogo”, Ele encontra alimento nesta nova Natureza, da qual é parte: sua natureza capaz de “matar o amor, a paixão” (Ela), por amor a si mesmo: amour de soi.
Eis um anticristo. Sim, a moral cristã ensina que o marido deve ser capaz de, por amor à sua mulher, morrer por ela, como exemplificado no Cristo, que morre por sua noiva, a Igreja.20 A moral anticristã, ao contrário, ensina o amor fati, o amour de soi, a fidelidade à Terra – na apreciação do realismo, contra o idealismo romântico e sua embriaguez. O sentimento de comunidade e de um amor ideal, recíproco, antes de ser uma fraqueza, é um equívoco. Ademais, e contra um amor “tão altruísta” (e fantasioso), Nietzsche afirmaria: “O amor é o estado em que as pessoas mais veem as coisas como não são.21
Na alegoria, a velha Natureza está ali, nos tantos corpos femininos que jazem no Éden, as almas ancestrais. Expulsas (ou libertas) para este novo Éden, seguem em direção a... Quem saberia? O caos continua reinando; e anticristãos são todos e todas que ousam superar o domínio ancestral da ordem, do sexo dominante e da sua posição inferior – e louvada na piedade subserviente da pia doctrina christiana. Mas, ah!, não há culpa senão a nossa culpa, e pelos nossos erros 
Suponha que Jeanne, na novela de Maupassant, seja uma vítima da tradição histórico-político-social à qual estava submetida, no tempo que não era seu; suponha. Ainda assim, e por sua inocência, ela é culpada. É uma vítima de si mesma. Como poderia dizer, depois de tudo: “A vida não é tão boa nem tão má como as pessoas julgam.22” Como? Nascer na condição de escravo não é uma opção nossa, e nem uma culpa contra a qual mereçamos punições; o nosso agir como escravos, no entanto, é.
  





1 Novela de Guy de Maupassant, escrita em 1883; excelente exemplo de realismo fantástico.
2 MAUOASSANT, Guy de. Uma vida. São Paulo: Nova Cultural, 2003. p. 188.
3 Com quem teve uma parceria errática e duradoura, ao longo de cinco filmes: Aguirre, der Zom Gottes (1972), Woyzeck (de 1979, baseado na peça de Georg Büchner), Nosferatu: Phantom der Nacht (1979), Fizcarraldo (1982) e Cobra Verde (1987).
4 Filmado em 1982, Fitzcarraldo é uma produção teuto-peruano, baseada na história verídica de Brian Sweeney Fitzgerald, “Fitzcarraldo”, na pronúncia dos nativos. Fã de Enrico Caruso, Fitzcarraldo investe na construção de uma casa de ópera, na cidade de Iquitos, no alto Amazonas, fracassa. Antes, investira em uma estrada de ferro, a Transandina, também sem sucesso. Praticamente falido, tenta conseguir recursos com um novo empreendimento: uma fábrica de gelo; novo fracasso. Pelos improváveis e malfadados empreendimentos, foi chamado de “O conquistador do inútil”. Conseguiu algum dinheiro com sua amante, a dona do bordel da cidade. Com o recurso, compra um grande barco fluvial. Nele, tentará encontrar uma nova rota para transportar borracha, das terras às quais obteve autorização governamental para explorar. Esperançoso e alucinado, Fitzcarraldo, em seu barco, transpõe morros e matas, ao custo de muito sofrimento e da vida da tripulação. O trecho com as impressões de Herzog sobre a floresta, que aparecem nesse documentário, é recortado de outro, Burden of dreams, de 1982, com direção de Les Blank, e pode ser encontrado no YouTube. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=mYBA0yvmwGc> Acesso em: 10 abr. 2011.
5 E daí os tantos argumentos tradicionais em prol da existência de Deus (axiológico, cosmológico, henológico, do bom senso, moral, teleológico, etc.), como o argumento ontológico de Anselmo de Aosta (1033-1109) ou as cinco vias de Tomás de Aquino (1225-1274), dentre os mais conhecidos; e daí o famoso argumento do relógio, de William Paley (1743-1805). Para os argumentos ontológicos, resumidos e comentados, ver: TOMATIS, Francesco. O argumento ontológico: a existência de Deus de Anselmo a Schelling. São Paulo: Paulus, 2003. (Col. Filosofia). O argumento de Paley aparece em sua Natual Theology, de 1802 (ainda sem tradução em português). Também pode ser visto, na íntegra, com contra argumentações, em: SORLEY, W. R. Moral Values and the Idea of God. 2. ed. Cambridge: Cambridge University Press, 1921. p. 326.
6 O mais esperto dos animais, conforme a tradição literária.
7 De Civ. Dei, XIII, XXIV.7. Afinal: “A beleza do corpo, obra de Deus sem dúvida, mas bem ínfimo, carnal e temporal, é mal amada quando Deus, bem eterno, interior e sempiterno é posto em segundo plano.” (De Civ. Dei, XV, XXII). AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus. 2. ed. Lisboa: Serviço de Educação e Bolsas / Fundação Calouste Gulbenkian, 2000. v. 2.
8 De Civ. Dei, XIV, XXVI.
9 Mateus 19, 12: “Porque há eunucos que assim nasceram do ventre da mãe; há eunucos que foram castrados pelos homens; e há eunucos que se castraram a si mesmos por causa do Reino dos céus. Quem pode receber que o receba.”
10 O relato é registrado por Eusébio de Cesaréia (265-340), em sua Historia ecclesiastica (talvez escrita entre 303 e 323): “Entendeu as palavras: ‘E há eunucos que se fizeram eunucos por causa do reino dos céus’ (Mt 19,12), de modo simplista e juvenil, seja por julgar que assim cumpria a palavra do Senhor, seja porque, sendo jovem, pregava as coisas divinas, não somente a homens, mas ainda a mulheres, e querendo tirar aos infiéis todo pretexto de calúnia vergonhosa, foi impelido a cumprir realmente a palavra do Senhor.” (CESARÉIA, Eusébio de. História Eclesiástica. São Paulo: Paulus, 2000. p. 289-90 [VI, 8.2]. [Col. Patrística, 15]).   
11 Os autores citados, e suas obras, por ordem: ROJEK, Chris. Celebridade. Rio de Janeiro: Rocco, 2008. (Col. Idéias Contemporâneas). MAILER, Norman. Um sonho americano. Porto Alegre: L&PM, 2011. (Col. L&PM Pocket, 572). BISKIND, Peter. Como a geração sexo-drogas-e-rock’n’roll salvou Hollywood. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2009. ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. A Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
12 NIETZSCHE, Friedrich. O anticristo: Maldição do cristianismo: Ditirambos de Dionísio. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 63 (§ 52). Ou, dito de outro modo: “A esse instinto de teólogo eu faço guerra: encontrei sua pista em toda parte. Quem possui sangue de teólogo no corpo, já tem ante todas as coisas uma atitude enviesada e desonesta.” (NIETZSCHE, 2007, p. 15 [§ 9]). Ou, por fim: “A melhor maneira de enganar a humanidade é com a moral!” (NIETZSCHE, 2007, p. 52 [§ 44]).
13 NIETZSCHE, 2007, p. 10 (§ 1).
14 NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. p. 63 (Prólogo).
15 “Não é a natureza que define a mulher: esta é que se define retomando a natureza em sua afetividade.” (BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: 1 – fatos e mitos. 4. ed. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1970. p. 59). E, antes: “As religiões forjadas pelos homens refletem essa vontade de domínio: buscaram argumentos nas lendas de Eva, de Pandora, puseram a filosofia e a teologia a serviço de seus desígnios, como vimos pelas frases citadas de Aristóteles e Sto. Tomás. Desde a Antiguidade, moralistas e satíricos deleitaram-se com pintar o quadro das fraquezas femininas.” (BEAUVOIR, 1970, p. 16).
16 Anticristo. Direção: Lars von Trier. Califórnia Filmes, 2009. 1 DVD (98 min). NSTC, color. Título original: Antichrist.  
17 BEAUVOIR, 1970, p. 7. “O termo ‘fêmea’ é pejorativo, não porque enraíze a mulher na Natureza, mas porque a confina no seu sexo.” (BEAUVOIR, 1970, p. 25). Convém à mulher, pois, emancipar-se – que não corresponde à renúncia do seu sexo, mas em assumi-lo, exigindo os direitos iguais ao outro, o masculino. 
18 “A mulher é uma fêmea na medida em que se sente fêmea.” (BEAUVOIR, 1970, p. 59).
19 NIETZSCHE, 2007, p. 11 (§ 2).
20 Na epístola Aos Efésios 5, 25: “Maridos, amai as vossas mulheres como Cristo amou a Igreja e se entregou por ela.” (TEB).
21 NIETZSCHE, 2007, p. 28 (§ 23).
22 MAUPASSANT, 2003, p. 318.


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