domingo, 30 de outubro de 2011

60.


Do bendito prêmio das Musas


A alguns dos mais sábios, e a alguns dos melhores poetas e artistas, o excelente prêmio das Musas é a loucura – que lhes preserva e protege do inferno da consciência, fazendo com que a Morte, o maior de todos os males, seja encarada frente a frente, sem medos. Bela dama adornada para a festa do eterno silêncio. Foi assim com Heráclito de Éfeso, com Friedrich Nietzsche, Emily Dickinson, Van Gogh, Guy de Maupassant, Edgar Allan Poe, William Blake, Antonin Artaud, Friedrich Hölderlin, Gérard de Nerval, Goya, Arthur Bispo do Rosário, e outros. Também a Loucura, personificada, pode ser a voz da razão: a única razão razoável – à qual submete homens e deuses, como afirmado pela mesma nos inícios d’O elogio da loucura (1509), de Erasmo de Roterdã: “Digam de mim tudo quanto queiram (pois não ignoro como difamam a loucura até os que mais são loucos), eu, eu somente é que, pela minha influência divina, mergulho na alegria deuses e homens.” Sem o prêmio das Musas, no qual a “realidade” poderia ser encarada como simples “conceito”, contra a “realidade concreta”, Aldous Huxley, em Wanted, a new pleasure (music at nigth), propôs “uma droga, que seja um substituto mais eficiente e menos prejudicial do que o álcool e a cocaína, [para fazer o paraíso] acessível sempre que necessário.” Assim, e instantes antes de morrer, e sem poder falar, escreveu em um papel, para que sua mulher (Maria Huxley) providenciasse “LSD, 100 mg, intramuscular”. A experiência final deveria ser positiva, na alucinação que transpõe o estado apolíneo. Autêntico salto de fé na irracionalidade  um modo artificial de cortejar a loucura. Morreria às 17:21 do dia 22 de novembro de 1963, aos 69 anos. Enlouquecer no final  um ideal sublime.   


quarta-feira, 26 de outubro de 2011

59.


Da hermenêutica aplicada à composição poética


Existem dezenas de métodos de interpretação de textos; teorias analítico-textuais, intertextuais, heterotextuais e análises semióticas aplicadas às escolas hermenêuticas, que são várias... E nenhum, nenhum método – a exemplo do contextual dinâmico, de T. Slama-Cazacu – serve para explicar um único poema, por mais singelo, cândido ou inocente que ele seja. O poeta é indecifrável; e, afinal, o que é um “poeta”? Igualmente indecifrável é o seu poema. E, afinal, o que é um poema?

*****

Mario Quintana não dá bem uma definição de poeta, mas de poema – pois sabia que “a poesia não se entrega a quem a define”. Das tantas, duas são uma loucura:

“Poesia não é a gente tentar em vão trepar pelas paredes, como se vê em tanto louco por aí: poesia é trepar mesmo pelas paredes.”
“E essas que enxugam as lágrimas em nossos poemas como defluxos em lenços... Oh! tenham paciência, velhinhas... A poesia não é uma coisa idiota: a poesia é uma coisa louca!”

Ambas do Caderno H; e que isso valha.


segunda-feira, 24 de outubro de 2011

58. 



Dos livros e das livrarias


Houve uma vez um Sábio que perdeu completamente a vontade de ler. Sentiu-se assim depois de entrar em uma livraria entupida de livros lindíssimos, com suas capas coloridas, seus títulos e formatos incrivelmente sedutores. Desconfiou de que o apelo estético tinha, na boa hipótese, a intensão de conquistar leitores preguiçosos; e na pior, esconder a irrelevância que é o nada acrescentar ao sabido – mesmíssima missa de velha liturgia, disfarçada em outros discursos, outros floreios. Produtos. Lá estavam eles, para facilitar a vida dos clientes, separados por sessões: psicologia, história, religião, filosofia, autoajuda, esotéricos, infantis, culinária, arte, et cetera. “A sabedoria de todos os séculos”, o Sábio dizia, “pode ser resumida em apenas duas sentenças: uma para ser observada: Legi, intelligi et damnata (Eu li, compreendi e condenei), e outra que reafirma o que se disse, na primeira: Mundus vult decipi (O mundo quer ser enganado). Parecia uma boa conclusão, mas não era. Afinal, a leitura que se faz pelo conhecimento é uma; a que se faz pelo prazer, outra. E o prazer, como a fome, a sede ou o sexo, nunca é saciado. Se os sábios pensam à luz de lâmpadas florescentes, os poetas, por exemplo, pensam à luz de velas. Dos primeiros, se destacará sempre mais aquele que portar a luz de maior intensidade – que faz ver e também cegar –; dos segundos, basta a bruxuleante dança da chama agarrada ao pavio, e o desejo. “E é preciso que aceitemos todas as nossas contradições”, pensou.

*****

Na hora de pagar pelos livros que havia comprado, o Sábio ouviu a atendente lhe dizer: “Mas, senhor: são todos seus!” “Sim, eu os escrevi.” “Mas, então: porque o senhor mesmo vai comprá-los?” “Porque eles não estão completos, querida; nunca estarão...”     


segunda-feira, 17 de outubro de 2011

57.


Contra os dualismos absolutistas, ou: um tiro na cara da História do Ocidente cristão 


A História do Ocidente, que é a grande História da Mentira – da civilidade, da razão e do amor à Verdade (idealista) –, foi toda e completamente construída sobre tal embuste; e, nisso, é terrível e profundamente marcada pelos falsos dualismos: verdade/falsidade, bom/mau, belo/feio... A Igreja cristã, através dos seus sacerdotes, principalmente, serviu (quando lhe foi conveniente) desde cedo aos interesses do Estado – iconizados já na falsa conversão do imperador romano, Constantino Magno (280-337). O sinal que este diz ter visto nos céus, Tuto nika, escrito em grego – antes da batalha em Mílvio (312), contra Maxêncio (c. 278-312), seu concorrente ao trono –, foi escrita em latim, por Eusébio de Cesaréia (c. 260-340): In hoc signo vinces! (“Com este sinal vencerás!”). Pelo “sinal da cruz” e pelas manobras políticas que fez – como a promulgação do Édito de Milão, em 313* –, Constantino governaria com certa tranquilidade, até o fim da sua vida, tendo todo o Império aos seus pés. Mais do que nunca lhe valeu a máxima impetrada pelo estoico Sêneca (4 a.C.-65 d.C.): “A religião é vista pelas pessoas comuns como verdadeira, pelos sábios como falsa, e pelos governantes como útil.” Utilíssima!
            Mesmo não sendo o primeiro a fazê-lo, a grande mentira foi brilhantemente denunciada por Nietzsche, em várias das suas obras, com destaque para: Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres (Menschliches, Allzumenschliches. Ein Buch für freie Geister, de 1878-86), Genealogia da moral: uma polêmica (Zur Genealogie der Moral, eine Streitschrift, de 1887) e O Anticristo: maldição ao cristianismo (Der Antichrist . Fluch auf das Chistentum, de 1888). Neste último, no § 8, consta: “O espírito puro é pura mentira... Enquanto o sacerdote, esse negador, caluniador, envenenador profissional da vida, for tido como uma espécie mais elevada de homem, não haverá resposta para a pergunta: que é verdade? Já se colocou a verdade de cabeça para baixo**, quando o consciente advogado do nada e da negação é tido como representante da ‘verdade’...” Mais adiante, no § 12, e ainda contra o sacerdote cristão:

Quando a pessoa tem tarefas sagradas, como melhorar, salvar, redimir os homens, quando carrega no peito a divindade, quando é porta-voz de imperativos do além, uma tal missão já a situa do lado de fora de toda avaliação apenas racional – já está mesmo santificada por essa tarefa, já é mesmo o tipo de uma ordem mais elevada!... Que importa a ciência para um sacerdote? Ele está muito acima disso! – E o sacerdote dominou até agora! Ele determinou os conceitos de “verdadeiro” e “não-verdadeiro”!...

            O § 62 é conclusivo:

Eu condeno o cristianismo, faço à Igreja cristã a mais terrível das acusações que um promotor já teve nos lábios. [...] A Igreja cristã nada deixou intacto com seu corrompimento, ela fez de todo valor um desvalor, de toda verdade uma mentira, de toda retidão uma baixeza de alma. Que ninguém ouse me falar de suas bênçãos ‘humanitárias’! Suprimir alguma aflição ia de encontro a seu interesse mais profundo – ela vivia de aflições, ela criava aflições, a fim de eternizar-se...

            E talvez a maior de todas seja a manutenção da doutrina do inferno como castigo eterno aos hereges, àqueles e àquelas que não se submetem à ortodoxia da Igreja, mater et magistra. Ah!, cristãos confessos: que terrível mãe!, que terrível mestra! Teólogos desencantados com a igreja institucionalizada, como Rubem Alves – que foi pastor de uma igreja Presbiteriana, em Lavras, interior de Minas Gerais –, de olhos mais abertos, veem que, sem o inferno, não há porque temer a morte, e a condenação eterna da alma. Para que, pois, a Igreja? Não sendo do interesse da Igreja eliminar o inferno – coisa que herda do imaginário mitológico dos gregos, referente ao reino subterrâneo de Hades – do lugar que ele ocupa em sua doutrina, mantêm-se o ensino sobre ele, mesmo que assim, como é feito na contemporaneidade: em banho-maria. Extra Ecclesia nulla salus. E enquanto mestra, a Igreja diz-se guardiã da moral. Com superior maestria, Immanuel Kant (1724-1804) é diabolicamente convincente ao afirmar que a moral não carece da religião para existir; não carece do medo do inferno, para inibir a ação imoral – bastam as leis, adequadamente guiadas pela razão pura. Filósofos realistas, a exemplo dos franceses André Comte-Sponville e Luc Ferry, de olhos nos novos desiludidos da religião, têm feito fortunas com livros que mesclam filosofia e teologia, como no caso de Vencer os medos: a filosofia como amor à sabedoria (Vaincre les peurs, de 2006) e Depois da religião: o que será do homem depois que a religião deixar de ditar a lei? (Le religieux après la religion, de 1996), ambos de Luc Ferry – o último é em parceria com Marcel Gauchet. Na coleção “Mesmo que o Céu não Exista”, da editora Martins Fontes, boa parte da obra desses autores tem sido traduzida, dado o êxito editorial que suas obras têm granjeado... agora que poucos lembram o que havia sido o Index. E mais: com a laicização dos Estados e sem a máquina inquisitória da Igreja, movida pelos santos frades dominicanos, o ateísmo e o agnosticismo têm crescido incrivelmente, e isso não parece ser um modismo. Acontece que, sem o medo e a punição, o discurso das religiões - principalmente as de salvação – torna-se inaudível
            O Deus dos cristãos, mais do que nunca, é visto com desconfiança: mais do que “Deus que guarda e ajuda”, é “Deus que vigia e pune”. E não por sua realidade intrínseca, mas pela realidade dos que acreditam nele, e que o defendem com unhas e dentes... excomunhão ou embargo social, a depender dos casos. Ao fazerem suas promessas, é comum que os cristãos não tenham o que oferecer senão sacrifícios: tantas orações de joelhos, penitências, votos rituais, abstinências, et cetera. Deus, do modo como esses cristãos o concebem, parece ter prazer em tais sacrifícios, em troca dos quais – e a considerar o seu enorme poder – concede ninharias. Na atual “crise da família”, em que a figura do pai é cada vez menos relevante – e mesmo para a concepção das crianças –, Deus está se tornando um “papai do céu” cada vez mais no céu; e na permanente crise social, as tantas vigílias e orações pela paz e pela justiça têm esbarrado em um céu de chumbo, pétreo, incontestavelmente silencioso. Alguma coisa está errado, há muito tempo.
        No The little vagabond, poema do visionário William Blake (1757-1827), o sensualismo não vence a religião, mas não é, em nada, inferior a ela:

Querida Mãe, Querida Mãe, a Igreja é fria
Mas a taverna é saudável, agradável & quente;
E posso dizer que lá me tratam bem.
Pois nem no céu passaria tão bem.

Mas se na Igreja, Cerveja pudessem dar
E um bom fogo a nossas almas regalar,
Por todo o dia oraríamos & cantaríamos
E da Igreja jamais nos afastaríamos

Então o Pastor poderia pregar & beber & cantar
Seríamos tão felizes qual aves primaveris a voar,
E a Senhora Bebedeira, sempre na Igreja em oração,
Não teria filhos franzinos, nem jejum ou punição.

E Deus como um pai que se regozija em ver
Seus filhos como ele, amáveis e felizes a valer,
Não teria mais querelas com o Diabo e o Barril,
Mas lhe daria vestes, bebida & beijos mil.

      Trata-se de um poema e, por isso, deve ser lido como tal. Mas a linguagem dos poemas é, como já dissemos em outra parte (cf. § 12: Sobre o egoísmo inevitável e o motor das teologias), a que mais se aproxima dos discursos dos teólogos, das religiões: teopoesia. Quanto ao engano dos dualismos, Blake, n’O casamento do céu e do inferno (The marriage of Heaven and Hell, publicado em 1794), é o inglês mais iluminado entre os iluminados de sua geração:

Todas as Bíblias ou códigos sagrados têm sido a causa dos seguintes erros:
1. Que o Homem possui dois princípios reais de existência: um Corpo & uma Alma.
2. Que a energia, denominada Mal, provém unicamente do corpo; e a razão, denominada Bem, deriva tão-somente da Alma.
3. Que Deus atormentará o Homem pela Eternidade por haver imantado suas Energias.

      Como nos filmes de Akira Kurosawa (1910-1998)***, ou no extenso diálogo entre Krishna e Arjuna, no início do Bhagavad-Gîtâ – os dois, do alto, observam a guerra entre os Kurus e os Pândavas... o mal, aí, como representado no Yin-Yang, não é absoluto, e nem o bem –, a nossa verdade (ou não-verdade) não deve ser imposta nem pela fé e nem pela razão. Há que se ter um “terceiro olhos” contra tais dualismos absolutistas. Dualismos assim servem aos discursos fechados, excludentes: ou isto ou aquilo. Contra tais exclusões, o terceiro olho pode e deve ser – ao menos que se encontrem argumentos e meios mais justos e precisos para os nossos diálogos e ações – metáfora para o respeito e a tolerância ao nosso externo-diferente (o Outro), sem a violência da verdade impositiva da fé (minha fé) ou da não-fé (a pura razão que eu acredito ter). Hoje, nas tantas quebras de paradigmas, rejeições de dogmatismos, dissoluções de absolutismos e fundamentalismos, mais do que a violência dos discursos que exigem fé confiante ou afirmam-se pautados na inequívoca razão natural, é preciso tolerância, respeito e paciência; e sobre tudo, para tudo ou contra tudo: diálogo.

__________

* Emitido pelo tetrarca do Ocidente, Constantino I, o Grande, e pelo tetrarca do Oriente, Valério Licínio (c. 250-325), o édito de Milão, referenciado como Édito de Tolerância, acabou parcialmente com todas as perseguições religiosas, principalmente contra os cristãos. Não demoraria a que estes passassem de perseguidos à perseguidores, com a ascensão da cristandade no Ocidente. Levantando-se contra o Constantino, Licínio foi morto a mando do mesmo, em 324.
** Era o que a filosofia idealista de Georg W. F. Hegel (1770-1831) fazia, conforme as críticas materialistas de Ludwig Feuerbach (1804-72) e Karl Marx (1818-1883). Este, no Prefácio d'A ideologia alemã (publicado em 1933), afirma: “Até aqui, os homens têm sempre criado representações falsas sobre si próprios, e daquilo que são ou devem ser. Segundo as suas representações de Deus, do homem normal, etc., têm instituído as suas relações. Os filhos de sua cabeça cresceram-lhes acima da cabeça. Curvaram-se, eles que são os criadores, diante de suas criaturas. [...] Estas fantasias inocentes e pueris formam o cerne da recente filosofia jovem-hegeliana, a qual, na Alemanha, não é apenas recebida pelo público com assombro e veneração, mas também expandida pelos próprios heróis filosóficos com a solene consciência do perigo de subverterem o mundo e da sua brutalidade criminosa.” Para aquele, em A essência do cristianismo (de 1841): “O poder do milagre é nada mais que o poder da imaginação.” E noutra parte: “Se as plantas tivessem olhos, gosto e capacidade para julgar, cada uma delas diria que a sua flor é a mais bela.”
*** “A fortaleza escondida” (Kakushi-toride no san-akunin, Japão, 1958), em especial. “A fortaleza escondida” foi a inspiração direta para a famosa saga de “Star Wars”, de George Lucas.


quinta-feira, 13 de outubro de 2011

56.


Do pós-pós-modernismo (?)


Houve uma vez um mundo em que todos os habitantes humanos ou eram cools ou coletivizados – mesmo os indies e os misantropos. Sim, porque os solitários estão unidos em suas solidões, os desconfiados em suas desconfianças, os antipáticos em suas antipatias, os avessos em suas aversões... todos juntos na separação: porque ninguém é igual e, nisso, e justamente por isso, são obrigados à diferença. Assim, todos eram descolados e pós-modernos, cada qual ao seu modo; todos eram poetas e/ou loucos, cada um ao seu modo; todos eram DJs ou VJs, cada qual como podia; todos pertenciam a algum time de futebol ou alguma outra igreja, melhor e mais verdadeira que aquela outra, dependendo do seu prêmio, da sua dança e/ou ocasião. E toda mocinha bonita pensava que, tirando a roupa ou fodendo gostoso com um desconhecido, enquanto era filmada na produção de algum vídeo fuleiro a ser exibido em qualquer parte do mundo, por algum obscuro site da/na internet, podia exibir o glamoroso título de “modelo”. E ninguém perguntava, ninguém: modelo de quê?, para quê?, por qual referência? Ninguém queria nem saber; que o melhor era viver, colher a sensação. Contra todos os idiotas daquele mundo idiota, Hele, filósofo cínico e bufão – que não se achava nem idiota e nem bufão, como é comum a todos os idiotas e bufões –, escreveu o penoso e intrigante livro de uma frase só, evocando com finíssima ironia e acurada lucidez a certa certeza de um falso Caetano, como a dizer: “Eu tomo uma Coca-cola, ela pensa em refrigerante.” Tristeza, tristeza. Tristeza dos intelectuais, dos doutrinadores, dos ideólogos, dos utopistas, et cetera. E o resto era delírio, barulho e correr atrás do vento.




terça-feira, 11 de outubro de 2011

55.


Da arte do artista 


Que tem em comum o criador com a criatura?, ou a arte com o artista? Nada. Sim, pois, sobre tudo e acima de tudo, o Nada se sobressai, assombrosamente. Coisas são matéria, e energia. Deuses são objetos, e delírios. Pessoas são estações, e adubo.


domingo, 9 de outubro de 2011

54.




Da humilde, beata e misericordiosíssima dúvida




O verdadeiro sábio não morreria pela verdade, nem pela mentira; talvez se animasse a morrer pela vida – mas aí o paradoxo seria evidente, absurdamente evidente. Não, nem pela vida! “O Sábio”, dizia Epicuro a Meneceu, “nem desdenha viver, nem teme deixar de viver; para ele, viver não é um fardo e não-viver não é um mal.” E quanto à verdade? A sua verdade, disso o sábio saberá, é sua; sua somente. E o que lhe garante, além da sua própria fé, da sua própria convicção, que ela o seja em absoluto? Que saberia ele, absolutamente? A maior de todas as certezas, sendo nossa, pode, também, ser o maior de todos os nossos equívocos. Como no Tao Te Ching, de Lao-Tzu: “O Sábio dedica-se a não agir, / Comove sem ensinar, / Cria dez mil coisas sem instrução, / Mora mas não possui, / Age mas não tem presunção, / Realiza sem colher louros.” Possuir é crer no poder; presunção é certeza; colher louros é ceder à vaidade, acreditar que há recompensas. É preciso duvidar de tudo! E toda dúvida somente é legítima se, antes de ser lançada sobre o Outro, estiver impregnada em nós. Certezas são fatalismos; reducionismos incipientes em louvor da preguiça; entreguismo da alma (ψυχή) que se submete, estanque: água represada que apodrece a vida, compromete o rio e o seu destino, cerceando a dádiva fluida da correnteza. Todo o progresso (todo!) nasce da dúvida, que também é guerra, disputa, luta (πόλεμος): dinâmica dialética que faz a tese ser, sempre, antítese para si mesma, para gestar a síntese, que será outra tese para outra antítese, que será síntese e, depois, outra tese... E a tese final, o Absoluto, será sempre EU (aquele que duvida); semelhantemente ao que é dito por Santo Agostinho, no Livro X da De Trinitate: “Se eu duvido, vivo; se duvido, lembro-me da dúvida; se duvido, entendo que duvido; se duvido, é porque busco a certeza; se duvido, penso; se duvido, sei que não sei; se duvido, é porque julgo que não devo concordar temerariamente. E ainda que duvide de todas as outras coisas, não posso duvidar destas, pois, se não existissem, seria impossível qualquer dúvida: si fallor, sum.” Semelhantemente ao que será “repetido” por René Descartes, no Meditationes de Prima Philosophia: “Mas o que sou eu? Um ser que pensa! [Sed quid igitur sum? Res cogitans…] O que é isso? Na verdade, um ser que duvida, que entende, que afirma, que nega, que quer, que não quer, que imagina também e sente”, que pode ser resumido na fórmula clássica, na Parte IV do Discurso do método: “cogito, ergo sum.” Das certezas que os sábios têm ou poderão algum dia ter, será sempre mais sábio aquele que duvidar das certezas do que não duvida. 



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