19.
A consciência (II)
Algumas religiões tratam sobre o paraíso (um lugar de repouso e gozo eternos para a alma imortal) em suas doutrinas teológico-escatológicas. A alma do homem ou da mulher, justos (ou justificados), recebem a beatitude eterna como prêmio por viverem firmes na fé, até a morte, neste vale de lágrimas. As várias ramificações do cristianismo se encontram por aí. Outras afirmam que, após a morte, e se o indivíduo bem se conduziu neste mundo, e conforme a determinada doutrina, segue-se a extinção do Eu consciente: um tipo de “nadificação” do ser no absoluto sem-nome – pois que chamá-lo de “o vazio mais vazio” não seria mesmo uma boa definição –, escapando dos sucessivos nascimentos e mortes, pelo esclarecimento: sansara. Outras, ainda, e não por fim, dizem que, após a morte, é o Vazio absoluto, o Nada... a corrupção do corpo e a extinção daquilo que lho animava, e do intelecto que fazia o indivíduo reconhecer-se, e conhecer o Outro, e o Mundo. O aniquilamento.
Vivos (neste mundo e em outro, se houver), porém, estamos condenados à memória; e, sem ela, nada somos. O louco, verdadeiramente louco, não tem consciência verdadeira de si, nem de sua loucura. É um homem perturbado que, grosso modo, vive mais de seus impulsos bestiais, primitivos, do que dos lampejos de alguma razão que chega a ter, geralmente, condicionada a uma moral à qual é/foi adestrado. Se não sou, para mim, nada também é; e é, não-sendo – e o mesmo vale para Deus e/ou seu Espírito. Eu sou a minha consciência. Novamente é Angelus Silesius, com sua razão: “Sei que sem mim Deus não pode viver um instante sequer / Se eu for aniquilado, também seu espírito tem de necessariamente extinguir-se” (Ich weiβ, daβ ohne Gott nicht ein Nu leben: / Werd’ ich zunicht; er muβ von Noth den Geist aufgeben).
Simpatizo com uns paraísos assim, sem nome; estes das “doutrinas que não têm doutrinas”. Mas os paradoxos e as aporias me mantêm em um juízo suspenso... Dizer sim, ou não, para tal finalidade discursiva, é arrogância e vaidade, da fé ou do intelecto. Uma “doutrina que não tem doutrina”, onde já se viu? O mais próximo disso seria, por exemplo, e talvez, o Tao. Mas o Tao, mesmo ele, ainda é dito com um “não dizível” – “O Tao de que se pode falar não é o verdadeiro e eterno Tao” –; e é, assim, sim, mais uma doutrina. O “não dizível” do Tao é um paradoxo linguístico necessário – coisa bem comum a qualquer metafísica.
Ora, se se cumprir a promessa cristã de que, ali, na Nova Jerusalém – que é um equivalente metafórico de “paraíso” –, “não haverá mais lembrança das coisas passadas”, então, ao menos de mim, eu deveria lembrar – porque senão o paraíso, para mim, não faria sentido algum: eu seria outro, e não esse ser consciente que escreve isto aqui, agora; essa res cogitans perturbada e insone. O paraíso cristão, para existir, precisa da memória, da consciência. Mas, ó paradoxo dos paradoxos! É justamente aí que o inferno habita. Se o Cristo ensinava que o Reino de Deus está dentro de nós; ensinamos aqui que o Inferno também está. Para qualquer crença numa vida após a morte e um paraíso prometido ao justo, não se pode jamais abjurar do Eu; que, senão, que alma se salvaria, realmente? Todavia, Eu sou a minha consciência; a consciência do que fui e do que fiz, com dores e alegrias, falhas e acertos; a somatória dramática de tudo isso. Mas, ah! Que grande seria a contradição da idéia da não-memória, se isso não fosse mera metáfora, analogia! Sim, meus senhores; sim, minhas senhoras: onde houver a consciência, aí estará o inferno.