“Todo retrato pintado com sentimento é um retrato do artista, não do seu modelo. O modelo é simplesmente o acidente, a oportunidade. Não é a ele que o pintor revela. Quem se revela sobre a tela colorida é o próprio pintor.” São palavras de Hallward, personagem de O retrato de Dorian Gray (1981), de Oscar Wilde.
O retrato do belo Dorian, pintado por Hallward, era apresentado ao Lorde Henry, amigo seu e ouvinte do comentário aí feito. O retrato, conforme Hallward, não revelava o seu modelo (Dorian), mas, antes, aquele que o fez (o artista). Mesmo o modelo, na enigmática novela, embora não sofresse a ação do tempo, não era o mesmo da representação, e nem poderia sê-lo: o retrato (simulacro) envelhecia em seu lugar, elevando-o – pela dádiva da constante juventude – ao nível do divino, da divindade; mas, conforme o idealismo, mesmo um tão extraordinário retrato, é mero simulacro de simulacro. O real, mesmo, está sempre muito além da representação, qualquer que seja. Representar é falsear, interpretar. E não por acaso a palavra “hipócrita” nomeava a arte dos atores do teatro grego.
O desejo de Dorian é escapar à sua própria representação; mas, como fazê-lo senão fora do tempo? Como fazê-lo senão elevando-se definitivamente à incorruptível divindade? Impossível! Eis aí o tempo. Tragédia das tragédias. Nem mesmo o belo Dorian, no final, pode enfrentá-lo. A obra de Hallward é, mais do que uma representação da “imagem” de Dorian, uma metáfora do tempo: que não passa, não morre; mas faz passar, morrer. Mesmo o retrato, em-si, é coisa-de-si e, logo, si-mesmo mesmo. Já o modelo, em-si, irretratável, é não-si-mesmo – pois preso ao devir e, eo ipso, nunca não-si senão não-não-si. Não se é o que não se é sempre – problema fundante/fundamental desde Parmênides.
A condição de Dorian é temporal, de não-ser: sujeito sujeitado ao tempo. Mesmo não envelhecendo, fisicamente, não há como impedir o novo que se impõe: nas lembranças, nas memórias, na consciência do passado no presente... Tempo. E eis aí o seu Eu: sempre outro a cada dia, a cada hora, a cada instante... E eis aí o inferno, o absurdo (o Eu, consciente). O tempo nos comprime e nos dá a ilusão do movimento, que somente a nós pertence, e às coisas. “O tempo não para”; é a grande e repetida mentira do senso mais comum. Mario Quintana, sabedor dos seus mistérios, trata disso assim (como se dissesse a uma amada sua, imaginária): “É preciso a saudade para eu te sentir / como sinto – em mim – a presença misteriosa da vida... / Mas quando surges és tão outra e múltipla e imprevista / que nunca te pareces com o teu retrato... / E eu tenho de fechar meus olhos para ver-te!” É o mesmo Quintana que, no Caderno H (1973), sobre Wilde, por seu Dorian, dizia: “O que eles jamais perdoaram a Oscar Wilde é que ele era profundo sem ser chato.” Mas, nem o escritor inglês e nem o poeta gaúcho, de Alegrete, conseguiram superar o “socratismo-platônico”, ou o idealismo ancestral do Ocidente.
2.
No poema, o retrato preserva, imóvel, à ilusão de quem olha o “instante da eternidade”, a fração temporal da atemporalidade. Sujeitos da temporalidade (ou a ela sujeitados), nada sabemos com certeza dessa atemporalidade da qual falamos; e falamos tão somente como um atormentado Agostinho discorrendo sobre os mistérios da Trindade ou do tempo: para não silenciarmos, em “licença poética”. Tudo o que aparece como retratado ou retratável, no tempo, é devindo e, justamente por isso, não é senão não-ser. Dorian, embora não faça tais elucubrações – coisa que, na obra de Wilde, caberá ao Lorde Harry –, sabe disso muito bem, mediante o desejo que sente em seu corpo jovem: a satisfação é temporal e, assim, canteiro de insatisfações. Afinal, levando a questão a fundo: quem é que, realmente, poderia matar a sede, ou a fome? Toda a água do mundo não serviria a uma única pessoa. O desejo, satisfeito, esbarra no tédio; como no caso do desejo sexual: Omne animal triste post coitum. A fala de Sócrates, por instrução de Diotima, n’O Banquete, de Platão, ilustra isso muito bem: o desejo, quanto mais plenamente realizado, tanto mais promove o tédio que vem depois. Assim, e para o caso de Dorian, eram muitos os “depois”, e, com eles, e muito mais, o tédio. Mais que o tempo que a tudo destrói, o ânimo de uma vida toda, morto o desejo, também se torna fatal, fatalista. Não é isso que o próprio Dorian sente e lamenta: “Ah! Que instante maldito aquele em que o orgulho e a paixão o haviam levado a implorar que o retrato suportasse o peso dos sues dias, para que ele pudesse conservar o esplendor da eterna juventude! Todas as infelicidade daí provinham?”
3.
De que vale uma mente velha, que sente que já desejou demais, em um corpo jovem que sente o peso da velhice de sua mente? Não é o corpo que deseja, mas a mente – o corpo, que não sou Eu, me obedece; o Eu mesmo, “por trás de nós oculto”, como dizia Emily Dickinson, “é muito mais assustador”. Eu não sou o que apareço aos olhos do outro, mas o que sei de mim mesmo, intimamente. Outra mulher, Adélia Prado, sabe bem sobre os desejos do Eu: “Não quero faca nem queijo. Quero a fome!” Escreve assim, no final de “Tempo”, poema de O coração disparado, livro de 1978. A fome é do corpo, mas o desejo, não; ele, aí, apenas habita. Melhor que o tédio, crepuscular, é o desejo: aurora. O corpo e a mente precisam da sincronia, e quando isso não há, ai ai... Não adianta o queijo sem a vontade do queijo; e a faca... para quê? Não é isso que os retratos nos dizem? Dizem que, do momento vivido – ou o desejo realizado – de pouco vale a lembrança, a não ser que a mesma traga, para o presente, alguma alegria. E foi a falta disso que fez com que o jovem Dorian, olhando para a sua “feiura” estampada no retrato, se deparasse com o seu verdadeiro Eu, “muito mais assustador”, como nas palavras de Emily Dickinson. Assim: “De repente odiou sua própria beleza e, atirando o espelho ao chão, despedaçou-o, pisando em seus pedações prateados com os saltos dos sapatos. Fora a sua beleza que o havia levado à perdição, sua beleza e aquela juventude cuja permanência tanto implorara. Não fossem essas duas coisas, sua vida poderia ter sido imaculada. Sua beleza tinha sido para ele somente uma máscara, e sua juventude uma zombaria. Afinal, que era a juventude? Um período de viço e imaturidade, repleto de impulsos...”
O corpo acompanha a mente, e não o contrário – mesmo quando não pode obedecê-la por motivos próprios –; assim também nós, em relação ao tempo. Daí que, no retrato, nunca somos o que realmente somos, e nem mesmo o que “estivemos sendo” nalgum instante daquele devir indizível, atemporal, desmedido: “No retrato que me faço / – traço a traço – / às vezes me pinto nuvem, / às vezes me pinto árvore” (Mario Quintana). Talvez mais do que as nuvens, e talvez menos do que as árvores, sejamos assim dissolvidos pelo tempo, no tempo. Os nossos retratos para muito pouco servem, porque não podem captar o que somos; apenas o instante de eternidade (do/no nada) que, no presente, representa (símbolo) tão somente a recordação, a memória do que foi feito de nós, e essa memória, quase sempre, dolorosa. Os retratos, mais do que nossos, são retratos do tempo. Nós, sempre devindo, somos irretratáveis.
4.
É nessa perspectiva do devir que podemos fazer uma leitura crítica do tempo retratado, ou retratável: seja na pintura ou na fotografia ou, por extensão, nas demais artes. Acontece que a arte é comumente aceita como uma linguagem, e linguagem universal. Mas não há, como se sabe, uma hermenêutica da arte – ou, pelo menos, uma hermenêutica para a linguagem da arte. Há, por outro lado, escolas que, vinculadas a este ou àquele período, se inserem num discurso histórico, meta-histórico, ou linguístico, metalinguístico. Mas, quando falam sobre as falas da(s) arte(s), que comunicam? E, no transcurso do tempo, como mantêm ou pensam manter a coesão de tais discursos? Os homens de todas as épocas saberão ouvi-lo sem as distorções da cultura e da história, por exemplo? E a preservação da originalidade desse discurso é, realmente, relevante? Se sim, por quê?
Num programa de TV, Ferreira Gullar dizia, justificando a existência de uma arte coerente: “Embora eu não saiba definir o que é arte, eu sei o que ela é quando eu a vejo”. Qual o valor de tal afirmação? Na Introdução/Prefácio que Frank McConnell faz ao volume 9 (Vidas breves) dos encadernados de Sandman (Ed. Conrad), onde menciona os roteiros de Neil Gaiman como “sagrados”, encontramos: “‘Sagrado’ não é uma palavra que uso à toa. Quando ainda se chamava Leroi Jones, Amiri Baraka escreveu que a arte é qualquer coisa que faça você sentir orgulho de ser humano. É uma grande definição de arte e também do impulso religioso, que, no fim das contas, não passa do desejo de dizer ou ver algo que nos convença de que temos importância, de que nossas vidas breves e confusas têm sentido, direção e vetor definido, apesar de sua confusão e brevidade. Arte não é ‘criar a ordem a partir do caos’: isso é problema de Deus, seja lá quem ele/ela for, arte é o sonho da ordem a partir dos sentidos do caos: a tacada perfeita na bola oito, a pedra talhada que se parece com o deus Apolo, Charlie Parker improvisando em ‘How high the moon’, Fred Astaire simplesmente cruzando uma sala”. O “sentimento”, que é coisa sempre muito pessoal, aí – no receber a arte como tal, e atribuir-lhe beleza ou feiura (e, logo, um valor... ao menos o do juízo estético) – é o que, de imediato, aparece, destaca-se. O Eu, acima de tudo, é afirmado, e nossos juízos, nossa noção de medida. A arte, da qual o artista se faz profeta, fala por si mesma e, irremediavelmente, pelo seu artista. Cada indivíduo, isolado, recebe-a como pode, como sabe receber, como aprendeu a saber saber. O artista, como o profeta, é somente um seu instrumento. Há aí uma linguagem, mas ela é plural, e sob muitos aspectos.
Talvez devamos, mais do que procurar por uma linguagem da(s) arte(s), consentir que a(s) arte(s) é(são) uma linguagem do/no tempo. Isso assim consentido certamente não nos aumentará aquela sensação de estranheza que, na cultura contemporânea, temos quando ouvimos falar em uma morte da arte; pois que ela, vinculada à história – e ao tempo, consequentemente –, falaria tão somente da sua condição fragmentada, pós-estruturada, anti-metafísica, “pós-moderna”... a(s) arte(s), como a palavra falada, se perde, transforma-se, dá-se à maior confusão.
Estaria a arte, hoje, realmente, morta? Se não, como reconhecê-la? E, reconhecendo-a, como entender o que ela tem a nos dizer? – se é que precisa ou quer nos dizer algo.