quinta-feira, 1 de novembro de 2012


21.





Do que fazemos, que é por amor




Nada do que foi feito de grande ou pequeno, na arte, na política, na religião, no mundo ou na história do mundo, se realizou sem amor; e, sem ele, nada do que foi feito se fez. O único problema, nisso, é entender claramente o que se diz ou se quer dizer com “o amor” – a grande palavra encobridora.
O maior, melhor e mais claro tratado já feito sobre ele veio à lume em 1818, pelo gênio de Arthur Schopenhauer1, à sombra do espectro de Charles Darwin e mergulhado em um novo budismo, sob o título Die Welt als Wille und Vorstellung, ou: “O mundo como vontade e como representação”2. Nietzsche, em posse do referido, e fascinado com o que lia, reverenciou o seu autor como sendo seu “primeiro e único educador”, embora tenha se distanciado dele depois, por outras questões.

Nietzsche relata que seu encontro com O mundo como vontade e como representação, obra máxima de Schopenhauer, se deu ao entrar num antiquário em Leipzig, ano de 1865, e ter sua atenção chamada para o livro ali exposto. Comprou-o e teve a sua vida mudada para sempre. Ao iniciar a leitura, não mais conseguiu se desapegar das páginas. Sentia-se embriagado com as revelações ali feitas. Encontrara o seu ‘primeiro e único educador’, que tinha escrito aquele livro para ele e lhe falava intimamente numa linguagem perfeitamente clara. Sua confiança naquela forma de pensamento foi completa.3

Tudo o que Nietzsche, Lou-Salomé ou Sigmund Freud dirão sobre Desejo, Eros, Vontade ou Pulsão, é mera repetição e/ou acréscimo... quando não descarrilam para afirmações pioradas.
Recentemente, no Brasil, foi publicado um excerto de A origem das espécies (The origin of species, de 1859), pela Pocket Ouro, com o título: “A luta pela sobrevivência”. Nas 265 páginas do livreto, Darwin explica porque prefere esse termo e não o de Herbert Spencer4, “a persistência do mais apto”, embora a considere “mais exata e algumas vezes mais cômoda”.5

Nada mais fácil que admitir a verdade deste princípio: a luta universal pela sobrevivência; nada mais difícil – e falo por experiência – do que ter este princípio sempre presente no espírito, pois, caso contrário, ou se vê mal toda a economia da natureza, ou se atribui sentido errado a todos os casos relativos à distribuição, à raridade, à extinção e às variações dos seres organizados.6

 A “A luta pela sobrevivência”, aqui, é a “Vontade de vida”, ali (em Schopenhauer), partindo de um aspecto menos científico – no sentido de a posteriori. Vê a Vontade geral (consciência geral subjetiva: a espécie), sob a ótica do individual, mais fácil de análise objetiva (o indivíduo). Na descrição do “amor” que os animais selvagens têm por suas crias, ao ponto de, por elas, sacrificarem-se, é essa “consciência geral subjetiva que aparece”, e não há amor nenhum aí – no sentido romântico do termo7. Assim também o pai ou a mãe, pelo filho, ou, antes, por si mesmos; ou, de modo mais geral: pela espécie humana. É a Vontade agindo, no instinto, cego ou não. Deveras, o suicídio – como já foi dito com a citação de Pascal8 – não é uma demonstração de desapego à Vontade de vida, mas, ao contrário, demonstração da Vontade no limite de uma experiência finalíssima. Um trecho do Livro terceiro de (“Do mundo como representação”), do Die Welt...:

Nada mais difere tão amplamente da negação da Vontade de vida exposta suficientemente nos limites do nosso modo de consideração, e que constitui o único ato de liberdade da Vontade a entrar em cena no fenômeno, [...] do que a efetiva supressão do fenômeno individual, na efetividade, pelo SUICÍDIO. Este, longe de ser negação da Vontade, é um acontecimento que vigorosamente a afirma. Pois a essência da negação da Vontade reside não em os sofrimentos mas em os prazeres repugnarem. O suicida quer a vida; porém está insatisfeito com as condições sob as quais a vive. Quando destrói o fenômeno individual, ele de maneira alguma renuncia à Vontade de vida, mas tão-somente à vida. [...] A Vontade de vida aparece tanto na morte auto-imposta (Shiva), quanto no prazer da conservação pessoal (Vishnu) e na volúpia da procriação (Brahma).9

Se o suicídio é a única questão filosófica realmente séria, como Camus afirma10, a resposta pela continuidade da vida – qualquer que seja ela é uma resposta à Vontade de vida; e a Vontade de vida, para ser, precisa da continuidade da espécie, além do indivíduo. Assim, e “por mais desinteressada e ideal que pareça [a] admiração por uma pessoa amada, o alvo real é a concepção de um novo indivíduo de determinada natureza.11” Nisso, a beleza do corpo é propaganda da sua saúde, da aptidão à geração do novo indivíduo, pela relação sexual: “A inclinação amorosa, antes de mais nada, procura no sexo oposto um corpo sadio, forte e belo e, por conseguinte, juventude. A Vontade deseja representar, antes de tudo, o caráter geral da espécie humana, como base de toda individualidade.”12
Quando Nietzsche fala da antinatureza cristã, em sua grande crítica ao cristianismo, não é sem considerar tais fundamentos. O ágape, ou o amor ao feio, ao débil, ao aleijado, ao corpo velho, et cetera, é a subjugação do real pelo ideal, a naturalidade invertida, a mentira do romantismo ingênuo, e da pia moral cristã.

O cristianismo tomou o partido de tudo o que é fraco, baixo, malogrado, transformou em ideal aquilo que contraria os instintos de conservação da vida forte; corrompeu a própria razão das naturezas mais fortes de espírito, ensinando-lhes a perceber como pecaminosos, como enganosos, como tentações os valores supremos do espírito. E exemplo mais lamentável – a corrupção de Pascal, que acreditava na corrupção de sua razão pelo pecado original, quando ela fora corrompida apenas pelo seu cristianismo!13

Darwin, Schopenhauer... Nietzsche. É bom que o leitor tenha essa ordem em mente, para o que será dito daqui à frente. No mais, a emergência do indivíduo e do individualismo egotista, desde o século XVIII para cá, somente veio somar pontos ao que fora exposto pelo velho mestre alemão, sobre o Eu individual e sobre a Vontade de vida, a quem me dou como quem abduzido, por amor a mim, em obediência a ela, consciente ou não. Mesmo a nossa ingenuidade sobre o que seja ou não seja “o amor”, ou aquilo que acreditamos sentir por uma pessoa amada, é resposta à Vontade de vida que está oculta na presença enganosa da afecção ao Outro, no fito de que continuemos, e sem o falso escape que o suicídio insinua. Quando insistimos no erro de pensar em um amor ideal – às vezes transcendente a nós, e às vezes imanente , não é por amor ao erro ou ao Outro que assim fazemos, mas por amor a nós mesmos. O Eu, aí, está sempre muito além de qualquer moral, e do bem e do mal. 






1 Arthur Schopenhauer (1788-1860). Gênio que não foi reconhecido por sua mãe, por exemplo. Consta que, em 1813, depois de redigir e publicar a tese A quádrupla raiz do princípio da razão suficiente – que será, depois, completamente absorvida em O mundo como vontade e como representação –, ouviu a mãe (Johanna Henriette Trosina) zombar do conteúdo, dizendo que a obra não era mais que um livro para farmacêuticos. Schopenhauer reage dizendo que os romances dela não sobreviveriam à posteridade, e que ela somente seria lembrada por ser “a mãe de Schopenhauer”. Parece que ele, afinal, tinha razão.
2 Há duas boas traduções para a obra, no Brasil. A melhor, sem dúvida, é a de Jair Barbosa, em: SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo como Vontade e como Representação, I tomo. São Paulo: Editora UNESP, 2005. 695 p.
3 BARBOSA, Jair. Apresentação: um livro que embriaga. In: SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo como Vontade e como Representação, I tomo. São Paulo: Editora UNESP, 2005. p. 7.
4 O britânico Herbert Spencer (1820-1903) é um dos mais ilustres representantes do positivismo. Admirador da obra de Darwin, Spencer cunhou o termo “sobrevivência do mais apto”, aplicando um darwinismo às vezes bem pessoal, pelos níveis que propunha às análises que fazia da atividade humana. Por isso, e embora não tenha falado de um “darwinismo social”, o termo veio a calhar à sua própria obra – pela tentativa de justificar a divisão social (classes) com base na seleção natural.
5 DARWIN, Charles. A luta pela sobrevivência. Rio de Janeiro: PocketOuro, 2009. p. 7.
6 DARWIN, 2009, p. 7.
7 “A lontra, quando perseguida, pega seu filhote, mergulha com seu corpo e enfrenta as flechas dos caçadores enquanto a sua cria se salva. Fere-se um filhote de baleia apenas para atrair a mãe, que acode em seu socorro, e raramente dele se separa enquanto este viver, mesmo que seja atingida por diversos arpões – Na ilha dos Três Reis, na Nova Zelândia, vivem focas colossais chamadas de ‘elefantes marinhos’. Nadam ao redor da ilha em bando organizado e alimentam-se de peixes. Têm, porém, sob a água certos inimigos cruéis e desconhecidos que muitas vezes os ferem gravemente. Por isto, o seu nado em comum exige uma tática especial. As fêmeas dão cria nas margens, e depois, enquanto amamentam, o que demora de sete a oito semanas, todos os machos formam um círculo em seu redor, para impedi-las de ir ao mar, impelidas pela fome. Quando, porém, o tentam, são repelidas a dentadas. Assim, durante sete ou oito semanas, todos juntos passam fome e emagrecem muito, tudo isto para impedir a saída dos filhotes ao mar, antes que sejam capazes de nadar bem e obedecer à usual técnica de natação, que lhes é ensinada a trancos e dentadas. Isto demonstra também, até que ponto o amor dos pais pelos filhos, como qualquer outra forte manifestação da Vontade, aumenta a inteligência. Patos selvagens, toutinegras e muitos outros pássaros, quando o caçador se aproxima do ninho, voam com altos alaridos e se precipitam aos seus pés, esvoaçando de um lado para o outro, como se estivessem paralisadas suas asas, tudo isto para chamar sobre si a atenção do caçador e desviá-la dos filhotes. A cotovia entrega-se ao cão, procurando com isto fazer com que ele se afaste do ninho. Também corças e veados procuram atrair a si a atenção da caçada e fim de salvaguardar os filhos. Voaram andorinhas até casas em chamas para salvas seus filhotes, ou para morrer com eles. Em Delft, uma cegonha deixou-se queimar no ninho, num violento incêndio, para não abandonar seus filhotes que ainda não sabiam voar. Pássaros selvagens, ao chocar, deixam-se apanhar no ninho. A muscicapa tyrannus defende seu ninho com grande valentia, e enfrenta até a águia. Cortou-se uma formiga ao meio e viu-se a sua metade dianteira pôr ainda a salvo os ovos. Uma cadela, de cujo corpo se cortaram os filhotes, arrastou-se moribunda até eles, lambeu-os com amor, e começou só a gemer horrivelmente quando lhos tiraram.” (SHOPENHAUER, Arthur. O instinto sexual. São Paulo: Edições INEDOS, 1951. p. 37-8). O cuidado, aí, é mais à espécie que ao indivíduo – embora seja nele que mais parece aparecer. É de igual modo no homem, e na mulher, e na espécie humana. O impulso não é pela morte, mas pela vida.
8 “Todos os homens procuram ser felizes; não há exceção. Por diferentes que sejam os meios que empregam, tendem todos a esse fim. O que leva uns a irem para a guerra e outros a não irem é esse mesmo desejo que está em todos, acompanhado de diferentes pontos de vista. A vontade nunca efetua a menor diligência, senão com esse objetivo. Esse é o motivo de todas as ações de todos os homens, até mesmo do que vão enforcar-se.” (Pens., VII, 425. PASCAL, Blaise. Pensamentos. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1998. p. 137. [Col. Os Pensadores]).
9 SCHOPENHAUER, 2005, p. 504 (§ 69).
10 “Só existe um problema filosófico realmente sério: o suicídio. Julgar se a vida vale ou não vale a pena ser vivida é responder à pergunta fundamental da filosofia.” (CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Rio de Janeiro: Edições BestBolso, 2010. p. 19).
11 SCHOPENHAUER, 1951, p. 44.
12 SCHOPENHAUER, 1951, p. 46.
13 NIETZSCHE, Friedrich. O anticristo: Maldição do cristianismo: Ditirambos de Dionísio. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 12 (§ 5).





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