21.
Do
que fazemos, que é por amor
Nada do que foi feito de grande ou pequeno, na arte, na
política, na religião, no mundo ou na história do mundo, se realizou sem amor;
e, sem ele, nada do que foi feito se fez. O único problema, nisso, é entender claramente
o que se diz ou se quer dizer com “o amor” – a grande palavra encobridora.
O maior, melhor e mais claro tratado já feito sobre ele
veio à lume em 1818, pelo gênio de Arthur Schopenhauer1,
à sombra do espectro de Charles Darwin e mergulhado em um “novo budismo”, sob o título Die
Welt als Wille und Vorstellung, ou: “O mundo como vontade e como representação”2. Nietzsche, em posse do
referido, e fascinado com o que lia, reverenciou o seu autor como sendo seu “primeiro
e único educador”, embora tenha se distanciado dele depois, por outras questões.
Nietzsche relata que seu encontro com O mundo como vontade e como representação, obra máxima de
Schopenhauer, se deu ao entrar num antiquário em Leipzig, ano de 1865, e ter
sua atenção chamada para o livro ali exposto. Comprou-o e teve a sua vida
mudada para sempre. Ao iniciar a leitura, não mais conseguiu se desapegar das
páginas. Sentia-se embriagado com as revelações ali feitas. Encontrara o seu ‘primeiro
e único educador’, que tinha escrito aquele livro para ele e lhe falava
intimamente numa linguagem perfeitamente clara. Sua confiança naquela forma de
pensamento foi completa.3
Tudo o que Nietzsche, Lou-Salomé ou Sigmund Freud
dirão sobre Desejo, Eros, Vontade ou Pulsão, é mera repetição e/ou acréscimo...
quando não descarrilam para afirmações pioradas.
Recentemente, no Brasil, foi
publicado um excerto de A origem das
espécies (The origin of species, de
1859), pela Pocket Ouro, com o título: “A luta pela sobrevivência”. Nas 265
páginas do livreto, Darwin explica porque prefere esse termo e não o de Herbert
Spencer4, “a persistência do mais apto”, embora
a considere “mais exata e algumas vezes mais cômoda”.5
Nada mais fácil que admitir a verdade deste princípio: a
luta universal pela sobrevivência; nada mais difícil – e falo por experiência –
do que ter este princípio sempre presente no espírito, pois, caso contrário, ou
se vê mal toda a economia da natureza, ou se atribui sentido errado a todos os
casos relativos à distribuição, à raridade, à extinção e às variações dos seres
organizados.6
A “A luta pela sobrevivência”, aqui, é a “Vontade
de vida”, ali (em Schopenhauer), partindo de um aspecto menos científico – no sentido
de a posteriori. Vê a Vontade geral
(consciência geral subjetiva: a espécie), sob a ótica do individual, mais fácil
de análise objetiva (o indivíduo). Na descrição do “amor” que os animais selvagens
têm por suas crias, ao ponto de, por elas, sacrificarem-se, é essa “consciência
geral subjetiva que aparece”, e não há amor nenhum aí – no sentido romântico do
termo7. Assim também o pai ou a mãe, pelo
filho, ou, antes, por si mesmos; ou, de modo mais geral: pela espécie humana. É
a Vontade agindo, no instinto, cego ou não. Deveras, o suicídio – como já foi
dito com a citação de Pascal8 – não é uma
demonstração de desapego à Vontade de vida, mas, ao contrário, demonstração da
Vontade no limite de uma experiência finalíssima. Um trecho do Livro terceiro
de (“Do mundo como representação”), do Die Welt...:
Nada mais difere tão
amplamente da negação da Vontade de vida exposta suficientemente nos limites do
nosso modo de consideração, e que constitui o único ato de liberdade da Vontade
a entrar em cena no fenômeno, [...] do que a efetiva supressão do fenômeno
individual, na efetividade, pelo SUICÍDIO. Este, longe de ser negação da
Vontade, é um acontecimento que vigorosamente a afirma. Pois a essência da
negação da Vontade reside não em os sofrimentos mas em os prazeres repugnarem. O
suicida quer a vida; porém está insatisfeito com as condições sob as quais a
vive. Quando destrói o fenômeno individual, ele de maneira alguma renuncia à
Vontade de vida, mas tão-somente à vida. [...] A Vontade de vida aparece tanto
na morte auto-imposta (Shiva), quanto no prazer da conservação pessoal (Vishnu)
e na volúpia da procriação (Brahma).9
Se o suicídio é a única questão
filosófica realmente séria, como Camus afirma10,
a resposta pela continuidade da vida – qualquer que seja ela – é uma resposta à Vontade de vida; e a
Vontade de vida, para ser, precisa da continuidade da espécie, além do
indivíduo. Assim, e “por mais desinteressada e ideal que pareça [a] admiração
por uma pessoa amada, o alvo real é a concepção de um novo indivíduo de
determinada natureza.11”
Nisso, a beleza do corpo é propaganda da sua saúde, da aptidão à geração do
novo indivíduo, pela relação sexual: “A inclinação amorosa, antes de mais nada,
procura no sexo oposto um corpo sadio, forte e belo e, por conseguinte,
juventude. A Vontade deseja representar, antes de tudo, o caráter geral da
espécie humana, como base de toda individualidade.”12
Quando Nietzsche fala da
antinatureza cristã, em sua grande crítica ao cristianismo, não é sem
considerar tais fundamentos. O ágape, ou o amor ao feio, ao débil, ao aleijado, ao corpo velho, et cetera, é a
subjugação do real pelo ideal, a naturalidade invertida, a mentira do
romantismo ingênuo, e da pia moral cristã.
O cristianismo
tomou o partido de tudo o que é fraco, baixo, malogrado, transformou em ideal
aquilo que contraria os instintos de
conservação da vida forte; corrompeu a própria razão das naturezas mais fortes
de espírito, ensinando-lhes a perceber como pecaminosos, como enganosos, como tentações os valores supremos do espírito.
E exemplo mais lamentável – a corrupção de Pascal, que acreditava na corrupção
de sua razão pelo pecado original, quando ela fora corrompida apenas pelo seu
cristianismo!13
Darwin, Schopenhauer...
Nietzsche. É bom que o leitor tenha essa ordem em mente, para o que será dito
daqui à frente. No mais, a
emergência do indivíduo e do individualismo egotista, desde o século XVIII para
cá, somente veio somar pontos ao que fora exposto pelo velho mestre alemão,
sobre o Eu individual e sobre a Vontade de vida, a quem me dou como quem abduzido,
por amor a mim, em obediência a ela, consciente ou não. Mesmo a nossa ingenuidade
sobre o que seja ou não seja “o amor”, ou “aquilo que acreditamos sentir por uma pessoa
amada”, é resposta à Vontade de vida que está oculta na presença enganosa da afecção ao Outro, no fito de que
continuemos, e sem o falso escape que o suicídio insinua. Quando insistimos no erro de pensar em um amor ideal – às vezes transcendente a nós, e às vezes imanente –, não é por amor
ao erro ou ao Outro que assim fazemos, mas por amor a nós mesmos. O Eu, aí, está sempre muito além de qualquer moral, e do bem e do mal.
1 Arthur
Schopenhauer (1788-1860). Gênio que não foi reconhecido por sua mãe, por
exemplo. Consta que, em 1813, depois de redigir e publicar a tese A quádrupla raiz do princípio da razão
suficiente – que será, depois, completamente absorvida em O mundo como vontade e como representação
–, ouviu a mãe (Johanna Henriette Trosina) zombar do conteúdo, dizendo que a
obra não era mais que um livro para farmacêuticos. Schopenhauer reage dizendo que os
romances dela não sobreviveriam à posteridade, e que ela somente seria lembrada
por ser “a mãe de Schopenhauer”. Parece que ele, afinal, tinha razão.
2 Há duas boas
traduções para a obra, no Brasil. A melhor, sem dúvida, é a de Jair Barbosa,
em: SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo como
Vontade e como Representação, I tomo. São Paulo: Editora UNESP, 2005. 695
p.
3 BARBOSA,
Jair. Apresentação: um livro que embriaga. In: SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo como Vontade e como Representação,
I tomo. São Paulo: Editora UNESP, 2005. p. 7.
4 O britânico Herbert Spencer (1820-1903) é um dos mais ilustres
representantes do positivismo. Admirador da obra de Darwin, Spencer cunhou o
termo “sobrevivência do mais apto”, aplicando um darwinismo às vezes bem
pessoal, pelos níveis que propunha às análises que fazia da atividade humana. Por
isso, e embora não tenha falado de um “darwinismo social”, o termo veio a calhar
à sua própria obra – pela tentativa de justificar a divisão social (classes)
com base na seleção natural.
5 DARWIN,
Charles. A luta pela sobrevivência.
Rio de Janeiro: PocketOuro, 2009. p. 7.
6 DARWIN, 2009,
p. 7.
7 “A lontra,
quando perseguida, pega seu filhote, mergulha com seu corpo e enfrenta as flechas
dos caçadores enquanto a sua cria se salva. Fere-se um filhote de baleia apenas
para atrair a mãe, que acode em seu socorro, e raramente dele se separa
enquanto este viver, mesmo que seja atingida por diversos arpões – Na ilha dos
Três Reis, na Nova Zelândia, vivem focas colossais chamadas de ‘elefantes
marinhos’. Nadam ao redor da ilha em bando organizado e alimentam-se de peixes.
Têm, porém, sob a água certos inimigos cruéis e desconhecidos que muitas vezes
os ferem gravemente. Por isto, o seu nado em comum exige uma tática especial. As
fêmeas dão cria nas margens, e depois, enquanto amamentam, o que demora de sete
a oito semanas, todos os machos formam um círculo em seu redor, para impedi-las
de ir ao mar, impelidas pela fome. Quando, porém, o tentam, são repelidas a
dentadas. Assim, durante sete ou oito semanas, todos juntos passam fome e
emagrecem muito, tudo isto para impedir a saída dos filhotes ao mar, antes que
sejam capazes de nadar bem e obedecer à usual técnica de natação, que lhes é
ensinada a trancos e dentadas. Isto demonstra também, até que ponto o amor dos
pais pelos filhos, como qualquer outra forte manifestação da Vontade, aumenta a
inteligência. Patos selvagens, toutinegras e muitos outros pássaros, quando o
caçador se aproxima do ninho, voam com altos alaridos e se precipitam aos seus
pés, esvoaçando de um lado para o outro, como se estivessem paralisadas suas
asas, tudo isto para chamar sobre si a atenção do caçador e desviá-la dos
filhotes. A cotovia entrega-se ao cão, procurando com isto fazer com que ele se
afaste do ninho. Também corças e veados procuram atrair a si a atenção da
caçada e fim de salvaguardar os filhos. Voaram andorinhas até casas em chamas
para salvas seus filhotes, ou para morrer com eles. Em Delft, uma cegonha
deixou-se queimar no ninho, num violento incêndio, para não abandonar seus
filhotes que ainda não sabiam voar. Pássaros selvagens, ao chocar, deixam-se
apanhar no ninho. A muscicapa tyrannus
defende seu ninho com grande valentia, e enfrenta até a águia. Cortou-se uma
formiga ao meio e viu-se a sua metade dianteira pôr ainda a salvo os ovos. Uma
cadela, de cujo corpo se cortaram os filhotes, arrastou-se moribunda até eles,
lambeu-os com amor, e começou só a gemer horrivelmente quando lhos tiraram.” (SHOPENHAUER,
Arthur. O instinto sexual. São Paulo:
Edições INEDOS, 1951. p. 37-8). O cuidado, aí, é mais à espécie que ao
indivíduo – embora seja nele que mais parece aparecer. É de igual modo no
homem, e na mulher, e na espécie humana. O impulso não é pela morte, mas pela
vida.
8 “Todos os homens procuram ser felizes; não há exceção. Por
diferentes que sejam os meios que empregam, tendem todos a esse fim. O que leva
uns a irem para a guerra e outros a não irem é esse mesmo desejo que está em
todos, acompanhado de diferentes pontos de vista. A vontade nunca efetua a
menor diligência, senão com esse objetivo. Esse é o motivo de todas as ações de
todos os homens, até mesmo do que vão enforcar-se.” (Pens., VII, 425. PASCAL, Blaise. Pensamentos. 4. ed. São Paulo: Nova
Cultural, 1998. p. 137. [Col. Os Pensadores]).
9 SCHOPENHAUER,
2005, p. 504 (§ 69).
10 “Só existe
um problema filosófico realmente sério: o suicídio. Julgar se a vida vale ou
não vale a pena ser vivida é responder à pergunta fundamental da filosofia.” (CAMUS,
Albert. O mito de Sísifo. Rio de
Janeiro: Edições BestBolso, 2010. p. 19).
11 SCHOPENHAUER,
1951, p. 44.
12 SCHOPENHAUER,
1951, p. 46.
13 NIETZSCHE,
Friedrich. O anticristo: Maldição do
cristianismo: Ditirambos de Dionísio. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p.
12 (§ 5).