quarta-feira, 24 de outubro de 2012


20.




Dos nomes que o Amor tem, e do sentido que eles escondem



“Amor”, substantivo masculino... Os dicionários comuns não ajudam:

1. Sentimento que predispõe alguém a desejar o bem a outrem. 2. Sentimento de dedicação absoluta de um ser a outro, ou a uma coisa. 3. Inclinação ditada por laços de família. 4. Inclinação sexual forte por outra pessoa. 5. Afeição, amizade, simpatia. 6. O objeto do amor (1 a 5).1

“Amar”, verbo intransitivo, que nem na novela de Mário de Andrade, onde o pensamento ingênuo de Elza lhe diz que, no princípio, o amor tem que ser simples. “Simples e insexual. [Pois] nasce das excelências interiores. Espirituais. O desejo [vem] depois.2” Mas, ah!, que seria isso senão antecipar o pensamento ao pensador, à “coisa pensante (res cogitans)? Não! Não é assim, Elza. Primeiro é a res extensa3, depois a cogitans, e, somente aí, o cogito. O cartesianíssimo cogito ergo sum antepõe-se ao pensamento, afirmando o sujeito4. É assim também com a fórmula agostiniana si fallor, sum: se me engano, existo5, que alguns veem como germe da fórmula cartesiana. É preciso haver o que se engana para que haja o engano... Elza saberá disso, depois.
Quantos saberão? Quantos quererão saber?
“São tantas as teorias sobre o amor, e nenhuma delas serve para nada”, alguns dizem, apressando-se no juízo, pensando com o coração, que nada pensa, mas considera o “fato imediato”, não refletido  na aceitação de um sentimento que, para ser inteiro, exige tempo, calma, ponderação e, acima de tudo, fundamentos. A informação/sensação imediata do visual é vomitada, e agressiva – hoje, mais que antes. A sutileza racional é moeda rara. Adquiri-la exige tempo e esforço, principalmente aos que não são naturalmente dotados de muito brilhantismo intelectual. Os apelos externos, por outro lado, tornam tal empresa ainda mais laboriosa. A segurança reverente da palavra escrita vai sumindo diante das tantas telas do zapping em sua profusão, como lembradas e louvadas pelo Capitão Beatty, na distopia de Ray Bradbury:

Encha as pessoas com dados incombustíveis, entupa-as tanto com “fatos” que elas se sintam empanzinadas, mas absolutamente “brilhantes” quanto a informações. Assim, elas imaginarão que estão pensando, terão uma sensação de movimento sem sair do lugar. E ficarão felizes, porque fatos dessa ordem não mudam. Não as coloque no terreno movediço, como filosofia ou sociologia, com que comparar suas experiências. Aí reside a melancolia.6

É preciso desobedecer tal orientação, mesmo com as ameaças da melancolia – coisa que Guy Montag, personagem principal de Fahrenheit 451, fará e experimentará. No amor, para saber, é preciso saber: amores são, por quaisquer caminhos, afirmações absolutas do nosso Eu que, em função de si mesmo (ou da sua autopreservação), cria “coisas” e fantasias – sendo a religião, muito provavelmente, a maior de todas. Schopenhauer chamava isso (essa força do “amor”) de Vontade (Wille), e Freud, Pulsão (Trieb).
Os amores, na divisão clássica, se distinguem em, pelo menos, quatro: erótico (Eros, eran), o da amizade (philia, philein), o desinteressado (ágape, agapan) e o amor a si mesmo (stergein), ou amor-próprio, amour de soi.
Homens e mulheres que somos, somente experimentamos, por meio do intelecto ou da experiência pura, o último dessa lista. Volto a Nietzsche: “O egoísmo não é um princípio, é só e unicamente fato.7” A farsa, a maior de todas, é a do amor romântico. Ele seria o Eros domado, abraçado à philein, subjugado e dependente da perfeição de ágape. Aí ele se espelharia, unindo os corações e as mentes em uma grande fraternidade universal que, embora as tantas diferenças, transforma homens e mulheres em irmãos8; e mesmo quando (homem e mulher) eles se fazem um (uma só carne), através do matrimônio - que a doutrina católica apresenta como sacramento. Ágape é, acima de tudo, fundamento. Não!, eu digo. Ágape é, acima de tudo, delírio, fantasia, desejo que exista algo além do que os nossos olhos podem ver. Não há. E, se há, somente a nossa fé o garante; a razão, nunca. Mas aqui não há lugar para a fé... não essa. 
Assim, o amor que Arturo sente por sua mulher, ou por sua amante, ou por qualquer outro (ou outra) que seja objeto da sua atenção, é, no final das contas, amor que deseja e responde apenas a si mesmo, e vê no Outro aquilo que lhe faz bem, lhe dá prazer, lhe faz falta, lhe apetece as afecções... o EU refletido no TU. O Outro, objeto, mesmo que outros discursos digam o contrário na tentativa infantil de manter o modelo afundado na poeira dos séculos -, é mero objeto, meio para a minha satisfação, por amor a mim mesmo. Mas, ah!, também sou o mesmo para ela, ele: objeto, de amor ou ódio.
Na carta do Apóstolo aos cristãos de Éfeso: “Quem ama a sua mulher, a si mesmo se ama”. É evidente que esse, nosso, não é o mesmo sentido que o Apóstolo dá à missiva. Também é certo que o contexto do discurso deixa claro aquele sentido estoico-fraternal de há pouco falado. Mas, sim, a citação ilustra perfeitamente o que dizemos.
Agora, suponhamos que alguém tenha um filho e, coisa mais que normal, diga-lhe: “Eu o amo, filho.” Esse amor é, também, braço curto do amour de soi. Que é isso, o desejo de ter filhos (o pai, via de regra, deseja um filho, e a mãe, uma filha), senão o nosso desejo inconsciente de continuidade? Continuidade do Eu no Tu. Os pais, nos filhos, mantêm-se vivos, prolongam-se na história biológica do mundo. Ágape nenhum. Obedecemos, quase sempre, cegamente ao impulso natural. Não há amor aí, apenas Vontade de vida.
Ágape é uma espécie de “amor pelo feio”9, em contraste ao Eros grego – que corresponde exatamente ao amor pelo belo, erótico, sexual. No Novo Testamento, o que mais aparece é ágape, depois philein. Eros e stergein, somente como insinuações combatíveis, a combater-se10. E foi assim que, conforme Nietzsche,

O cristianismo tomou o partido de tudo o que é fraco, baixo, malogrado, transformou em ideal aquilo que contraria os instintos de conservação da vida forte; corrompeu a própria razão das naturezas mais fortes de espírito, ensinando-lhes a perceber como pecaminosos, como enganosos, como tentações os valores supremos do espírito. E exemplo mais lamentável – a corrupção de Pascal, que acreditava na corrupção de sua razão pelo pecado original, quando ela fora corrompida apenas pelo seu cristianismo!11

Amor por algo que não merece o amor, é ágape: o caridoso ágape – coração das palavras charis (graça, favor imerecido) e charitas (caridade). Nalgumas versões mais antigas do Novo Testamento – do capítulo 13 da primeira epístola de são Paulo Aos coríntios, mais especificamente –, a tradução de αγάπη aparece como “caridade”, muito mais acertada; pelo sentido que evoca em seu grande contexto, diferente do que aparece nas versões modernas. Aqui, porém, este detalhe filológico/exegético não vem ao caso.
O amor é sempre amor por algo, e esse algo sempre esbarra em nós mesmos. O “querer algo” nunca é, realmente, “querer algo”, mas querer-si-mesmo12. Madre Tereza de Calcutá é um exemplo radical, inevitável... some-se a ela todos os homens bons, os santos, os justos, os piedosos, os salvadores da humanidade. Tanto mais amor “demonstrado” ao outro (em função do outro), tanto mais amour de soi. No outro, vemos o reflexo de nós mesmos. Mesmo no suicídio, que alguém poderia julgar o maior ato de desapego à vida própria vida, de desamor a ela.

Todos os homens procuram ser felizes; não há exceção. Por diferentes que sejam os meios que empregam, tendem todos a esse fim. O que leva uns a irem para a guerra e outros a não irem é esse mesmo desejo que está em todos, acompanhado de diferentes pontos de vista. A vontade nunca efetua a menor diligência, senão com esse objetivo. Esse é o motivo de todas as ações de todos os homens, até mesmo do que vão enforcar-se.13

Quando se faz o bem a alguém, faz-se porque é bom fazer o bem a alguém ­– conforme o modelo moral-dualista do Ocidente, que diz que o bem é bom por si mesmo, e o mal, mau... ou, por falta de um discurso mais preciso, “a privação [ausência] do Bem”, de Deus14. Tais conceitos, porém – veja os filmes de Akira Kurosawa –, não são assim tão precisos, fechados, infalíveis. Se Deus é onipresente, como haveria de haver algo em que ele “faltasse”? E como poderia estar quieto no mesmo lugar em que o mal estivesse, sem destruí-lo? Estaria somente nas obras do amor? Obras de amor... Ah!, o prazer do dever cumprido! O coração repleto de ações altruístas que... não!
Tenha medo, muito medo, de quem diz: eu te amo. Veja-o com desconfiança e, talvez, com a pergunta infalível: por quê?




1 Verbete em: FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Minidicionário da Língua Portuguesa. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993. p. 29.
2 ANDRADE, Mário de. Amar, verbo intransitivo. Rio de Janeiro: Agir, 2008. p. 21.
3 Não levo em conta o idealismo (moderado?) cartesiano que separa o corpo (ou a matéria) do intelecto, e que supõe uma res divina, substância muito mais exterior e necessária.
4 A necessidade do “eu sou, eu existo” – uma vez que não se pode duvidar sem existir – é o primeiro conhecimento certo que, segundo Descartes, se pode ter com certeza. E mesmo que exista um “Génio Maligno” que possa me enganar a respeito de muitas coisas, inclusive de mim mesmo, “não há dúvida que também existo, se me engana; que me engane quanto possa, não conseguirá nunca que eu seja nada enquanto eu pensar que sou alguma coisa. De maneira que, depois de ter pensado e repensado muito bem tudo isto, deve por último concluir-se que esta proposição Eu sou, eu existo, sempre que proferida por mim ou concebida pelo espírito, é necessariamente verdadeira.” (DESCARTES, René. Meditações sobre a Filosofia Primeira. Coimbra: Livraria Almedina, 1976. p. 119).
5 “Pois se me enganar, existo. Realmente, quem não existe de modo nenhum se pode enganar. Por isso, se me engano é porque existo. Porque, portanto, existo se me engano, como poderei enganar-me sobre se existo, quando é certo que existo quando me engano?” (De Civ. Dei, XI, XXVI; AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus. 2. ed. Lisboa: Serviço de Educação e Bolsas / Fundação Calouste Gulbenkian, 2000. p. 1051-2).
6 BRADBURY, Ray. Fahrenheit 451. 2. ed. São Paulo: Globo / Biblioteca Azul, 2012. p. 86.
7 NIETZSCHE, Friedrich. Vontade de Potência. São Paulo: Escala Editorial, 2010. p. 148. (Col. Grandes Obras do Pensamento Universal, 97).
8 O conceito, em sua universalidade, vem dos estoicos, com a afirmação de um Logos universal (isto é, presente em todos os indivíduos humanos), abraçado pelo apóstolo Paulo e, depois, subscrito pelos Padres. Ver, a propósito do tema, o livro de: RATZINGER, Joseph. A união das nações: uma visão dos Padres da Igreja. São Paulo: Loyola, 1975.
9 No sentido contrastante de que, Deus, a ninguém apreciaria mais ou menos em resposta a algum atributo estético: “Mas o que é loucura no mundo, Deus o escolheu para confundir o que é forte; aquilo que no mundo é vil e desprezado, aquilo que não é, Deus o escolheu para reduzir a nada o que é, a fim de que nenhuma criatura possa orgulhar-se diante de Deus.” (I Cor., 1, 27-9, TEB).     
10 “Dos quatro verbos gregos que denotam os diferentes aspectos do amor, eran, stergein, philein e agapan, os dois primeiros são praticamente evitados no Novo Testamento (especialmente eran e o substantivo eros, pois possuíam conotações afetivas incompatíveis com o amor a Deus). O terceiro, philiein, não foi privilegiado, focalizando a atenção em agapan e o substantivo agape, cuja aplicação, até o momento marginalizada, permitia a ampliação do campo semântico requerida. Nesse sentido, o amor ocupa o lugar principal e a amizade o secundário no cristianismo, invertendo a hierarquia pagã.” (ORTEGA, Francisco. Genealogias da amizade. São Paulo: Iluminuras, 2002. p. 58).
11 NIETZSCHE, Friedrich. O anticristo: Maldição do cristianismo: Ditirambos de Dionísio. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 12 (§ 5).
12 SCHOPENHAUER, Arthur. El amor, las mujeres e otros ensayos. Madrid: Editorial EDAF, S. A., 1993, p. 439-60. (IV, § 62). Schopenhauer, aí, tem o pensamento no Banquete, de Platão.
13 Pens., VII, 425; PASCAL, Blaise. Pensamentos. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1998. p. 137. (Col. Os Pensadores).
14 É o que Santo Agostinho afirma, demonstrando inicialmente que o mal não é um ser, que não tem caráter ontológico, sendo o completo não-positivo do não-ser: “O mal não tem natureza alguma; pois a perda do ser é que tomou o nome de mal” (De Civ. Dei, IX; AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus: contra os pagãos. Bragança Paulista: Ed. Universitária São Francisco, 2003. p. 29. v. II); ele é, ademais, a perversão da vontade: “E procurando o que era a iniquidade compreendi que ela não era uma substancia existente em si mesma, mas a perversão da vontade...” (Conf., XVI;  AGOSTINHO, Santo. Confissões. São Paulo: Paulus, 2006. p. 191); e como a vontade não é livre (por causa da Queda), embora o homem tenha livre-arbítrio, o mal é ação do homem, sem Deus: “Assim a avareza não é vicio do ouro, mas do homem que ama desordenadamente o ouro, por ele abandonando a justiça, que deve ser infinitamente preferida a esta metal. E a luxuria, não é vicio da beleza e graça do corpo, mas da alma que perversamente os prazeres corporais desprezando a temperança, que nos une a coisas espiritualmente mais belas e incorruptivelmente mais cheia de graça. E a jactância que não é vicio do louvo humano, mas da alma que ama desordenadamente ser louvada pelos homens, desdenhando o testemunho da própria consciência. E a soberba não é vicio de quem dá o poder, ou do poder mesmo, mas da alma que ama desordenadamente seu próprio poder, desprezando o poder mais justo e poderoso. Por isso quem ama desordenadamente o bem, seja de qual natureza for, mesmo conseguindo-o, se torna miserável e mau no bem, ao privar-se do melhor.” (De Civ. Dei, VIII; p. 70). Mais sobre a questão do mal, em Agostinho, em: EVANS, G. R. Agostinho sobre o mal. São Paulo: Paulus, 1995.






LinkWithin

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...