quarta-feira, 14 de novembro de 2012


23.





Da sublimação e da desconfiança



O oposto natural de tudo o que é sublimado é a desconfiança.
Na língua grega e na retórica da Antiguidade, paixão (“sofrimento”) e paixões (apelos sensoriaisvontades”, etc.) são designadas por uma só palavra: pathe. Ambas apontam para a convivência e o confronto de um texto (escrito) com a realidade do que ele pretende expor (a realidade humana), caracterizada especialmente na categoria subjetivo-corporal. O que isso significa? Que o sofrimento e a emoção somente existem no nível corporal, individual, mesmo quando expressos através de um discurso oral ou um texto escrito – um romance, por exemploAinda na categoria subjetivo-corporal, o mesmo vale para os sentimentos de fé, de esperança e de amor – as três virtudes teologais da Igreja Católica. E por falar em Igreja Católica, um dos seus místicos mais famosos, Angelus Silesius1, escreveu: “Sei que sem mim Deus não pode viver um instante sequer / Se eu for aniquilado, também o seu espírito tem de necessariamente extinguir-se.2” Outro místico católico, Heinrich Seuse3, vai além, dizendo que “a alma humana cantará no céu um hino que irá soar melhor do que o de todos os anjos, porque os anjos não sabem o que é sofrimento.4” Em Silesius, não há nada percebido ou desejado sem o Eu que percebe, e deseja. Que me importa a fé, a esperança e o amor, se Eu não sou?, que me importa Deus ou o seu Espírito? Acima de tudo e para tudo, Eu – ao menos para, daí, desejar, ter esperanças, amar, sofrer, et cetera. Em Seuse, a experiência da pathe humana (em qualquer que seja a sua designação), no céu – e aí aparecem as três virtudes teologais, nas entrelinhas –, torna o Eu individual, salvo, muito mais bem-aventurado do que os anjos, que não têm a pathe. A perspectiva mística de ambos tem a verticalidade que se eleva a partir do horizonte humano, daquela esperança na fé em Deus, fincada no horizonte do Eu – como a pipa que, no céu, está presa àquele que é, na terra. Em Seuse, o Eu já “está em outro plano”, voado do chão, sem linha, sem horizonte e sem verticalidades. Há, porém, ainda, em ambos, o idealismo romântico.
Enquanto categoria hermenêutica, a paixão tem essa relação muito direta com a história humana. Dessa paixão, inapelavelmente, é que surge a História – a escrita, em que se incluem todos os gêneros (literários), concebidos ou que se possa conceber. Quando Marx e Engels, na primeira frase do primeiro parágrafo do Manifesto do Partido Comunista, afirmam que “a história de toda sociedade até hoje é a história de lutas de classes”5, é da paixão que tratam; paixão que mostra, por trás de tudo, a luta pela sobrevivência, e a Vontade de vida. Não há História sem o Eu “historial”: a consciência individual de si, sobre si, dentro ou fora da coletividade humana. Sim, pois o que não é humano não tem história, ou existencialidade, ou paixão – no sentido romântico do termo, e no que toca às suas relações temporais com o Outro.6
No Eu historial é que habita a fala do Numinoso7, sobre ele, anteposto na experiência imediata das consciências individuais e da antecipação de mim-mesmo – pois o pensamento ou a experiência com o Numinoso somente pode ser a partir de mim-mesmo. Aquele autor antes do artista e sua arte, representação falseada do Real, se Platão não tem razão8, aparece invertido. Caio na tentação do realismo9, defendendo a tal inversão, na afirmação imodesta (mas não festiva) de que mesmo o antinatural (ou metafísico) é obra da naturalidade, e que a cultura é fabricação social, substrato psicológico. Como nos poemas homéricos, também o romance escrito é arte de um artista, figurando ou pretendendo figurar e expor a realidade humana. E se isso distancia o seu autor em três graus do Real10, é que uma interpretação realista aí foi privilegiada... o que não quer dizer, sob qualquer hipótese, que ela seja real além da sua própria realidade, isto é: o seu si-mesma, no fenômeno humano.
À pergunta: “Que fazer com o Ego?”, Jacob Needleman responde:

Obviamente, se procuramos o crescimento interior, devemos encarar a questão do que fazer com as emoções do ego. E a resposta que nos chega de todos os grandes ensinamentos interiores é que existe algo dentro de nós que pode se libertar dessas emoções. Existe uma capacidade de mente que pode fugir delas, uma capacidade da consciência de existir independentemente das emoções egoístas.11

É evidente que Needleman, aí, pensa em apenas um sentido para o que chama de “ego”, e as emoções ligadas a ele são as piores. Needleman se mantém na tradição, e no equívoco da tradição. A sua noção de “libertação” é, na verdade, um duplo equívoco: primeiro porque ela não é mais que um desvio meditativo, uma tentativa de fuga daquela “realidade humana” ou “emoção existente no nível corporal e individual” de que, a pouco, me referi; é como se alguém tentasse fugir de uma dor do futuro, através de algum exercício doloroso, antecipando a dor real contra aquela outra, suposta. Depois – como também encontrado na fenomenologia ontológica do budismo12 –, o escapar do Eu, por alguma extinção consciente (?) da Vontade de vida (as paixões, as pulsões), somente é possível mediante o não-Eu, ou a não-consciência imediata de ser. Mas, ora!, onde não há consciência, também não há o Eu. O livro de Needleman, Sobre o amor (A little book on love), de 1996, não tem muito a dizer sobre o seu tema, realmente; não além do que já foi dito por todos os autores românticos e religiosos de todos os tempos, gripados de Platão, afogados no Romantismo do século XVIII. E não é nada espantoso que Needleman termine o seu livro com uma citação do apóstolo Paulo: “Podemos então dizer, sem qualquer traço de sentimentalismo ou pretensão de pensamento, que o amor é mais forte do que a morte. Nas palavras de São Paulo: ‘O amor permanece’.13” Jacob Needleman, dispensável.
Para Max Scheler, porém, o amor é uma maneira original e imediata do comportamento afetivo-emocional, por um lado; por outro, está relacionado per se com a individualidade da qual falamos. O amor, ele diz, é “um compreensivo ir ao encontro da outra individualidade, de um ser tão diferente do eu que vai ao encontro, como de uma outra e diferente [individualidade].14” Assim, dando e recebendo individualidades, concedendo liberdade e autonomia, o amor é uma “afirmação dolorosa”, pois está voltado “para um cerne individual das coisas.15” E como não seria? Ele te amava e, com os olhos brilhando e emocionado, dizia que não saberia mais viver sem você. Hoje, porém, passa ao seu lado, feliz, sorrindo abraçado à outra, sem notar a sua miserável existência... Ainda é amor. O amor, nisso tudo, não é conhecimento individual, localizado em um indivíduo, mas anúncio do anteposto ao conhecer, ao acontecer – enquanto realização da manifestação da Vontade e do seu valor mais alto, a partir de um valor dado. “Amor”, qualquer que seja o nome que você utilize para ele, é, antes de tudo, e principalmente, manifestação da Vontade.16
Essa leitura antimetafísica do amor romântico soará, sim, estranha – pois está fora da opinião dominante; principalmente a do “Mercado Romântico”.
Para Klaus Berger, “o estranho é o oprimido que não se quer ver. O estranho está fora da opinião dominante e fora do alcance da visão dos dominantes. Ele é, em todo caso, individualidade afastada.17” Em um trecho de “O movimento romântico”, estranho mesmo é o comportamento de ovelha dos amantes, “consumidores” da ração kitsch18 ofertada pelo Mercado da Cultura romântica (dominante), no pastiche do romantismo:19

O bom senso é uma coisa das mais incomuns...
Casar por amor é invenção de dois séculos, só.
O “romance ideal” serve bem ao Mercado
Pra vender livros, filmes e novelas,
Pra fazer canções como esta.20
               
Quero, por fim, manter esta recomendação: tenha medo, muito medo daquele ou daquela que diz “eu te amo”. Encare-os com desconfiança, sabendo: tanto mais amor “ao outro” – você, no caso –, tanto mais amor a “si mesmo”, agora ele, ela. E se o amante insistir, desafine-lhe o coro feliz com a pergunta final e infalível: por quê?
                
                




1 Pseudônimo de Johannes Scheffler (1624-1667), poeta germânico nascido em Breslau, na Polônia – onde também faleceu. Místico cristão, Silesius também foi filósofo, médico e jurista.
2 Citado em: SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. São Paulo: Editora UNESP, 2005. p. 190. (II, § 25).   
3 Heinrich Seuse (c. 1295/1297-1366), ou Heinrich von Berg, foi um místico medieval, frade e teólogo dominicano. Estudou a obra de Mestre Eckhart e a teologia negativa de Dionísio – Pseudo-Areaopagita. Com base nos ensinamentos de Eckhart, escreveu dois tratados teológico-místicos: Buch der Wahrheit (Livro da Verdade) e Büchlein der ewigen Weisheit (Livro da sabedoria Eterna).  
4 Citado em: SÖLLE, D. Die Hinreise: zur religiösen erfahrung: text und überlegungen. Stuttgard: Kreuz, 1975. p. 181.
5 ENGELS, Friedrich; MARX, Karl. Manifesto do Partido Comunista. 10 ed. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 66. [Col. Clássicos do Pensamento Político, 24]). Em uma nota de Engels à edição inglesa de 1888, do Manifesto, consta que a referência à história, aí, é a “toda a história escrita”, que trata da luta de classes contra classes – camponeses contra burgueses, por exemplo –, na intenção de melhorias econômico-sociais, etc. No Germinal (produzido no final do século XIX, em 1881, e às vezes chamado – criticamente – de um conto da “civilização”), Émile Zola faz um relato do que foi e como foi a greve dos mineiros do norte da França, ocorrida no final do século XIX, motivada pelas precárias condições de trabalho às quais os mineiros estavam submetidos, e animada pela ideologia socialista da época. A fim de obter um relato fidedigno, Zola fez inúmeras pesquisas, transitando nas vilas e nas minas de carvão, conversando com mineiros e com a pequena burguesia local. Germinal, por isso, é um dos melhores retratos do que a citação de Engels e Marx quer dizer. (Cf. ZOLA, Émile. Germinal. São Paulo: Cia. das Letras, 2000).
6 “A existencialidade ou transcendência – na terminologia heideggeriana – é constituída pelos atos de apropriação das coisas do mundo, por parte de cada indivíduo. O termo ‘existencialidade’ não é empregado no mesmo sentido em que se diz que uma pedra ou a Lua ‘existem’, mas como antecipação de suas próprias possibilidades.” (CHAUÍ, Marilena de Souza. Vida e obra. In: HEIDEGGER, Martin. Conferências e escritos filosóficos. São Paulo: Abril Cultural, 2006. p. 7. [Col. Os Pensadores]). E, nas palavras do próprio Heidegger: “O que é primeiro filosoficamente não é uma teoria da conceituação da história, nem a teoria do conhecimento histórico e nem a epistemologia do acontecer histórico enquanto objeto da ciência histórica, mas sim a interpretação daquele ente propriamente histórico em sua historicidade [o homem].” (HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes, 2002. p. 37 [§ 3, Introdução]).
7 Para usar a terminologia de Rudolf Otto (OTTO, Rudolf. O Sagrado: os aspectos irracionais na noção do divino e sua relação com o racional. São Leopoldo: Sinodal/EST; Petrópolis: Vozes, 2007), relativo ao Sagrado e à sua manifestação na experiência religiosa, que ilustra bem essa categoria do “salto ontológico”, ou aquela transcendentalidade tão presente na maioria das obras dos autores religiosos e/ou romântico-idealistas.   
8 Referência ao Livro X de A república, de Platão. Especialmente na parte em que Sócrates afirma o grande artífice, que será chamado de demiurgo pelos neoplatônicos, e, na tradição cristã, Logos – o próprio Cristo-Deus criador. “Efetivamente”, Sócrates diz, “esse artífice não só é capaz de executar todos os objetos, como também modela todas as plantas e fabrica todos os seres animados, incluindo a si mesmo, e, além disso, faz a terra, o céu, os deuses e tudo quanto existe no céu e no Hades, debaixo da terra.” (PLATÃO, A república, 596 a-e; PLATÃO. A república. 9 ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001).
9 Faço uma referência direta ao livrinho de Gianni Vattimo, em que a sua “inspiração religiosa-política” inspira sua filosofia, mantendo-o no nível do realismo. Cf. VATTIMO, Gianni. A tentação do realismo. Rio de Janeiro: Lacerda Ed.: Instituto Italiano di Cultura, 2001. (Col. Conferências Italianas, 1).
10 À maneira grega de contar os extremos, sem a literalidade numérica.
11 NEEDLEMAN, Jacob. Sobre o amor. Rio de Janeiro: Ediouro, 1998. p. 56-7.
12 “A quarta Verdade Santa enumera as diferentes etapas da ‘Nobre Via das oito Virtudes’. [...] Estamos assente que o mundo fenomenal [no sentido platônico-husserliano] é irreal, e que é precisamente na medida em que o homem se apercebe desta vacuidade que ele se aproxima da libertação, é óbvio que é a ‘meditação pura’ (dhyâna) que constitui a suprema virtude do budismo.” (ARVON, Henry. O budismo. Lisboa: Publicações Europa-América, [s.d.]. p. 46-7. [Col. Saber, 165]). É de se perguntar, ao budista radical: mas, afinal, o que é o Buda?, senão a “consciência de Buda”.
13 NEEDLEMAN, 1998. p. 156.
14 SCHELER, Max. Wesen und der sympathie. 6. ed. Bern/München: Francke Verlag, 1973. p. 109. (Schriften, VII).
15 SCHELER, 1973, p. 152.
16 PLATE, B. Die erfahrung, die zeit uns das mit-dasein. München: Bertelsmann, 1966. p. 163s.
17 BERGER, Klaus. Hermenêutica do Novo Testamento. São Leopoldo: Sinodal, 1999. p. 118.
18 No sentido da atitude geral e complacente, na supressão do senso crítico que, aqui, tem a ver com questão da exploração do romantismo enquanto produto.
19 Com referência à insistência de certos “modelos”, presentes no movimento das últimas décadas do século XVIII, na Europa, e que durou quase todo o século XX – principalmente por sua “visão romântica do mundo”, ao contrário das propostas do racionalismo da Ilustração, etc.
20 “O movimento romântico” é título de uma música que fiz para o álbum “Universal Park” (Independente, 2009), da banda Madalena Moog. É também o nome de um livro do suíço Alain de Botton – que foi de onde retirei o título, embora não reproduza as ideias da referida obra.




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