23.
Da sublimação
e da desconfiança
O oposto natural de tudo o que é sublimado é a
desconfiança.
Na língua grega e na retórica da Antiguidade, paixão
(“sofrimento”) e paixões (“apelos sensoriais”, “vontades”, etc.) são designadas por uma só palavra: pathe. Ambas apontam para a convivência e o confronto de um texto (escrito) com a realidade do que ele
pretende expor (a realidade humana), caracterizada especialmente na
categoria subjetivo-corporal. O que isso significa? Que o sofrimento e a
emoção somente existem no nível corporal, individual, mesmo quando expressos através de um discurso oral ou um texto escrito – um romance, por exemplo. Ainda na categoria subjetivo-corporal, o mesmo vale para os
sentimentos de fé, de esperança e de amor – as três virtudes teologais da
Igreja Católica. E por falar em Igreja Católica, um dos seus místicos mais
famosos, Angelus Silesius1, escreveu: “Sei que sem mim Deus não pode viver um instante sequer / Se eu for
aniquilado, também o seu espírito tem de necessariamente extinguir-se.2” Outro místico católico,
Heinrich Seuse3, vai além, dizendo que
“a alma humana cantará no céu um hino que irá soar melhor do que o de todos os
anjos, porque os anjos não sabem o que é sofrimento.4”
Em Silesius, não há nada percebido ou desejado sem o Eu que percebe, e deseja. Que me importa a fé, a esperança e o amor, se Eu não sou?, que me importa Deus ou o seu Espírito? Acima de tudo e para tudo, Eu – ao menos para, daí, desejar, ter esperanças, amar, sofrer, et cetera. Em Seuse, a experiência da pathe humana (em qualquer que seja a sua designação), no céu – e aí aparecem as três virtudes teologais, nas entrelinhas –, torna o Eu individual, salvo, muito mais bem-aventurado do que os anjos, que não têm a pathe. A perspectiva mística de ambos tem a verticalidade que se eleva a partir do horizonte humano, daquela esperança na fé em Deus, fincada no horizonte do Eu –
como a pipa que, no céu, está presa àquele que é, na terra. Em Seuse, o Eu já
“está em outro plano”, voado do chão, sem linha, sem horizonte e sem
verticalidades. Há, porém, ainda, em ambos, o idealismo romântico.
Enquanto categoria hermenêutica, a paixão tem essa relação
muito direta com a história humana. Dessa paixão, inapelavelmente, é que surge
a História – a escrita, em que se incluem todos os gêneros (literários),
concebidos ou que se possa conceber. Quando Marx e Engels, na primeira frase
do primeiro parágrafo do Manifesto do
Partido Comunista, afirmam que “a história de toda sociedade até hoje é a
história de lutas de classes”5, é da paixão
que tratam; paixão que mostra, por trás de tudo, a luta pela sobrevivência, e a Vontade de vida. Não há História sem o Eu “historial”: a consciência
individual de si, sobre si, dentro ou fora da coletividade
humana. Sim, pois o que não é humano não tem história, ou existencialidade, ou paixão
– no sentido romântico do termo, e no que toca às suas relações temporais com o
Outro.6
No Eu historial é que habita a fala do Numinoso7, sobre ele, anteposto na experiência imediata das
consciências individuais e da antecipação de mim-mesmo – pois o pensamento ou a experiência com o Numinoso somente
pode ser a partir de mim-mesmo. Aquele
autor antes do artista e sua arte,
representação falseada do Real, se Platão não tem razão8,
aparece invertido. Caio na tentação do realismo9,
defendendo a tal inversão, na afirmação imodesta (mas não festiva) de que mesmo
o antinatural (ou metafísico) é obra da naturalidade, e que a cultura é
fabricação social, substrato psicológico. Como nos poemas homéricos, também o romance escrito é arte de um
artista, figurando ou pretendendo figurar e expor a realidade humana. E se isso
distancia o seu autor em três graus do Real10,
é que uma interpretação realista aí foi privilegiada... o que não quer dizer,
sob qualquer hipótese, que ela seja real além da sua própria realidade, isto é: o seu si-mesma, no fenômeno humano.
À pergunta: “Que fazer com o Ego?”, Jacob Needleman
responde:
Obviamente, se procuramos o
crescimento interior, devemos encarar a questão do que fazer com as emoções do
ego. E a resposta que nos chega de todos os grandes ensinamentos interiores é
que existe algo dentro de nós que pode se libertar dessas emoções. Existe uma
capacidade de mente que pode fugir delas, uma capacidade da consciência de
existir independentemente das emoções egoístas.11
É evidente que Needleman, aí, pensa em apenas um sentido
para o que chama de “ego”, e as emoções ligadas a ele são as piores. Needleman
se mantém na tradição, e no equívoco da tradição. A sua noção de “libertação” é,
na verdade, um duplo equívoco: primeiro porque ela não é mais que um desvio meditativo, uma tentativa de fuga
daquela “realidade humana” ou “emoção existente no nível corporal e individual”
de que, a pouco, me referi; é como se alguém tentasse fugir de uma dor do
futuro, através de algum exercício doloroso, antecipando a dor real contra aquela outra, suposta. Depois – como também encontrado na fenomenologia ontológica
do budismo12 –, o escapar do Eu, por
alguma extinção consciente (?) da Vontade de vida (as paixões, as pulsões),
somente é possível mediante o não-Eu, ou a não-consciência imediata de ser. Mas, ora!, onde não há consciência,
também não há o Eu. O livro de Needleman, Sobre
o amor (A little book on love), de 1996, não tem muito a dizer sobre o seu tema, realmente; não além do que já
foi dito por todos os autores românticos e religiosos de todos os tempos,
gripados de Platão, afogados no Romantismo do século XVIII. E não é nada espantoso
que Needleman termine o seu livro com uma citação do apóstolo Paulo: “Podemos
então dizer, sem qualquer traço de sentimentalismo ou pretensão de pensamento,
que o amor é mais forte do que a morte. Nas palavras de São Paulo: ‘O amor
permanece’.13” Jacob Needleman,
dispensável.
Para Max Scheler, porém, o amor é uma maneira original e imediata do
comportamento afetivo-emocional, por um lado; por outro, está relacionado per se com a individualidade da qual
falamos. O amor, ele diz, é “um compreensivo ir ao encontro da outra
individualidade, de um ser tão diferente do eu que vai ao encontro, como de uma
outra e diferente [individualidade].14”
Assim, dando e recebendo individualidades, concedendo liberdade e autonomia, o
amor é uma “afirmação dolorosa”, pois está voltado “para um cerne individual
das coisas.15” E como não seria?
Ele te amava e, com os olhos brilhando e emocionado, dizia que não saberia mais
viver sem você. Hoje, porém, passa ao seu lado, feliz, sorrindo abraçado à
outra, sem notar a sua miserável existência... Ainda é amor. O amor, nisso
tudo, não é conhecimento individual, localizado em um indivíduo, mas anúncio do anteposto ao conhecer, ao acontecer –
enquanto realização da manifestação da Vontade e do seu valor mais alto, a
partir de um valor dado. “Amor”, qualquer que seja o nome que você utilize para
ele, é, antes de tudo, e principalmente, manifestação da Vontade.16
Essa leitura antimetafísica do
amor romântico soará, sim, estranha – pois está fora da opinião dominante;
principalmente a do “Mercado Romântico”.
Para Klaus Berger, “o estranho é
o oprimido que não se quer ver. O estranho está fora da opinião dominante e
fora do alcance da visão dos dominantes. Ele é, em todo caso, individualidade
afastada.17” Em um trecho de “O
movimento romântico”, estranho mesmo é o comportamento de ovelha dos amantes, “consumidores”
da ração kitsch18 ofertada pelo Mercado da Cultura
romântica (dominante), no pastiche do romantismo:19
O
bom senso é uma coisa das mais incomuns...
Casar
por amor é invenção de dois séculos, só.
O
“romance ideal” serve bem ao Mercado
Pra
vender livros, filmes e novelas,
Pra
fazer canções como esta.20
Quero, por fim, manter esta
recomendação: tenha medo, muito medo daquele ou daquela que diz “eu te amo”. Encare-os com
desconfiança, sabendo: tanto mais amor “ao outro” – você, no caso –, tanto mais
amor a “si mesmo”, agora ele, ela. E se o amante insistir, desafine-lhe o coro feliz
com a pergunta final e infalível: por quê?
1 Pseudônimo de Johannes Scheffler (1624-1667), poeta germânico nascido em Breslau, na
Polônia – onde também faleceu. Místico cristão, Silesius também foi filósofo,
médico e jurista.
2 Citado em:
SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade
e como representação. São Paulo: Editora UNESP, 2005. p. 190. (II, §
25).
3 Heinrich Seuse (c. 1295/1297-1366), ou Heinrich von
Berg, foi um místico medieval, frade e teólogo dominicano. Estudou a obra de Mestre
Eckhart e a teologia negativa de Dionísio – Pseudo-Areaopagita. Com base nos
ensinamentos de Eckhart, escreveu dois tratados teológico-místicos: Buch der Wahrheit (Livro da Verdade) e Büchlein
der ewigen Weisheit (Livro da
sabedoria Eterna).
4 Citado em: SÖLLE, D. Die Hinreise:
zur religiösen erfahrung: text und überlegungen. Stuttgard: Kreuz, 1975. p. 181.
5 ENGELS, Friedrich;
MARX, Karl. Manifesto do Partido
Comunista. 10 ed. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 66. [Col. Clássicos do
Pensamento Político, 24]). Em uma nota de Engels à edição inglesa de 1888, do Manifesto, consta que a referência à
história, aí, é a “toda a história escrita”, que trata da luta de classes contra
classes – camponeses contra burgueses, por exemplo –, na intenção de melhorias econômico-sociais,
etc. No Germinal (produzido no final do século XIX, em 1881, e às vezes
chamado – criticamente – de um conto da “civilização”), Émile Zola faz
um relato do que foi e como foi a greve dos mineiros do norte da França,
ocorrida no final do século XIX, motivada pelas precárias condições de trabalho
às quais os mineiros estavam submetidos, e animada pela ideologia socialista da
época. A fim de obter um relato fidedigno, Zola fez inúmeras pesquisas,
transitando nas vilas e nas minas de carvão, conversando com mineiros e com a pequena
burguesia local. Germinal, por isso,
é um dos melhores retratos do que a citação de Engels e Marx quer dizer. (Cf. ZOLA,
Émile. Germinal. São Paulo: Cia. das
Letras, 2000).
6 “A
existencialidade ou transcendência – na terminologia heideggeriana – é constituída
pelos atos de apropriação das coisas do mundo, por parte de cada indivíduo. O
termo ‘existencialidade’ não é empregado no mesmo sentido em que se diz que uma
pedra ou a Lua ‘existem’, mas como antecipação de suas próprias possibilidades.”
(CHAUÍ, Marilena de Souza. Vida e obra. In: HEIDEGGER, Martin. Conferências e escritos filosóficos. São
Paulo: Abril Cultural, 2006. p. 7. [Col. Os Pensadores]). E, nas palavras do
próprio Heidegger: “O que é primeiro filosoficamente não é uma teoria da
conceituação da história, nem a teoria do conhecimento histórico e nem a
epistemologia do acontecer histórico enquanto objeto da ciência histórica, mas
sim a interpretação daquele ente propriamente histórico em sua historicidade [o
homem].” (HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo.
Petrópolis: Vozes, 2002. p. 37 [§ 3, Introdução]).
7 Para usar a
terminologia de Rudolf Otto (OTTO, Rudolf. O
Sagrado: os aspectos irracionais na noção do divino e sua relação com o
racional. São Leopoldo: Sinodal/EST; Petrópolis: Vozes, 2007), relativo ao
Sagrado e à sua manifestação na experiência religiosa, que ilustra bem essa
categoria do “salto ontológico”, ou aquela transcendentalidade tão presente na
maioria das obras dos autores religiosos e/ou romântico-idealistas.
8 Referência ao
Livro X de A república, de Platão. Especialmente
na parte em que Sócrates afirma o grande artífice, que será chamado de demiurgo pelos
neoplatônicos, e, na tradição cristã, Logos – o próprio Cristo-Deus criador.
“Efetivamente”, Sócrates diz, “esse artífice não só é capaz de executar todos
os objetos, como também modela todas as plantas e fabrica todos os seres
animados, incluindo a si mesmo, e, além disso, faz a terra, o céu, os deuses e
tudo quanto existe no céu e no Hades, debaixo da terra.” (PLATÃO, A república, 596 a-e; PLATÃO. A
república. 9 ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001).
9 Faço uma
referência direta ao livrinho de Gianni Vattimo, em que a sua “inspiração
religiosa-política” inspira sua filosofia, mantendo-o no nível do realismo. Cf.
VATTIMO, Gianni. A tentação do realismo.
Rio de Janeiro: Lacerda Ed.: Instituto Italiano di Cultura, 2001. (Col.
Conferências Italianas, 1).
10 À maneira
grega de contar os extremos, sem a literalidade numérica.
11 NEEDLEMAN,
Jacob. Sobre o amor. Rio de Janeiro:
Ediouro, 1998. p. 56-7.
12 “A quarta
Verdade Santa enumera as diferentes etapas da ‘Nobre Via das oito Virtudes’.
[...] Estamos assente que o mundo fenomenal [no sentido platônico-husserliano] é
irreal, e que é precisamente na medida em que o homem se apercebe desta
vacuidade que ele se aproxima da libertação, é óbvio que é a ‘meditação pura’ (dhyâna) que constitui a suprema virtude
do budismo.” (ARVON, Henry. O budismo.
Lisboa: Publicações Europa-América, [s.d.]. p. 46-7. [Col. Saber, 165]). É de se perguntar, ao budista radical: mas,
afinal, o que é o Buda?, senão a “consciência de Buda”.
13 NEEDLEMAN,
1998. p. 156.
14 SCHELER,
Max. Wesen und der sympathie. 6. ed.
Bern/München: Francke Verlag, 1973. p.
109. (Schriften, VII).
15 SCHELER,
1973, p. 152.
16 PLATE, B. Die erfahrung, die zeit uns das mit-dasein.
München: Bertelsmann, 1966. p. 163s.
17 BERGER, Klaus. Hermenêutica do Novo Testamento. São Leopoldo: Sinodal, 1999. p.
118.
18 No sentido da atitude
geral e complacente, na supressão do senso crítico que, aqui, tem a ver com
questão da exploração do romantismo enquanto produto.
19 Com referência à insistência de certos “modelos”,
presentes no movimento das últimas décadas do século XVIII, na Europa, e que
durou quase todo o século XX – principalmente por sua “visão romântica do mundo”,
ao contrário das propostas do racionalismo da Ilustração, etc.
20 “O movimento romântico” é título de
uma música que fiz para o álbum “Universal Park” (Independente, 2009), da banda
Madalena Moog. É também o nome de um livro do suíço Alain de Botton – que foi
de onde retirei o título, embora não reproduza as ideias da referida obra.