3.
Glória, vergonha e desejo de status
A glória, a vergonha e o uso que
fazemos dessas paixões, são os temas dos artigos 204, 205 e 206 da terceira
parte d’As paixões da alma (“Das
paixões particulares”), de René Descartes, escrito e publicado em 1649.
O
que recebe aqui o nome de glória”, ele diz, “é uma espécie de alegria fundada
no amor que se tem por si próprio e que provém da opinião ou da esperança de
sermos louvados por alguns outros.1
Ah!, que esplêndidos são os
franceses nessas análises da alma humana: Descartes, Stendhal, Montaigne,
Camus, Sartre, Comte-Sponville, et cetera.
Nosso desejo da glória, como nosso desejo de status (Alain De Botton), é o
desejo de sermos amados, notados por alguma posição superior que ocupemos, nos
elevando acima do nível comum dos simples mortais2.
A vergonha, é o contrário: o fracasso diante do intento falho, da conquista
frustrada, do plano falido; o olhar recriminatório por uma ação malfada. É, nas
palavras de Descartes, “uma espécie de tristeza também fundada no amor a si
próprio e que provém da opinião ou do temos de sermos censurados”.3 Pascal diz algo muito semelhante,
também ligado à finalidade do status:
“Somos tão presunçosos que desejaríamos ser conhecidos por toda a terra, e até
pelas pessoas que vierem quando nela não estivermos mais, e somos tão vãos que
a estima de cinco ou seis pessoas que nos cercam nos diverte e nos contenta.”4
No início e no começo de tudo,
está o Eu (consciente). É daí que nos lançamos de encontro ao Outro e ao Mundo,
nossos objetos – para o bem ou para o mal, e para o nosso bem, de um jeito ou
de outro5. Nenhuma ação nossa – incluindo a
autopunição, a comiseração ou mesmo o suicídio (como outro francês, Pascal,
dizia6) – visa à infelicidade, mas somente o nosso bem, a nossa felicidade (Platão)7,
finalidade de todas as nossas ações (Aristóteles)8.
Descartes acerta quando diz que
ambas as paixões – glória e vergonha – têm o mesmo uso (do modo que falamos); erra,
porém, quando afirma que esse mesmo uso está no fato de ambas “nos
incitarem à virtude, uma pela esperança, outra pelo temor”9.
A virtude, aí, ainda é aquela que o bom filósofo – segundo Aristóteles – mira como prêmio,
confundindo-a com a própria sabedoria10.
Estamos no século XVII, e a Modernidade nascente é filha, filha e dependente, da
Antiguidade e Antiguidade Clássica. Não é fácil ser original e revolucionário.
Acontece que Descartes, também,
não conseguiu fugir do socratismo-platônico, e nem da influência moral da cristandade-ocidental.
Esse é o grande erro de quase todos os grandes escritores que são a favor ou
contra o cristianismo; é o erro vulgar dos que mantém concepções dualistas
sobre o certo e o errado, o bem e o mal, et
cetera. Nietzsche foi o autor que mais se aproximou de tal proposta, lançando-se
para Além do bem e do mal, anunciando
uma filosofia para o futuro11; com
que sucesso?
É preciso criar uma nova maneira
de tratar sobre as paixões,
contemplando o Eu não como coisa nociva à alguma virtude moral, ou contrário a
ela, mas como inevitabilidade dinâmico-natural do humano – e condição unívoca: além do bem e do mal.
O amor romântico, nisso tudo, é apenas uma interface
da coisa toda. E quando falo de amor, não é nenhuma outra coisa que não a
Vontade, mascarada pelo idealismo romântico como coisa supralunar, transcendente,
etc.
Novamente a afirmação,
essencial: ideias fazem amor, pessoas
fazem sexo. Viver na mentira é uma opção, mas não é a melhor – por mais que
os apelos de todos os lados digam o contrário.
1
DESCARTES, Les Passions de l’Âme (§
204). Na tradução que utilizo (de J. Guinsburg e Bento Prado Júnior): DESCARTES, René. As paixões da alma.
São Paulo: Nova Cultural, 1996. p. 236. (Col. Os Pensadores).
2
“Nossa posição na escala social é o cerne desse desejo”, Botton afirma, e
completa: “porque a concepção que temos de nós mesmos depende muito do que os
outros pensam de nós. Excetuando uns raros exemplos (Sócrates, Jesus),
precisamos de sinais de respeito do mundo para nos considerarmos toleráveis”.
(BOTTON, Alain de. Desejo de status.
Rio de Janeiro: Rocco, 2005. p. 8). E, mais adiante: “Dinheiro, fama e
influência podem ser avaliados mais como provas de amor – e um meio de se
chegar a ele – do que como fins em si mesmos.” (BOTTON, 2005, p. 15).
3
Passions (§ 205). DESCARTES, 2006, p.
237.
4
Pens., § 148. PASCAL, Blaise. Pensamentos. 4. ed. São Paulo: Nova
Cultural, 1998. p. 77. [Col. Os Pensadores]).
5 Algo bem próximo ao que é dito por Cioran
em sua História e utopia: “Viver
verdadeiramente é recusar os outros; para aceita-los, é preciso saber
renunciar, violentar-se, agir contra a sua própria natureza, enfraquecer-se; só
se concebe a liberdade para si mesmo; só se estende ao próximo à custa de
esforços extenuantes.” (CIORAN, E. M.
Histoire et utopie. Paris: Editions Gallimard, 1960. p. 12). É evidente que a má compreensão de tal
individualidade, como nota Henry Méchoulan, pode ter consequências terríveis
(cf. MÉCHOULAN, Henry. Liberdade de consciência e liberdade de religião. In:
_____. Dinheiro & liberdade:
Amsterdam no tempo de Spinoza. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992. p.
116-17). Eu não chegaria a tanto, e nem levarei o tema adiante – por hora.
6
“Todos os homens procuram ser felizes; não ha exceção. [...] Esse é o motivo de
todas as ações de todos os homens, até mesmo dos que vão se enforcar.” (Pens., § 425. PASCAL, Pens., 1998. p. 137).
7
No Eutidemo (278e), Platão, antes de Aristóteles e muito mais ainda de
Pascal, perguntava: “Não é verdade que nós, homens, desejamos todos ser
felizes?” E a resposta, de tão evidente, como nota o próprio Platão, quase não
vale a resposta: “De fato, quem não deseja ser feliz?” (Eutidemo, 278e). Daí a afirmação de Comte-Sponville, “a busca da
felicidade é a coisa mais bem distribuída do mundo” (COMTE-SPONVILLE, André. A felicidade, desesperadamente. São
Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 2), parafraseando Descartes – no primeiro
parágrafo d’O Discurso do Método: “O bom senso é a coisa do mundo melhor
partilhada”. (DESCARTES. Discurso
do método. São Paulo: Nova Cultural, 1996. p. 65. [Col. Os
Pensadores]).
8
“Parece que a felicidade, mais que qualquer outro bem, é tida como este bem
supremo, pois a escolhemos sempre por si mesma, e nunca por causa de algo mais,
embora as escolhamos por si mesmas (escolhe-las-íamos ainda que nada resultasse
delas), escolhemo-las por causa da felicidade, pensando que através delas
seremos felizes. Ao contrário, ninguém escolhe a felicidade por causa das
várias formas de excelência, nem, de outro modo geral, por qualquer coisa além
dela mesma.” (Et. Nic.,
1097b, 5. ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco.
São Paulo: Nova Cultural, 1996. p. 125. [Col. Os Pensadores]). E, na introdução
d’A política: “Todas as ações dos
homens têm por fim aquilo que consideram um bem.” (ARISTÓTELES. A política. São Paulo: Martins Fontes,
2000. p. 1).
9
Passions (§ 206). DESCARTES, 2006, p.
237.
10
“O prêmio da virtude é a virtude mesma” (virtus
sibi ipsi praemium), Aristóteles afirma (Et. Nic., 1106b-1107a, 1-3) e, nisso, inaugura uma nova fase à
filosofia, que irá descambar na afirmação da certeza do Eu individual (Agostinho, Lutero, Descartes). “Com
Aristóteles”, diz Roberto Rossi, “a filosofia começa a se estruturar como um
todo unitário, uma visão completa do real, do homem e do seu destino, um
conjunto articulado logicamente, um sistema
indiscutivelmente modelar para a filosofia. Nele o pensamento filosófico
seguinte procurará ‘aprisionar’ a realidade e com ela a verdade, chegando a
identificar esta última com o próprio sistema, o pensamento com o seu objeto. A
verdade assume, assim, as características imanentes do instrumento racional e
do seu uso correto. Ela não parece mais alter
do filosofar, mas é identificada com ele e com a sua articulação e conclusão
coerentes”. (ROSSI, Roberto. Introdução à
filosofia: história e sistemas. São Paulo: Loyola, 1996. p. 46).
11 No prólogo de Para além do bem e do mal (Jenseits von Gut und Böse. Vorspiel einer
Philosophie der Zukunft, 1886), escrito em junho de 1885: “O
cristianismo é platonismo para o ‘povo’.” Nietzsche denuncia o fracasso da
empresa cristã, viciada nos erros da infantilidade humana; era preciso
amadurecê-la, torná-la adulta; mas não havia como apressar as etapas, desconsiderando
o fator “tempo”: salto cego adiante... e ele dizia haver nascido póstumo. Aliás, o
título do livro, acima, já é, em si, mensagem e anúncio dessa boa-nova, “evangelho sem evangelho”. (NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. São
Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 8).