4.
Da Vontade objetiva
de todo amor, de todo amar
“O bebê que toma o peito, você tira o peito, ele chora,
está infeliz. Você lhe devolve o peito, ele se acalma. Há anos uns e outros
buscaram nosso peito. Queríamos um ‘bom objeto’, como dizem os psicanalistas,
que pudéssemos possuir, que nos saciasse, que fizesse que nada nos faltasse...
Que azar: somos desmamados, essa história acabou, ponto final.” São palavras
tristes, mas verdadeiras, de André Comte-Sponville.1
Por que os homens gostam tanto dos peitos das mulheres? Porque
eles procuram, aí, aquilo que não podem mais ter em suas mães. E as mulheres? O
que elas mais procuram, nos homens, é a segurança; e há, nisso, muito bem
sedimentado, toda uma história de dominação: psicobiológica, política, social, et cetera. Um homem rico, mesmo carente
de atributos estéticos favoráveis, é, por tal fortuna, externa, propaganda de
uma segurança que o “ouro” pode dar. Claro que isso pode parecer machista e
feio, pela objetividade; não é, porém, superficial. No final das contas, não e
nem esse homem feio (o mesmo vale para o bonito) e nem o seu dinheiro que ela quer, mas a segurança. Como se vê,
há mais: por trás das intenções, das afecções, disso e daquilo que movem as
nossas vontades e decisões.
Os homens querem “voltar” às barrigas das suas mães, aos seus
peitos (primeira fonte de alimento e segurança); as mulheres, quando não
desejam isso em seus pares (lesbianismo), miram recursos externos, artificiais,
psicologicamente adequados ao seu conforto e segurança – mesmo que não saibam,
não pensem sobre isso. Por outro lado, e como antítese dinâmico-existencial, há
a Vontade de vida2, e o instinto animal
que, em favor da espécie, deseja mais que a segurança. Não há nenhum amor aí,
em nenhum dos casos – ao menos o romântico, isto é: idiotizado, maquiado,
sublimado. Por outro lado, e como é mais comum e natural, há o amour de soi. E como não haveria de haver?
É somente o que há; é tudo o que há.
Quando, em 1910, Freud tratou sobre o Complexo de Édipo,
descreveu-o como o desejo secreto e inconsciente que a criança tem de “matar o
pai”3. É que o pai do menino, de três a cinco
anos, é um seu rival em relação ao peito materno. A fase
seguinte – que viria depois desta, a fálica – marcaria para sempre a vida (psicológica)
do indivíduo macho, “devidamente são”: desapegar-se
da mãe, reconciliar-se com o pai, encontrar, para amar, uma que seja idêntica à
mãe, e não a própria. “Essas tarefas”, Freud escreve, “cabem a todos, e é
notável a pouca frequência com que lidamos com elas de maneira ideal”4. Sua mãe lhe despeja no mundo, e agora
é você que está, por toda a vida, grávido dela.
Outro dia um amigo me disse, jocoso, olhando a mãe novinha
que passava: “Se eu tivesse uma mãe dessas, até hoje estaria mamando”. “Mas”, eu
lhe disse, “dependendo de outro gosto, outro cara pode dizer a mesma coisa da
tua mãe.” “Eiii, rapaz!”, ele disse, me esmurrando de mentirinha; e ficou
nisso.
Os bons leitores de John Fante sabem que seus livros são
altamente biográficos. Em um deles, de 1938 – seu primeiro romance publicado –,
seu nome é Bandini, Arturo Bandini; um menino de doze anos:
Era Arturo e adorava o pai,
mas vivia no temor do dia em que cresceria e seria capaz de bater nele.
Venerava o pai, mas achava que a mãe era fraca e tola.
Por que sua mãe era diferente
das outras mães? [...] Tinha doze anos e tomar consciência de que sua mãe não o
excitava fez com que a detestasse secretamente. Sempre observava a mãe com o
rabo do olho. Amava a mãe, mas a odiava.5
Pobre e desmamado Arturo, sem o peito da mãe, sem o seu
sexo. Era preciso buscar outros peitos, outras fontes lícitas de excitação. Talvez a
mãe Jack Hawley, ou a de Jim Toland, ou a de Carl Molla6,
ou talvez... Rosa7. Mas, ah! Não é a beleza
que buscamos, afinal. A beleza é tão somente o atrativo, a propaganda. Buscamos é a vida, atiçados pela Vontade que, nos animais – e principalmente nos que não
pensam sobre essas coisas – é cega, faz cegar. Já ouviu aquilo de “o amor é
cego”?, é por aí.
Por trás do desejo erótico-estético está o desejo de
segurança, da saciedade daquela fome mais primitiva – que está acompanhada de
todos os nossos vícios e paixões, domados ou não8.
No fim de tudo, reverbera silenciosa a voz do nosso instinto mais básico, comum
a todos os bichos: autopreservação. Aquilo que ocorre ao bebê, ocorre também
conosco: não ter um peito deixa-nos infeliz... é a tristeza. Quando o peito não
nos falta, a vida está assegurada... somente o tédio, agora, nos assedia. Em De rerum natura, Lucrécio faz uma
afirmação dolorosa: “Giramos sempre no mesmo círculo sem nunca poder sair...
Enquanto o objeto de nossos desejos permanece distante, ele nos parece superior
a todo o resto; se ele é nosso, passamos a desejar outra coisa, e a mesma sede
da vida nos mantém em permanente tensão...9”
E daí Schopenhauer, valendo-se de Lucrécio, dizer que a “vida [do homem], [...]
oscila como um pêndulo, para aqui e para acolá, entre a dor e o tédio”10. E Sartre, n’O Ser e o Nada: “O prazer é a morte e o fracasso do desejo”11, e é por isso que “o desejo está
fadado ao fracasso.12” Nessa
historia toda, parece que não temos muitas escolhas, ou escolha.
A razão, por esse viés, nunca é suficiente, libertadora.
Acima de tudo, da própria razão, da própria autopreservação, ela: a Vontade. A
única liberdade estaria no suicídio, mas isso seria uma vontade contra a
Vontade e, logo, um reflexo da própria.
1
COMTE-SPONVILLE,
André. A felicidade, desesperadamente.
São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 114-5.
2 “O querer
tende à vida (olho que se abre para a luz), desde as mais elementares formações
até as mais complexas. Onde houver Vontade, haverá vida. Por conseguinte, para
o autor [Schopenhauer], a expressão ‘Vontade de vida’ é um pleonasmo, e nada
melhor a simboliza, em seu ímpeto tempestuoso, do que os órgãos genitais. Esses
são o seu ‘foco’. A vida quer viver, nem que para isso o particular tenha de
ser sacrificado em favor do universal (como muitas vezes, pensa-se, ocorre nos
casos de paixão amorosa, ou dos animais em luta pela fêmea, e ainda de
parceiros mortos após a cópula).” (BARBOSA, Jair. Schopenhauer. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. p. 34. [Col.
Passo-a-Passo, 16]).
3 “Quando um
garoto (com idade de
dois ou três anos) entra na fase fálica de seu desenvolvimento libidinal, ele
tem sensações prazerosas em seu órgão sexual, aprende a obter prazer pela
estimulação manual e vê-se como amante de sua mãe. Ele deseja possuí-la
fisicamente das maneiras que imaginou por suas observações e intuições sobre a
vida sexual, e procura então seduzi-la mostrando o seu órgão masculino com
orgulho. Em poucas palavras, com o despertar da masculinidade, ele procura
ocupar o lugar de seu pai diante de sua mãe. [...] Seu pai transforma-se então
em um rival que atrapalha seu caminho e do qual ele gostaria de se livrar.” (FREUD,
Sigmund. In: STRCHEY, James [Ed.]. The
Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud.
Hogarth Press / Institute of Psychoanalysis, 1953-74. p. 189, 423-4. vols. 23,
15).
4 FREUD, apud
RAEPER, William; SMITH, Linda. Introdução ao estudo das idéias: religião e filosofia no passado e
no presente. São Paulo: Edições Loyola, 1997. p. 91.
5 FANTE, John. Espere a primavera, Bandini. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio,
2003. p. 26-7.
6 “A mãe de Jack Hawley o excitava:
tinha um jeito de lhe dar bolinhos que fazia seu coração ronronar. A mãe de Jim
Toland tinha pernas sensacionais. A mãe de Carl Molla nunca usava nada além de
um vestido riscadinho; quando varria o chão da cozinha ele ficava na varanda
dos fundos em êxtase, vendo a sra. Molla varrer, os olhos ávidos engolindo o
movimento dos seus quadris.” (FANTE, 2003, p. 26-7).
7 A colega de classe, no colégio, por
quem ele delirava: “Uma voz como um violino suave, emitindo vibrações através
de sua carne. Lá estava ela, diante dele – sua bela Rosa Pinelli, seu amor, sua
garota. [...] Oh, Rosa, como você é maravilhosa. Eu te amo, Rosa, te amo, te
amo, te amo! [...] Oh, olhem para os seus cabelos! Olhem para os seus ombros!
Olhem para aquele bonito vestido verde! Ouçam aquela voz! Oh, você rosa!”
(FANTE, 2003, p. 38).
8 E como afirma Frank Cioffi, nas
anotações que faz ao manuscrito do livro de Richard Webster – Freud, escrito para a The Great
Philosophers Series, editada por Ray Monk e Frederic Raphael, e publicada pela
inglesa Taylor & Francis Group, em 2003 –, mencionado pelo próprio: “[Freud
tem o mérito de ter tido] a coragem de desenterrar o subconsciente, solo de todo
egoísmo, cobiça, luxúria, destrutividade, covardia, preguiça, ódio e inveja que
cada um de nós carrega como herança do mundo animal.” (CIOFFI, apud WEBSTER,
Richard. Freud. São Paulo: Editora
UNESP, 2006. p. 8 [Col. Grandes Filósofos])
9 LUCRÉCIO. De rerum natura, III, 1080-1084; citado em: COMTE-SPONVILLE, 2001,
p. 29.
10 SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo como Vontade e como Representação.
São Paulo: Editora UNESP, 2005. p. 402. (IV, 57).
11 SARTRE, Jean-Paul. L’être et le néant. Paris:
Gallimard, 1969. p. 467.