5.
Do Amor, que é um demônio
Katherine Mansfield foi contemporânea de Lou Salomé, vivendo
praticamente no mesmo período. Ela, de 1888 a 1923; Lou, de 1861 a 1937.
Katherine nasceu na Nova Zelândia, e quase toda a sua educação foi feita em
Londres, onde conviveu com autores como D. H. Lawrence, Virginia Woolf e Aldous
Huxley, participando ativamente de tal círculo intelectual. Lou nasceu na Rússia,
educou-se na Itália, Alemanha e Zurique, e teve Freud e Nietzsche entre os seus
mais destacados mestres. Foi casada com Carl Andreas, mas relacionou-se
afetivamente com Paul Rée e René-Marie
Rilke, cujas influências – incluindo Freud e Nietzsche – fizeram surgir algumas das suas obras fundamentais, a
exemplo de A humanidade da mulher
(1899), Reflexões sobre o problema do
amor (1900) e O erotismo (1911).
A vida amorosa de Katherine, embora
pareça mais movimentada1, é menos
glamorosa – pela menor importância dos seus homens. Quem, em tal quesito, até
hoje, esteve à altura de Lou? Por qual mulher homens como Rée e Rilke – o mais importante poeta da
Alemanha, em sua época – enlouqueceram e, talvez em um momento de lucidez ou de
loucura piorada, deram cabo de suas próprias vidas, em resposta a um amor não
correspondido? Por ela, Nietzsche amargou horrores... resignado e infeliz.
Rilke enlouquece e, no fragmento de um poema, de 1913, pergunta-lhe:
Porque não és tu,
Amada,
uma estrela entre
as estrelas?
[...]
Que eu, degenerado
para a minha morte,
por fim como uma
luz me apague
num interstício do
teu coração.........2
São grandezas cósmicas e cômicas, que fazem rir o espectador que vê de
longe.
Werther3, em companhia de Charlotte
S., a mulher amada (e proibida4), contempla-a,
respondendo-lhe abobado – após a pergunta: “Não queres também dormir?”–:
“Enquanto vir esses teus olhos abertos”, ele diz, “não há perigo de eu fechar
os meus.5” E, no dia seguinte: “O sol, a lua e as
estrelas podem fazer os seus movimentos como bem entenderem, já não sei mais
quando é dia ou noite, e o mundo inteiro se dilui à minha volta.6” Outro dia, de quando dançou com ela,
escreve ao amigo Wilhelm: “Eu já não era humano. Ter nos braços a mais adorável
das criaturas, voar com ela como o vento, vendo tudo se dissolver ao redor...7” É aquele amor que cega, faz
cegar.
Dois amores dados à grandeza, e ao limite do suportável, e vencidos.
Fora de tais limites, ambos partem para os remédios que lhes parecem únicos, contra
a grande doença8. Rilke morreu de
leucemia, em Valmont, na Suíça, em
dezembro de 1926. Segundo alguns, teria
se ferido em um espinho de rosa, enquanto estava
no jardim do castelo Muzot. Leucêmico, viu a ferida agravar-se ao ponto de, em
pouco tempo, ter os braços muito inchados, envenenados. Werther, que já
mostrara sinais claros do pensava fazer – “Não vejo nenhuma outra imagem a não
ser a dela e tudo o que vejo no mundo à minha volta, relaciono com ela. [...] Adeus!
Não vejo outro fim para esta miséria, a não ser o túmulo” (Carta a Wilhelm; 30
de agosto de 1771)9 –, concretiza o intento
em dezembro do mesmo ano, deixando uma enorme carta à amada. Um trecho:
Que importa que Albert
seja o seu marido? Marido! Seria apenas neste mundo... e neste mundo seria um
pecado amá-la, querer arrancá-la dos braços dele? Pecado? Está bem, e vou
punir-me por isso; saboreei esse pecado em toda a sua volúpia celestial, o meu
coração sorveu a força e o bálsamo da vida. Desde esse momento você é minha!
Minha, ó Lotte! Vou na frente! Vou ter com o meu Pai, com o seu pai. Quero me
queixar com ele e, até você chegar, ele irá me consolar, voarei ao seu encontro
para agarrá-la e ficarei ao seu lado na presença do infinito, num eterno
abraço.10
Um homem real, desiludido e angustiado; um personagem de ficção, atormentado,
decidido e obstinado. O amor romântico é uma coisa perigosa, aos homes
(Werther, Romeu, Tristão, Rée, outros)
e às mulheres. Para elas, se não traz a morte física, por seus infortúnios muito
naturais, traz um tipo de morte social – como se mostrará.
Nas cartas e diários de Katherine – e
principalmente: porque é a realidade da sua vida, e não uma novela, obra de
ficção11 –, o desejo de autonomia, numa época
em que o feminismo ainda estava por nascer, aproxima-a de Lou. No final da
carta de 23 de março de 1915, endereçado ao marido J. M. Murry, depois de haver
largado o amante (Francis Carco), com que estivera por um tempo, Katherine afirma:
Não sou mais uma menina – sou uma mulher. Eu quero coisas.
Será que algum dia as terei? Escrever a manhã inteira, almoçar rapidamente,
voltar a escrever à tarde e então jantar, fumar um cigarro e depois ficar
sozinha de novo, até a hora de dormir – e todo este amor e esta alegria que
lutam para escapar – e toda esta vida secando como o leite num seio idoso. Oh,
eu quero vida. Quero amigos, gente à minha volta – uma casa. Quero dar e
receber.12
Sua condição de mulher (dona de casa) e
de escritora, às vezes entra em choque; como aparece noutra carta enviada ao
marido, no verão de 1913, respondendo às suas reclamações:
Eu sou mesmo uma tirana, Jack querido! Ou você diz isso para
me provocar? Acho que sou uma administradora ruim; e a casa parece tomar tanto
tempo se não for cuidada com algum método... Quando tenho de limpar o dobro de
vezes, ou de lavar coisas desnecessárias, sinto horrível impaciência e desejo
de estar escrevendo. Tantas vezes nesta semana ouvi você e Gordon conversando,
enquanto eu lavava louça! Bem, alguém tem que lavar a louça e preparar a
comida. Do contrário, “não há nada nesta casa para se comer a não ser ovos”.
Sim, eu odeio, odeio, odeio fazer essas coisas, que você espera de sua mulher,
da mesma maneira como os outros homens aceitam. [...] Estou me detestando,
hoje. Detesto esta mulher que ‘cuida’ de você, corre de um lado para outro
batendo portas, entornando água – toda desarrumada, com a blusa para fora e as
unhas sujas.13
Não é estranho quando, em seu Diário, nas anotações sobre um domingo
em Paris (16 de maio de 1915), depois de haver passado por algumas relações
amorosas e experimentado um pouco da tão sonhada liberdade, ela anote:
“A vida com as outras pessoas me parece um borrão, uma mancha: é o que acontece
quando estou com J. [O marido]. Quando estou sozinha, acho tudo maravilhoso: a
vida em todos os seus detalhes, a vida.14”
Antes disso, ainda em maio de 1908, e depois da leitura que fizera do livro de
Elisabeth Robins, Come and find me (Venha e me encontre)15, lançado nesse mesmo ano, ela faz
anotações sobre a emancipação feminina:
Sinto que agora realmente posso imaginar do que as mulheres
serão capazes, no futuro. Até agora não tiveram oportunidade. Falar de nossos
dias iluminados, de nosso país emancipado – pura tolice! Estamos firmemente
presas a grilhões de escravidão que nós mesmas modelamos. Sim, agora percebo
que nós os fizemos e temos de tirá-los.16
O amor romântico, até então, é uma
armadilha contra a liberdade das mulheres – aos lhes conceder filhos e a
responsabilidade de criá-los –, por mantê-las presas a uma vida doméstica,
roubando-lhes o tempo, a ação refletida e a possibilidade de emancipação. Era
preciso – Katherine soube-o cedo – não amar tal amor, pelos seus resultados. A
“nova mulher” haveria de saber lidar contra ele, que é parte dos “grilhões de
escravidão que nós mesmas modelamos”. O ideal do amor romântico, assomado a
algumas doutrinas políticas e religiosas, com sua moral masculino-milenar, era
mesmo muito útil à manutenção de tal domínio de um sexo (o masculino) sobre o
outro. Tais ajustes, em conluio, formavam “a doutrina desesperadamente insípida,
segundo a qual o amor é a única coisa no mundo que é ensinada e posta dentro das mulheres, de geração em
geração, e que nos detém de um modo tão cruel.17”
Assim, ela conclui de modo panfletário e militante: “Devemos nos livrar desse demônio
– e então virá a oportunidade de felicidade e libertação.”18
1 Pelo número de amantes que teve, e pelas
idas e vindas com o marido, o escritor inglês e crítico de literatura John
Middleton Murry (1889-1957). Murry publicou mais de 60 livros, inúmeros ensaios
e resenhas sobre literatura, questões sociais, política e religião. Depois da
morte de Mansfield, Murry editou toda a sua obra.
2 De dois
fragmentos, em: RILKE, Rainer Maria; ANDREAS-SALOMÉ, Lou. Correspondência. Rio de Janeiro: Editora Anima Produções Artísticas
e Culturais Ltda. [s.d.]. p. 63-4. No famoso livro de Irvin D. Yalom, Lou é apresentada qual uma deusa: “Ali estava ela! [...] Aquela bela mulher, alta e esguia, envolta num casco de peles, marchando altivamente em sua direção. [...] Era uma mulher de extraordinária beleza: testa altiva, queixo forte e bem esculpido, olhos azuis brilhantes, lábios cheios e sensuais, e seus cabelos louro-prateados, negligentemente penteados, se reuniam em um coque alto, expondo-lhe as orelhas e o pescoço longo e gracioso.” (YALOM, Irvin D. Quando Nietzsche chorou. 28 ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2000. p. 11).
3 O
personagem, fictício, é tratado como real, para efeito de análise
psicológica.
4 Pois é noiva
de Albert, “um homem muito distinto que, por causa da morte do pai, saiu de
viagem para colocar os seus negócios em ordem e se candidatar a um cargo muito
importante”, alguém lhe diz (GOETHE, Johann Wolfgang von. Os sofrimentos do jovem Werther. São Paulo: Estação Liberdade,
1999. p. 27). “Albert é um homem honrado e estou praticamente noiva dele”; agora é a própria Charlotte que o confessa (GOETHE, 1999, p. 33).
5 GOETHE, 1999, p. 35.
6 GOETHE, 1999, p. 36.
7 GOETHE,
1999, p. 32. Lançado em 1774, Werther é uma das primeiras obras de
Goethe, e altamente autobiográfica – mesmo que o seu autor tenha tido o cuidado
de trocar os nomes e os lugares mencionados, e acrescentado relatos fictícios,
como o suicídio de Werther, no final.
8 No Werther, “tudo acaba convergindo para
uma declaração sobre o estado do mundo e um sintoma de enfermidade. Onde Goethe
[...] analisou sua própria paixão como histórico de uma doença”. (MEYER, Hans. Goethes Werther nach
zweihundert Jahren. In: Frankfurter Allgemeine
Zeitung [FAZ], 9/11/1974).
9 GOETHE,
1999, p. 66-7.
10 GOETHE,
1999, p. 142.
11 Nas palavras
de Vânia Falcão: “A leitura das cartas que escreveu ao marido John Middleton
Murry, no período de 1913 a 1922, publicadas em 1951, podem complementar
admiravelmente a compreensão dessa escritora e de suas visões do mundo
literário e artístico do qual fez parte.” (FALCÃO, Vânia L. S. de Barros.
Katherine Mansfield. In: MASINA, Léa. [Org.]. Guia de leitura: 100 autores que você precisa ler. Porto Alegre: L&PM, 2009. p. 168. [Col. L&PM Pocket, 636]).
12 MANSFIELD, Katherine. Diários e Cartas. Rio de Janeiro: Revan, 1996. p. 53-4.
13 MANSFIELD, 1996, p. 37-8.
14 MANSFIELD, 1996, p. 56.
15 Elizabeth Robins Pennell (1855-1936). Come and find me é uma sequencia de The magnetic north,
publicado quarto anos antes, em 1904. Atriz, dramaturga, romancista e
sufragista, Elizabeth Robins é uma das precursoras do feminismo.
16 MANSFIELD, 1996, p. 30-1.
17 MANSFIELD, 1996, p. 31.