segunda-feira, 11 de junho de 2012


5.





Do Amor, que é um demônio



Katherine Mansfield foi contemporânea de Lou Salomé, vivendo praticamente no mesmo período. Ela, de 1888 a 1923; Lou, de 1861 a 1937. Katherine nasceu na Nova Zelândia, e quase toda a sua educação foi feita em Londres, onde conviveu com autores como D. H. Lawrence, Virginia Woolf e Aldous Huxley, participando ativamente de tal círculo intelectual. Lou nasceu na Rússia, educou-se na Itália, Alemanha e Zurique, e teve Freud e Nietzsche entre os seus mais destacados mestres. Foi casada com Carl Andreas, mas relacionou-se afetivamente com Paul Rée e René-Marie Rilke, cujas influências – incluindo Freud e Nietzsche – fizeram surgir algumas das suas obras fundamentais, a exemplo de A humanidade da mulher (1899), Reflexões sobre o problema do amor (1900) e O erotismo (1911).
A vida amorosa de Katherine, embora pareça mais movimentada1, é menos glamorosa – pela menor importância dos seus homens. Quem, em tal quesito, até hoje, esteve à altura de Lou? Por qual mulher homens como Rée e Rilke – o mais importante poeta da Alemanha, em sua época – enlouqueceram e, talvez em um momento de lucidez ou de loucura piorada, deram cabo de suas próprias vidas, em resposta a um amor não correspondido? Por ela, Nietzsche amargou horrores... resignado e infeliz. Rilke enlouquece e, no fragmento de um poema, de 1913, pergunta-lhe:

Porque não és tu, Amada,
uma estrela entre as estrelas?
[...]
Que eu, degenerado para a minha morte,
por fim como uma luz me apague
num interstício do teu coração.........2

São grandezas cósmicas e cômicas, que fazem rir o espectador que vê de longe.
Werther3, em companhia de Charlotte S., a mulher amada (e proibida4), contempla-a, respondendo-lhe abobado – após a pergunta: “Não queres também dormir?”–: “Enquanto vir esses teus olhos abertos”, ele diz, “não há perigo de eu fechar os meus.5” E, no dia seguinte: “O sol, a lua e as estrelas podem fazer os seus movimentos como bem entenderem, já não sei mais quando é dia ou noite, e o mundo inteiro se dilui à minha volta.6” Outro dia, de quando dançou com ela, escreve ao amigo Wilhelm: “Eu já não era humano. Ter nos braços a mais adorável das criaturas, voar com ela como o vento, vendo tudo se dissolver ao redor...7” É aquele amor que cega, faz cegar. 
Dois amores dados à grandeza, e ao limite do suportável, e vencidos. Fora de tais limites, ambos partem para os remédios que lhes parecem únicos, contra a grande doença8. Rilke morreu de leucemia, em Valmont, na Suíça, em dezembro de 1926. Segundo alguns, teria se ferido em um espinho de rosa, enquanto estava no jardim do castelo Muzot. Leucêmico, viu a ferida agravar-se ao ponto de, em pouco tempo, ter os braços muito inchados, envenenados. Werther, que já mostrara sinais claros do pensava fazer – “Não vejo nenhuma outra imagem a não ser a dela e tudo o que vejo no mundo à minha volta, relaciono com ela. [...] Adeus! Não vejo outro fim para esta miséria, a não ser o túmulo” (Carta a Wilhelm; 30 de agosto de 1771)9 –, concretiza o intento em dezembro do mesmo ano, deixando uma enorme carta à amada. Um trecho:

Que importa que Albert seja o seu marido? Marido! Seria apenas neste mundo... e neste mundo seria um pecado amá-la, querer arrancá-la dos braços dele? Pecado? Está bem, e vou punir-me por isso; saboreei esse pecado em toda a sua volúpia celestial, o meu coração sorveu a força e o bálsamo da vida. Desde esse momento você é minha! Minha, ó Lotte! Vou na frente! Vou ter com o meu Pai, com o seu pai. Quero me queixar com ele e, até você chegar, ele irá me consolar, voarei ao seu encontro para agarrá-la e ficarei ao seu lado na presença do infinito, num eterno abraço.10
     
Um homem real, desiludido e angustiado; um personagem de ficção, atormentado, decidido e obstinado. O amor romântico é uma coisa perigosa, aos homes (Werther, Romeu, Tristão, Rée, outros) e às mulheres. Para elas, se não traz a morte física, por seus infortúnios muito naturais, traz um tipo de morte social – como se mostrará.
Nas cartas e diários de Katherine – e principalmente: porque é a realidade da sua vida, e não uma novela, obra de ficção11 –, o desejo de autonomia, numa época em que o feminismo ainda estava por nascer, aproxima-a de Lou. No final da carta de 23 de março de 1915, endereçado ao marido J. M. Murry, depois de haver largado o amante (Francis Carco), com que estivera por um tempo, Katherine afirma:

Não sou mais uma menina – sou uma mulher. Eu quero coisas. Será que algum dia as terei? Escrever a manhã inteira, almoçar rapidamente, voltar a escrever à tarde e então jantar, fumar um cigarro e depois ficar sozinha de novo, até a hora de dormir – e todo este amor e esta alegria que lutam para escapar – e toda esta vida secando como o leite num seio idoso. Oh, eu quero vida. Quero amigos, gente à minha volta – uma casa. Quero dar e receber.12

Sua condição de mulher (dona de casa) e de escritora, às vezes entra em choque; como aparece noutra carta enviada ao marido, no verão de 1913, respondendo às suas reclamações:

Eu sou mesmo uma tirana, Jack querido! Ou você diz isso para me provocar? Acho que sou uma administradora ruim; e a casa parece tomar tanto tempo se não for cuidada com algum método... Quando tenho de limpar o dobro de vezes, ou de lavar coisas desnecessárias, sinto horrível impaciência e desejo de estar escrevendo. Tantas vezes nesta semana ouvi você e Gordon conversando, enquanto eu lavava louça! Bem, alguém tem que lavar a louça e preparar a comida. Do contrário, “não há nada nesta casa para se comer a não ser ovos”. Sim, eu odeio, odeio, odeio fazer essas coisas, que você espera de sua mulher, da mesma maneira como os outros homens aceitam. [...] Estou me detestando, hoje. Detesto esta mulher que ‘cuida’ de você, corre de um lado para outro batendo portas, entornando água – toda desarrumada, com a blusa para fora e as unhas sujas.13
    
Não é estranho quando, em seu Diário, nas anotações sobre um domingo em Paris (16 de maio de 1915), depois de haver passado por algumas relações amorosas e experimentado um pouco da tão sonhada liberdade, ela anote: “A vida com as outras pessoas me parece um borrão, uma mancha: é o que acontece quando estou com J. [O marido]. Quando estou sozinha, acho tudo maravilhoso: a vida em todos os seus detalhes, a vida.14” Antes disso, ainda em maio de 1908, e depois da leitura que fizera do livro de Elisabeth Robins, Come and find me (Venha e me encontre)15, lançado nesse mesmo ano, ela faz anotações sobre a emancipação feminina:

Sinto que agora realmente posso imaginar do que as mulheres serão capazes, no futuro. Até agora não tiveram oportunidade. Falar de nossos dias iluminados, de nosso país emancipado – pura tolice! Estamos firmemente presas a grilhões de escravidão que nós mesmas modelamos. Sim, agora percebo que nós os fizemos e temos de tirá-los.16

O amor romântico, até então, é uma armadilha contra a liberdade das mulheres – aos lhes conceder filhos e a responsabilidade de criá-los –, por mantê-las presas a uma vida doméstica, roubando-lhes o tempo, a ação refletida e a possibilidade de emancipação. Era preciso – Katherine soube-o cedo – não amar tal amor, pelos seus resultados. A “nova mulher” haveria de saber lidar contra ele, que é parte dos “grilhões de escravidão que nós mesmas modelamos”. O ideal do amor romântico, assomado a algumas doutrinas políticas e religiosas, com sua moral masculino-milenar, era mesmo muito útil à manutenção de tal domínio de um sexo (o masculino) sobre o outro. Tais ajustes, em conluio, formavam “a doutrina desesperadamente insípida, segundo a qual o amor é a única coisa no mundo que é ensinada e posta dentro das mulheres, de geração em geração, e que nos detém de um modo tão cruel.17” Assim, ela conclui de modo panfletário e militante: “Devemos nos livrar desse demônio – e então virá a oportunidade de felicidade e libertação.”18





1 Pelo número de amantes que teve, e pelas idas e vindas com o marido, o escritor inglês e crítico de literatura John Middleton Murry (1889-1957). Murry publicou mais de 60 livros, inúmeros ensaios e resenhas sobre literatura, questões sociais, política e religião. Depois da morte de Mansfield, Murry editou toda a sua obra.
2 De dois fragmentos, em: RILKE, Rainer Maria; ANDREAS-SALOMÉ, Lou. Correspondência. Rio de Janeiro: Editora Anima Produções Artísticas e Culturais Ltda. [s.d.]. p. 63-4. No famoso livro de Irvin D. Yalom, Lou é apresentada qual uma deusa: “Ali estava ela! [...] Aquela bela mulher, alta e esguia, envolta num casco de peles, marchando altivamente em sua direção. [...] Era uma mulher de extraordinária beleza: testa altiva, queixo forte e bem esculpido, olhos azuis brilhantes, lábios cheios e sensuais, e seus cabelos louro-prateados, negligentemente penteados, se reuniam em um coque alto, expondo-lhe as orelhas e o pescoço longo e gracioso.” (YALOM, Irvin D. Quando Nietzsche chorou. 28 ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2000. p. 11).  
3 O personagem, fictício, é tratado como real, para efeito de análise psicológica. 
4 Pois é noiva de Albert, “um homem muito distinto que, por causa da morte do pai, saiu de viagem para colocar os seus negócios em ordem e se candidatar a um cargo muito importante”, alguém lhe diz (GOETHE, Johann Wolfgang von. Os sofrimentos do jovem Werther. São Paulo: Estação Liberdade, 1999. p. 27). “Albert é um homem honrado e estou praticamente noiva dele”; agora é a própria Charlotte que o confessa (GOETHE, 1999, p. 33).
5 GOETHE, 1999, p. 35.
6 GOETHE, 1999, p. 36.
7 GOETHE, 1999, p. 32. Lançado em 1774, Werther é uma das primeiras obras de Goethe, e altamente autobiográfica – mesmo que o seu autor tenha tido o cuidado de trocar os nomes e os lugares mencionados, e acrescentado relatos fictícios, como o suicídio de Werther, no final.
8 No Werther, “tudo acaba convergindo para uma declaração sobre o estado do mundo e um sintoma de enfermidade. Onde Goethe [...] analisou sua própria paixão como histórico de uma doença”. (MEYER, Hans. Goethes Werther nach zweihundert Jahren. In: Frankfurter Allgemeine Zeitung [FAZ], 9/11/1974).
9 GOETHE, 1999, p. 66-7.
10 GOETHE, 1999, p. 142.
11 Nas palavras de Vânia Falcão: “A leitura das cartas que escreveu ao marido John Middleton Murry, no período de 1913 a 1922, publicadas em 1951, podem complementar admiravelmente a compreensão dessa escritora e de suas visões do mundo literário e artístico do qual fez parte.” (FALCÃO, Vânia L. S. de Barros. Katherine Mansfield. In: MASINA, Léa. [Org.]. Guia de leitura: 100 autores que você precisa ler. Porto Alegre: L&PM, 2009. p. 168. [Col. L&PM Pocket, 636]).
12 MANSFIELD, Katherine. Diários e Cartas. Rio de Janeiro: Revan, 1996. p. 53-4.
13 MANSFIELD, 1996, p. 37-8.
14 MANSFIELD, 1996, p. 56.
15 Elizabeth Robins Pennell (1855-1936). Come and find me é uma sequencia de The magnetic north, publicado quarto anos antes, em 1904. Atriz, dramaturga, romancista e sufragista, Elizabeth Robins é uma das precursoras do feminismo.
16 MANSFIELD, 1996, p. 30-1.
17 MANSFIELD, 1996, p. 31.
18 MANSFIELD, 1996, p. 31.


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