sexta-feira, 30 de novembro de 2012




24.






De uma hermenêutica para o sublime




A alma da vastíssima literatura romancesca que entope livrarias, sebos e bancas de revistas – com os acessíveis pocket books e brochuras1 –, está na mesma linha vertical da ortodoxia teológica, que consigna a veracidade do amor à imediata experiência do numinoso, na subjetividade natural do sentimento de sublime, preso à ideia platônico-cristã de um Sumo Bem – mesmo que isso somente se dê no nível do inconsciente. O Summum Bonum seria a finalidade e a fonte originária de onde surgem e por onde se mensuram todos os corações perfeitos, e os bons pensamentos, e os nobres sentimentos das almas piedosas, etc.
“Nós o amamos porque ele nos amou primeiro”, é são João evangelista quem diz2. E Sócrates, repetindo o que teria escutado de Diotima de Mantinéia:

[...] Quando então alguém, subindo a partir do que aqui é belo, através do correto amor aos rapazes, começa a contemplar aquele belo, quase que estaria a atingir o ponto final. Eis, com efeito, em que consiste o proceder corretamente nos caminhos do amor ou por outro se deixar conduzir: em começar do que aqui é belo e, em vista daquele belo, subir sempre, como que se servindo de degraus, de um só para dois e de dois para todos os corpos belos, e dos belos corpos para os belos ofícios, e dos belos ofícios para as belas ciências, até que das ciências acabe naquela ciência que nada mais é senão daquele próprio belo, e conheça enfim o que em si mesmo é belo.3

Justino de Roma, depois de procurar um mestre pitagórico e ser rejeitado, procura outro, um platônico. E logo “julgava ter-me tornado um sábio”, ele diz, “um sábio em tão pouco tempo, e totalmente esperava em breve ver o próprio Deus – pois tal é o fim da filosofia platônica.4” O “belo em si mesmo”, na fala de Sócrates, transforma-se, com Justino, no próprio Deus, Summum Bonum. Foi assim que a “filosofia cristã” se apoderou da filosofia pagã (e da teologia judaica) e recriou o mundo, rebaixando o Eros grego em favor do seu ágape: “Quem ama é nascido de Deus e conhece a Deus. Aquele que não ama não conhece a Deus, porque Deus é amor.5” É João, novamente. E o amor, aí, somente é perfeito se estiver ligado ao ágape, que é perfeito, e medido por ele.
Inventamos o sublime porque não desejamos a realidade tal qual é ela: nua, fria, insensível, desesperada e... mortal. Sim, basta que Eu morra para que a realidade de tudo, inclusive de Deus e do seu Espírito, despareça comigo. “Sei que sem mim Deus não pode viver um instante sequer / Se eu for aniquilado, também o seu espírito tem de necessariamente extinguir-se.6 A sensação da finitude temporal nos apavora e, conhecendo a não-eternidade deste mundo, inventamos a eternidade de um mundo extramundano, com um novo destino após o nosso tempo no mundo de agora. No tempo passado, o que morre são as consciências da realidade, individuais ou coletivas... históricas. E o mundo continuará, sem mim. E daí a permanente mudança de valores morais, de preferências estéticas, de ideias e ideologias: políticas, religiosas, etc. Nada é estanque, no mundo.
Para sobreviver ao espírito do tempo (Zeitgeist) e para fortalecerem-se diante das ameaças atrativas das minorias em oposições, em transformações, religiões e partidos políticos, dentre outros grupos ideológico-sociais, carecem da adesão dos diferentes, dos avulsos, dos contrários ou indiferentes. Para tanto, prometem em suas confissões de fé ou estatutos: felicidade, algum tipo de riqueza, algum tipo de liberdade e, naturalmente, a satisfação do espírito... com um objetivo dado à sua vida – imergido o indivíduo na coletividade dos que professam o mesmo ânimo, respirando (conspiram) os mesmos ares de fé na verdade da verdade do que acreditam.
O método teológico – aqui referido enquanto “ponte para o sublime” e, naturalmente, para a vaga noção romântico-idealista fundamental –, funciona através de saltos: da fé, pela fé (os absurdos escandalosos, paradoxais)7, e cosmológico/ontológicos (como na grande crítica de Kant)8. O que a hermenêutica teológica aplicada à matéria de bibliologia, ensinada em academias teológicas, prova, por exemplo? Que a Bíblia é um livro antigo escrito por muitas mãos, em várias épocas, com estilos variados e em línguas diferentes; que alguns dos seus relatos têm fundamentação histórica comprovada; que alguns dos seus personagens foram pessoas que realmente viveram e sentiram o peso deste mundo, como qualquer humano comum, etc. É quando parte daí, do puramente horizontal – exigindo fé na fé que esses homens e mulheres antigos tinham, conforme surgem no antigo livro –, que ocorre o salto: na verticalidade que a fé propõe, cortando a linha que prende a pipa ao chão e ao seu dono. Quanto ao seu voo, porém, quem sabe ao certo para onde os ventos a levará? A hermenêutica bíblica, na analogia, é o vento.
Na palestra de Vattimo, A tentação do realismo, uma frase de Nietzsche abre, de cara, o primeiro parágrafo, e depois reaparece por toda parte: “Não existem fatos, somente interpretações; e esta também é uma interpretação.9” E o próprio Vattimo revela a sua intenção com o uso que faz da referida: “Não estou [...] pretendendo que a hermenêutica, sintetizada na frase de Nietzsche, seja a descrição mais adequada da cultura tardo-moderna”, ele diz. “Defendo, pelo contrário, que ela é a interpretação mais razoável.10” Acontece que toda interpretação parte de um universo particular, aquele ao qual é preso o seu intérprete: língua, história, geografia, existencialidade, situação psicológica, et cetera. É nesse sentido que “o argumento lógico contra o cético nunca convenceu alguém a abandonar as próprias ‘convicções’ céticas.11” Sim, de fato. Nas palavras de um desses, Paul Valéry:

Repugna-me a todos que querem me convencer – Um partido, uma religião em procura adeptos, que desejam o nome e a propagação, são cheios (para mim) de ignomínia. Uma doutrina deve, para ser nobre, em nada ceder ao desejo de ser compartilhada. Que ela seja como ela é, ou que ela não seja.
Eu não desejo fazer aos outros o que eu não quero que me façam.
[...] – Ter razão. Desejo de ter razão – Propagar. Desejar convencer
Isso conduz aos milagres... à “publicidade”.12

E:

“Toda emoção, todo sentimento é uma marca de defeito de adaptação.13” Ou: “Toda a vida afetiva não passa de besteira e circulo vicioso.14” Noutra parte, a sentença “Quem faz o bem por dever o faz mal, e o faz sem arte”15, depõe tanto contra a ética autônoma kantiana quanto a heterônoma, da filosofia/teologia Clássico-Antiga. Valéry chuta conceitos e explode consensos, anunciando que “Tudo o que é humano me é estranho.16” Mas, ainda assim, ah!, eis aí o homem; o homem que estranha.
Com Valéry, e no que toca à certeza das palavras que apontam para uma realidade final e absoluta, mergulhamos em um fosso conceitual, sem escadas ou fendas por onde possamos nos animar à escalada, em direção a alguma luz anunciada ou que se anuncie. As palavras, como o mundo, o tempo e a nossa compreensão de mundo e tempo, estão em movimento.
O sentimento imediato, ante o objeto – real ou imaginário – fenomenologicamente dado, é a única realidade que possuo, e sem outras garantias que não as sensuais. Por isso, no final, ainda é o Eu quem fala e aparece, também alterado: amando, odiando, desejando isso ou aquilo; ora inventando deuses e afecções sublimadas, ora destruindo velhos ídolos à base de marteladas. De um jeito ou de outro, é a realidade da vida o que se vê, aí, lançada e desnuda na casa cheia de convivas famintos, vorazes. No mais, é o escape delirante (através da arte, da religião, da esperança na esperança, da fé na fé, etc.) contra o concreto... Como na frase que vi em algum lugar: Acreditamos na utopia, porque a realidade nos parece inacreditável.
Inventamos o cotidiano e, com ele, impressos no papel ou em nosso inconsciente, os romances bons e baratos e preciosos – as doses diárias do ópio que nos mantém sedados –, contra a realidade da vida, que é dor, deserto e desolação. O Caeiro de Fernando Pessoa dizia que “sentir é estar distraído”. Sim, é; e amar, também.





1 Agora mesmo (novembro de 2011), enquanto escrevo, um livro de Natalie Anderson, Brilho no olhar, compõe o volume 51 da Coleção Modern Sexy, da série Maverick Millionaires, da editora Harlequin. Na apresentação editorial: “Ela não deveria se aproximar de seu chefe mal-humorado… Os opostos se atraem? Rude e rebelde, Lorenzo Hall é um homem que construiu a própria fortuna começando do nada. E agora ele tem um novo objetivo na vida: descobrir se sua assistente pessoal é tão certinha e recatada quanto parece. É claro que Sophy deveria fazer de tudo para não deixá-lo se aproximar. Mas com aquele corpo e aquele brilho no olhar, seria muito difícil não ceder à tentação…” Esse é tom de tais romances – e sem desmerecê-los, pelo fato de serem populares –, com suas naturais variações. A questão, como eu a coloco aqui, também não poupa os romances clássicos, de capa-dura, vendidos em lojas chiques e livrarias de shoppings. Nas bancas, além das brochuras da série Maverick Millionaires, as séries Bianca, Julia, Super JuliaSabrina – que apareceram no início dos anos sessenta – e Best-Sellers, sempre alcançaram tiragens enormes, e até hoje, quando os novos títulos e séries, seguindo o nicho sempre renovado, surgem.
2 1 João, 4, 19. In: A Bíblia Sagrada: Antigo e Novo Testamento. Deerfield, EUA: Vida, 1993. Edição Contemporânea.
3 PLATÃO. O banquete, 211c. In: _____. Diálogos. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Col. Os Pensadores).
4 ROMA, Justino de. Diálogo com Trifão, 112; P.G. 6, 460-66. GOMES, C. Folch. Antologia dos Santos Padres: páginas seletas dos antigos escritores eclesiásticos. 2. ed. São Paulo: Edições Paulinas, 1979. p. 70.
5 1 João, 4, 7b-8.
6 Citado em: SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. São Paulo: Editora UNESP, 2005. p. 190. (II, § 25).
7 Aqui, novamente, volto a Kierkegaad, na leitura de Camus: “O cristianismo é o escândalo, e o que Kierkegaard pede com simplicidade é o terceiro sacrifício exigido por Inácio de Loyola, aquele com o qual Deus mais se delicia: ‘o sacrifício do Intelecto.’ Esse efeito do ‘salto’ é bizarro, mas não deve nos surpreender mais. ele faz do absurdo o critério do outro mundo, enquanto não passa de um resíduo da experiência deste mundo. ‘Em seu fracasso’, diz Kierkegaard, “o crente encontra [como em Abraão] o seu triunfo’.” (CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Rio de Janeiro: Edições BestBolso, 2010. p. 47). Paradoxo porque o movimento da fé, uma vez compreendido pelo intelecto, não pode mais efetivar o seu sacrifício: “Não posso realizar o movimento da fé, não posso cerrar os olhos e lançar-me de cabeça, pleno de confiança, no absurdo; tal coisa é impossível, mas não me vanglorio por isso.” (KIERKEGAARD, Sören. Temor e tremor. Lisboa: Guimarães Editores, 1990. p. 47).
8 Os argumentos “cosmológicos”, reduzidos a ontológicos, segundo Kant (1724-1804) – na linha dos de Anselmo de Cantuária (c. 1033/1034-1109) e Tomás de Aquino (c. 1225-1274), entre os autores principais –, são argumentos do tipo a priori, e são falhos. Uma prova cosmológica, segundo Kant, “formula-se assim: se algo existe, deve existir, também, um ser absolutamente necessário. Ora, pelo menos existo eu próprio; logo, existe um ser absolutamente necessário... Mas a prova prossegue e conclui que o ser necessário só pode ser determinado de uma única maneira, isto é, somente mediante um dos predicados, de entre todos os predicados opostos possíveis, e, por conseguinte, deverá ser integralmente determinada pelo seu conceito. Ora, só pode haver um único conceito de coisa que determine a priori esta coisa, ou seja, o conceito de ens realissimum; portanto o conceito de ser soberanamente real é o único pelo qual pode ser pensado um ser necessário, isto é, existe necessariamente um Ser supremo.” Kant continua: “Neste argumento cosmológico reúnem-se tantos princípios sofísticos que, a razão especulativa, parece, aqui, ter desenvolvido a sua arte dialética, a fim de produzir a máxima aparência transcendental possível... Para bem, ao assegurar o seu fundamento, a prova estriba-se na experiência, dando assim a impressão de se distinguir da prova ontológica, que deposita toda a confiança em conceitos puros a priori. Mas a prova cosmológica só serve desta experiência para dar um único passo, a saber, para se elevar à existência de um ser necessário em geral. O fundamento empírico da prova nada nos pode ensinar acerca dos atributos deste ser; então a razão afasta-se dele, inteiramente, e por detrás de simples conceitos investiga os atributos que um ser absolutamente necessário em geral deve possuir... Mas, é claro, pressupõe-se, aqui, que um ser dotado da realidade suprema satisfaz plenamente o conceito de necessidade absoluta na existência... eis uma proposição sustentada pelo argumento ontológico, que assim se admite e dá por fundamento ao argumento cosmológico, o que se pretendera evitar.” (KANT, Immanuel. Kritik der reinen Vernunft. Leipzig: Felix Meiner, 1926. p. 576-78).
9 VATTIMO, Gianni. A tentação do realismo. Rio de Janeiro: Lacerda Ed.: Instituto Italiano di Cultura, 2001. p. 17. (Col. Conferências Italianas, 1).
10 VATTIMO, 2001, p. 28.
11 VATTIMO, 2001, p. 21. Ou: “Como tentei mostrar em Oltre I’interpretazione, a hermenêutica se configura como puro e perigoso relativismo só se não se leva bastante a sério as próprias implicações niilistas. Posto que a ‘verdade da hermenêutica’ como teoria alternativa a outras (e antes de tudo ao conceito de verdade como ‘reflexo’ dos ‘fatos’) não pode se legitimar pretendendo valer como uma descrição adequada de um estado de coisas metafisicamente estabelecido (‘não existem fatos, somente interpretações’) mas deve reconhecer-se também como uma interpretação, a sua única possibilidade é a de argumentar-se como tal, quer dizer, como uma ‘descrição’ interna ou leitura sui generis da condição histórica na qual é lançada e que escolhe orientar numa direção determinada, pela qual não existem outros critérios a não ser os que herda, interpretando, desta mesma proveniência.” (VATTIMO, 2001, p. 29-30). 
12 VALÉRY, Paul. Au sujet du ‘Cimetière Marin’. In: _____. Œuvres. Paris: Bibliothèque de la Pléiade / Gallimard, 1973. p. 132-133. v. 1.
13 VALÉRY, 1997, p. 354. v. 2.
14 VALÉRY, 1997, p. 382. v. 2.
15 VALÉRY, 1973, p. 620. v. 1.
16 VALÉRY, 1997, p. 320. v. 2.


quarta-feira, 14 de novembro de 2012


23.





Da sublimação e da desconfiança



O oposto natural de tudo o que é sublimado é a desconfiança.
Na língua grega e na retórica da Antiguidade, paixão (“sofrimento”) e paixões (apelos sensoriaisvontades”, etc.) são designadas por uma só palavra: pathe. Ambas apontam para a convivência e o confronto de um texto (escrito) com a realidade do que ele pretende expor (a realidade humana), caracterizada especialmente na categoria subjetivo-corporal. O que isso significa? Que o sofrimento e a emoção somente existem no nível corporal, individual, mesmo quando expressos através de um discurso oral ou um texto escrito – um romance, por exemploAinda na categoria subjetivo-corporal, o mesmo vale para os sentimentos de fé, de esperança e de amor – as três virtudes teologais da Igreja Católica. E por falar em Igreja Católica, um dos seus místicos mais famosos, Angelus Silesius1, escreveu: “Sei que sem mim Deus não pode viver um instante sequer / Se eu for aniquilado, também o seu espírito tem de necessariamente extinguir-se.2” Outro místico católico, Heinrich Seuse3, vai além, dizendo que “a alma humana cantará no céu um hino que irá soar melhor do que o de todos os anjos, porque os anjos não sabem o que é sofrimento.4” Em Silesius, não há nada percebido ou desejado sem o Eu que percebe, e deseja. Que me importa a fé, a esperança e o amor, se Eu não sou?, que me importa Deus ou o seu Espírito? Acima de tudo e para tudo, Eu – ao menos para, daí, desejar, ter esperanças, amar, sofrer, et cetera. Em Seuse, a experiência da pathe humana (em qualquer que seja a sua designação), no céu – e aí aparecem as três virtudes teologais, nas entrelinhas –, torna o Eu individual, salvo, muito mais bem-aventurado do que os anjos, que não têm a pathe. A perspectiva mística de ambos tem a verticalidade que se eleva a partir do horizonte humano, daquela esperança na fé em Deus, fincada no horizonte do Eu – como a pipa que, no céu, está presa àquele que é, na terra. Em Seuse, o Eu já “está em outro plano”, voado do chão, sem linha, sem horizonte e sem verticalidades. Há, porém, ainda, em ambos, o idealismo romântico.
Enquanto categoria hermenêutica, a paixão tem essa relação muito direta com a história humana. Dessa paixão, inapelavelmente, é que surge a História – a escrita, em que se incluem todos os gêneros (literários), concebidos ou que se possa conceber. Quando Marx e Engels, na primeira frase do primeiro parágrafo do Manifesto do Partido Comunista, afirmam que “a história de toda sociedade até hoje é a história de lutas de classes”5, é da paixão que tratam; paixão que mostra, por trás de tudo, a luta pela sobrevivência, e a Vontade de vida. Não há História sem o Eu “historial”: a consciência individual de si, sobre si, dentro ou fora da coletividade humana. Sim, pois o que não é humano não tem história, ou existencialidade, ou paixão – no sentido romântico do termo, e no que toca às suas relações temporais com o Outro.6
No Eu historial é que habita a fala do Numinoso7, sobre ele, anteposto na experiência imediata das consciências individuais e da antecipação de mim-mesmo – pois o pensamento ou a experiência com o Numinoso somente pode ser a partir de mim-mesmo. Aquele autor antes do artista e sua arte, representação falseada do Real, se Platão não tem razão8, aparece invertido. Caio na tentação do realismo9, defendendo a tal inversão, na afirmação imodesta (mas não festiva) de que mesmo o antinatural (ou metafísico) é obra da naturalidade, e que a cultura é fabricação social, substrato psicológico. Como nos poemas homéricos, também o romance escrito é arte de um artista, figurando ou pretendendo figurar e expor a realidade humana. E se isso distancia o seu autor em três graus do Real10, é que uma interpretação realista aí foi privilegiada... o que não quer dizer, sob qualquer hipótese, que ela seja real além da sua própria realidade, isto é: o seu si-mesma, no fenômeno humano.
À pergunta: “Que fazer com o Ego?”, Jacob Needleman responde:

Obviamente, se procuramos o crescimento interior, devemos encarar a questão do que fazer com as emoções do ego. E a resposta que nos chega de todos os grandes ensinamentos interiores é que existe algo dentro de nós que pode se libertar dessas emoções. Existe uma capacidade de mente que pode fugir delas, uma capacidade da consciência de existir independentemente das emoções egoístas.11

É evidente que Needleman, aí, pensa em apenas um sentido para o que chama de “ego”, e as emoções ligadas a ele são as piores. Needleman se mantém na tradição, e no equívoco da tradição. A sua noção de “libertação” é, na verdade, um duplo equívoco: primeiro porque ela não é mais que um desvio meditativo, uma tentativa de fuga daquela “realidade humana” ou “emoção existente no nível corporal e individual” de que, a pouco, me referi; é como se alguém tentasse fugir de uma dor do futuro, através de algum exercício doloroso, antecipando a dor real contra aquela outra, suposta. Depois – como também encontrado na fenomenologia ontológica do budismo12 –, o escapar do Eu, por alguma extinção consciente (?) da Vontade de vida (as paixões, as pulsões), somente é possível mediante o não-Eu, ou a não-consciência imediata de ser. Mas, ora!, onde não há consciência, também não há o Eu. O livro de Needleman, Sobre o amor (A little book on love), de 1996, não tem muito a dizer sobre o seu tema, realmente; não além do que já foi dito por todos os autores românticos e religiosos de todos os tempos, gripados de Platão, afogados no Romantismo do século XVIII. E não é nada espantoso que Needleman termine o seu livro com uma citação do apóstolo Paulo: “Podemos então dizer, sem qualquer traço de sentimentalismo ou pretensão de pensamento, que o amor é mais forte do que a morte. Nas palavras de São Paulo: ‘O amor permanece’.13” Jacob Needleman, dispensável.
Para Max Scheler, porém, o amor é uma maneira original e imediata do comportamento afetivo-emocional, por um lado; por outro, está relacionado per se com a individualidade da qual falamos. O amor, ele diz, é “um compreensivo ir ao encontro da outra individualidade, de um ser tão diferente do eu que vai ao encontro, como de uma outra e diferente [individualidade].14” Assim, dando e recebendo individualidades, concedendo liberdade e autonomia, o amor é uma “afirmação dolorosa”, pois está voltado “para um cerne individual das coisas.15” E como não seria? Ele te amava e, com os olhos brilhando e emocionado, dizia que não saberia mais viver sem você. Hoje, porém, passa ao seu lado, feliz, sorrindo abraçado à outra, sem notar a sua miserável existência... Ainda é amor. O amor, nisso tudo, não é conhecimento individual, localizado em um indivíduo, mas anúncio do anteposto ao conhecer, ao acontecer – enquanto realização da manifestação da Vontade e do seu valor mais alto, a partir de um valor dado. “Amor”, qualquer que seja o nome que você utilize para ele, é, antes de tudo, e principalmente, manifestação da Vontade.16
Essa leitura antimetafísica do amor romântico soará, sim, estranha – pois está fora da opinião dominante; principalmente a do “Mercado Romântico”.
Para Klaus Berger, “o estranho é o oprimido que não se quer ver. O estranho está fora da opinião dominante e fora do alcance da visão dos dominantes. Ele é, em todo caso, individualidade afastada.17” Em um trecho de “O movimento romântico”, estranho mesmo é o comportamento de ovelha dos amantes, “consumidores” da ração kitsch18 ofertada pelo Mercado da Cultura romântica (dominante), no pastiche do romantismo:19

O bom senso é uma coisa das mais incomuns...
Casar por amor é invenção de dois séculos, só.
O “romance ideal” serve bem ao Mercado
Pra vender livros, filmes e novelas,
Pra fazer canções como esta.20
               
Quero, por fim, manter esta recomendação: tenha medo, muito medo daquele ou daquela que diz “eu te amo”. Encare-os com desconfiança, sabendo: tanto mais amor “ao outro” – você, no caso –, tanto mais amor a “si mesmo”, agora ele, ela. E se o amante insistir, desafine-lhe o coro feliz com a pergunta final e infalível: por quê?
                
                




1 Pseudônimo de Johannes Scheffler (1624-1667), poeta germânico nascido em Breslau, na Polônia – onde também faleceu. Místico cristão, Silesius também foi filósofo, médico e jurista.
2 Citado em: SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. São Paulo: Editora UNESP, 2005. p. 190. (II, § 25).   
3 Heinrich Seuse (c. 1295/1297-1366), ou Heinrich von Berg, foi um místico medieval, frade e teólogo dominicano. Estudou a obra de Mestre Eckhart e a teologia negativa de Dionísio – Pseudo-Areaopagita. Com base nos ensinamentos de Eckhart, escreveu dois tratados teológico-místicos: Buch der Wahrheit (Livro da Verdade) e Büchlein der ewigen Weisheit (Livro da sabedoria Eterna).  
4 Citado em: SÖLLE, D. Die Hinreise: zur religiösen erfahrung: text und überlegungen. Stuttgard: Kreuz, 1975. p. 181.
5 ENGELS, Friedrich; MARX, Karl. Manifesto do Partido Comunista. 10 ed. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 66. [Col. Clássicos do Pensamento Político, 24]). Em uma nota de Engels à edição inglesa de 1888, do Manifesto, consta que a referência à história, aí, é a “toda a história escrita”, que trata da luta de classes contra classes – camponeses contra burgueses, por exemplo –, na intenção de melhorias econômico-sociais, etc. No Germinal (produzido no final do século XIX, em 1881, e às vezes chamado – criticamente – de um conto da “civilização”), Émile Zola faz um relato do que foi e como foi a greve dos mineiros do norte da França, ocorrida no final do século XIX, motivada pelas precárias condições de trabalho às quais os mineiros estavam submetidos, e animada pela ideologia socialista da época. A fim de obter um relato fidedigno, Zola fez inúmeras pesquisas, transitando nas vilas e nas minas de carvão, conversando com mineiros e com a pequena burguesia local. Germinal, por isso, é um dos melhores retratos do que a citação de Engels e Marx quer dizer. (Cf. ZOLA, Émile. Germinal. São Paulo: Cia. das Letras, 2000).
6 “A existencialidade ou transcendência – na terminologia heideggeriana – é constituída pelos atos de apropriação das coisas do mundo, por parte de cada indivíduo. O termo ‘existencialidade’ não é empregado no mesmo sentido em que se diz que uma pedra ou a Lua ‘existem’, mas como antecipação de suas próprias possibilidades.” (CHAUÍ, Marilena de Souza. Vida e obra. In: HEIDEGGER, Martin. Conferências e escritos filosóficos. São Paulo: Abril Cultural, 2006. p. 7. [Col. Os Pensadores]). E, nas palavras do próprio Heidegger: “O que é primeiro filosoficamente não é uma teoria da conceituação da história, nem a teoria do conhecimento histórico e nem a epistemologia do acontecer histórico enquanto objeto da ciência histórica, mas sim a interpretação daquele ente propriamente histórico em sua historicidade [o homem].” (HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes, 2002. p. 37 [§ 3, Introdução]).
7 Para usar a terminologia de Rudolf Otto (OTTO, Rudolf. O Sagrado: os aspectos irracionais na noção do divino e sua relação com o racional. São Leopoldo: Sinodal/EST; Petrópolis: Vozes, 2007), relativo ao Sagrado e à sua manifestação na experiência religiosa, que ilustra bem essa categoria do “salto ontológico”, ou aquela transcendentalidade tão presente na maioria das obras dos autores religiosos e/ou romântico-idealistas.   
8 Referência ao Livro X de A república, de Platão. Especialmente na parte em que Sócrates afirma o grande artífice, que será chamado de demiurgo pelos neoplatônicos, e, na tradição cristã, Logos – o próprio Cristo-Deus criador. “Efetivamente”, Sócrates diz, “esse artífice não só é capaz de executar todos os objetos, como também modela todas as plantas e fabrica todos os seres animados, incluindo a si mesmo, e, além disso, faz a terra, o céu, os deuses e tudo quanto existe no céu e no Hades, debaixo da terra.” (PLATÃO, A república, 596 a-e; PLATÃO. A república. 9 ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001).
9 Faço uma referência direta ao livrinho de Gianni Vattimo, em que a sua “inspiração religiosa-política” inspira sua filosofia, mantendo-o no nível do realismo. Cf. VATTIMO, Gianni. A tentação do realismo. Rio de Janeiro: Lacerda Ed.: Instituto Italiano di Cultura, 2001. (Col. Conferências Italianas, 1).
10 À maneira grega de contar os extremos, sem a literalidade numérica.
11 NEEDLEMAN, Jacob. Sobre o amor. Rio de Janeiro: Ediouro, 1998. p. 56-7.
12 “A quarta Verdade Santa enumera as diferentes etapas da ‘Nobre Via das oito Virtudes’. [...] Estamos assente que o mundo fenomenal [no sentido platônico-husserliano] é irreal, e que é precisamente na medida em que o homem se apercebe desta vacuidade que ele se aproxima da libertação, é óbvio que é a ‘meditação pura’ (dhyâna) que constitui a suprema virtude do budismo.” (ARVON, Henry. O budismo. Lisboa: Publicações Europa-América, [s.d.]. p. 46-7. [Col. Saber, 165]). É de se perguntar, ao budista radical: mas, afinal, o que é o Buda?, senão a “consciência de Buda”.
13 NEEDLEMAN, 1998. p. 156.
14 SCHELER, Max. Wesen und der sympathie. 6. ed. Bern/München: Francke Verlag, 1973. p. 109. (Schriften, VII).
15 SCHELER, 1973, p. 152.
16 PLATE, B. Die erfahrung, die zeit uns das mit-dasein. München: Bertelsmann, 1966. p. 163s.
17 BERGER, Klaus. Hermenêutica do Novo Testamento. São Leopoldo: Sinodal, 1999. p. 118.
18 No sentido da atitude geral e complacente, na supressão do senso crítico que, aqui, tem a ver com questão da exploração do romantismo enquanto produto.
19 Com referência à insistência de certos “modelos”, presentes no movimento das últimas décadas do século XVIII, na Europa, e que durou quase todo o século XX – principalmente por sua “visão romântica do mundo”, ao contrário das propostas do racionalismo da Ilustração, etc.
20 “O movimento romântico” é título de uma música que fiz para o álbum “Universal Park” (Independente, 2009), da banda Madalena Moog. É também o nome de um livro do suíço Alain de Botton – que foi de onde retirei o título, embora não reproduza as ideias da referida obra.




terça-feira, 6 de novembro de 2012


22.






Da apelação estética, do sexo e da moral religiosa    


               

Se Darwin havia provocado a ortodoxia eclesiástica e sacudido a cabeça de cientistas e intelectuais de seu tempo, com a publicação do Sobre a origem das espécies por meio da seleção natural ou a Preservação de raças favorecidas na luta pela vida, em 1859, “O livro que abalou o mundo”, como se referiam a ele, um golpe ainda mais profundo e certeiro veio em 1871, com a publicação de A descendência do homem e seleção em relação ao sexo1. Aí, nas palavras de André Mesquita, “Darwin finalmente coloca o homem como [apenas] mais um entre os seres vivos sujeitos às mesmas leis evolutivas e tinha só uma origem comum com os outros animais como perdia todas as suas regalias como um ser concebido à imagem e semelhança de um deus.2” O homem, no mundo, era um com ele, nele; e como tudo, no mundo: nada divino, nada diabólico, nada sublime, nada desimportante. N’A origem das espécies, a beleza – como a cauda que o pavão ostenta, e como as cores vivas e brilhantes de certas aves, peixes, frutas, etc. – se não é aviso de perigo ou disfarce protetor, é propaganda da saúde e convite ao coito, na exibição com vistas à preferência, na luta pela sobrevivência do mais apto, do melhor. Tanto mais bela a espécie, tanto mais saudável e apta a gerar espécies cada vez mais belas e saudáveis. Tal movimento faz evidente a Vontade de vida, na linguagem schopenhaureana.3

Podemos compreender, até certo ponto, que haja tanta beleza em toda a natureza porque pode, em grande parte, atribuir-se esta beleza à intervenção da seleção. Esta beleza não concorda sempre com as nossas ideias sobre o belo; basta, para nos convencermos, considerar algumas serpentes venenosas, alguns peixes e morcegos horrendos, com uma abjeta distorção da face humana. A seleção sexual deu brilhantes cores, formas esbeltas e outros ornamentos aos machos e também às fêmeas de muitas aves, borboletas e diversos animais.4
               
E, claro, os homens e as mulheres entre eles.
Pensadores e cientistas renomados, como Francis Bacon, por exemplo, viam a ordem e a beleza da natura como manifestações de um poder extramundano, inteligente, criativo e benevolente – conforme acreditavam estar revelado na Bíblia. O Novum organum de Bacon, publicado em 1620, exerceu grande influência sobre o naturalista inglês John Ray, que foi um seu colega na Royal Society of London for the Improvement of Natural Knowledge. Naquela que é, muito certamente, a mais conhecida e célebre obra de Ray, a Historia Plantarum, de 1686, estão classificadas mais de 18.600 tipos de plantas, algumas apontadas como tendo um ancestral comum. Aí aparece, nas classificações (famílias, sementes, tipos, etc.), a estrutura ordenada das coisas no mundo, conforme Bacon. O sueco Carl von Linné5, pai da taxonomia moderna, porém, foi o naturalista que mais exerceu influência sobre Darwin, com a publicação do seu Systema Naturae, em 1765. Mas também Lineu acreditava na existência de uma ordem divina que regia e regulava tudo no mundo, e no universo. Nenhum organismo escapava ao seu controle e, dele, evidentemente, dependia. Ao desenvolver o seu sistema e classificar os seres vivos, foi na intenção de provar o poder por trás dessa ordem. Era comum, na época, que os cientistas pautassem suas teorias em conformidade com a Bíblia. Por que era assim?
Dada à esmagadora influência de Platão e, depois, Aristóteles sobre as concepções cristãs do mundo, da Patrística à Idade Média, Deus aparecia como criador e mantenedor de tudo. A Ideia platônica, pura e incorruptível, era também eterna como é, sem qualquer “evolução”6; o Primum Mobile aristotélico, fim do movimento a que tudo se dirige, na Scala Naturae, na relação entre os seres vivos, sem espaços vazios na cadeia, e sem ligações diversas interespécies. Um ser inferior, na Scala Naturae, não pode ser o antepassado de outro, superior. Todas as formas são imutáveis e necessárias e, logo, não surgem, evoluem ou podem ser destruídas.7
Os Padres – santa conveniência! – logo viram, aí, tudo convergindo para Deus, fundamento e mantenedor do mundo e da ordem no mundo. E tudo o que se podia chamar de belo ou bom, era medido e/ou reconhecido pelo Sumo Bem, também confundido (ou co-fundido) com Deus: medida, verdade e razão de todas as coisas. Justino de Roma (morto por volta de 165 d.C.), um dos mais afoitos, depois de ser rejeitado como discípulo de um pitagórico, volta-se para um mestre platônico e, logo, “julgava ter-me tornado um sábio”, ele diz, “ter-me tornado um sábio em tão pouco tempo, e totalmente esperava em breve ver o próprio Deus – pois tal é o fim da filosofia platônica.8” Que grande, o engano de Justino! A cosmologia9, até Darwin, estava assim: gripada e sofrendo com os delírios dessa febre metafísica: do belo, do bom, do amor, do sublime, et cetara.
No The selfish gene, Richard Dowkins não poderia ser mais claro e extensivo:

Por três bilhões de anos, os organismos vivos haviam existido na Terra sem nunca saber por que razão [porque a fé não é uma explicação], até que a verdade finalmente ocorreu a um deles. Seu nome era Charles Darwin.10

Outro livro, de Daniel C. Dennett, Breaking the spell: religion as a natural phenomenon, de 200611, depõe contra o tal encantamento do mundo, às vezes também assombrado pelos demônios – como no título de outro, de Carl Sagan12. Mais do que nunca, e nunca como antes, a citação colocada na boca do Cristo tem feito sentido: “E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará.” Autores modernos, cada vez mais, têm visto as correspondências de um Almeida Garret à Viscondessa da Luz13, por exemplo, como afetação inconsciente da Vontade, atiçando-o contra ela, por amor não à referida, mas por amor a si mesmo, pelo gene egoísta que responde às pulsões, com vistas à geração de outro indivíduo da mesma espécie. O belo e o sublime, louvados... delírio. O romantismo, na iminência da razão, cai na licença poética, na fantasia inquestionada, fazendo o mesmo caminho da fé confiante, na religiosidade popular, e da necessidade mais superficial e imediata de uma resposta ao que poderia ser ou dar um “sentido à vida”, ou ao mundo... ao nosso mundo.
Darwin, cheio de respeito àqueles e àquelas que acreditavam romanticamente no governo divino do mundo, faz a diplomacia entre o que defende e o que de que pode ser acusado:

Não vejo nenhuma razão para que as opiniões expostas neste volume [A origem das espécies] firam o sentimento religioso de quem quer que seja. É satisfatório, para mostrar o quanto estas impressões são passageiras, recordar que a maior descoberta que o homem já efetuou, a lei da gravidade, foi também atacada por Leibnitz14, “como subversiva da religião natural, e, nestas condições, da religião revelada”. Um famoso eclesiástico escreveu-me que acabara por compreender que “acreditar na criação de algumas formas capazes de se desenvolver por si mesmas em outras formas necessárias é ter uma concepção bem mais elevada de Deus do que acreditar que haveria necessidade de novos atos de criação para preencher as lacunas causadas pela ação das leis Dele.”15

Por outro lado, religiosos fundamentalistas e extremados, americanos e ingleses, como Harold Hill (que exibe os louros de haver sido “cientista da NASA”) e Edgar H. Andrews16, dentre outros, vociferando ironias e fazendo piadas infames, sem apresentarem fundamentos pautados na razão pura, mas armados de fé (que geralmente procura provas de si mesma sem sair de si mesma), não pouparam escárnios a esse homem modesto, humilde e, talvez, mais cristão que muitos cristãos modernos – no sentido moral da palavra.
Pululam sites, blogs e artigos pseudo-acadêmicos, nada científicos, que exploram a “piada do macaco”, como “parente remoto do homem”. Coisa que rejeitam jocosamente, e geralmente ignorando (de propósito) que a referência é à classificação, e de uma determinada classe de primatas. Ademais, foi o agnóstico Thomas Henry Huxley17 quem, durante a reunião anual da British Association for the Advancement of Science, em 1860 (numa quinta-feira, 28 de junho), argumentou em favor da Teoria da Evolução do seu amigo Darwin, incluindo o homem entre os referidos primatas18. O debate, acalorado, foi de enorme repercussão. No sábado seguinte, durante nova sessão, o bispo Wilberforce19, obtendo a palavra, tratou de criticar a obra de Darwin – como sempre foi bem comum entre eclesiásticos. E, embora não haja um relato seguro sobre o ocorrido20, sabe-se que ele repetiu os argumentos que havia utilizado em um artigo seu, recente21. Como a exposição fosse oral, o velho bispo, em um gracejo miserável, empolgado em sua oratória perante o grande público, teria perguntado (a Huxley) se o seu parentesco com os macacos era pelo lado materno ou paterno. Huxley, tomando a palavra, disse que preferia ter um macaco como antepassado a uma pessoa – como o bispo, no caso – que usa de recursos da oratória para enganar os ignorantes e impedir que a verdade seja conhecida. “O impacto da resposta de Huxley foi tão grande que Lady Brewster, que assistia à sessão, desmaiou e precisou ser levada para fora da sala.”22   
O velho bispo, porta-voz da moral vitoriana, encontrou em Huxley – coisa que Darwin, por sua postura sóbria e comedida, jamais faria – um adversário consciente e turrão, pronto a peitar o seu prestígio, todo fincado no poder simbólico-secular da Igreja e do teatro romântico do mundo religioso. Darwin, “ao propor uma teoria materialista para a natureza do altruísmo humano”, afirma Mesquita, “se distanciou da teoria da interferência espiritual de Wallace23 e de todas as outras que propunham causas imateriais para o surgimento da moral [como as de Wilberforce, naturalmente]. Ele teria, por fim, quebrado todas as pontes entre as ciências naturais e o sobrenatural”24, tudo o que Huxley, em seus escritos, por outros meios, tentava fazer.
Hoje, há um ditado que se vai tornando cada vez mais popular, e que subscreve bem os ideais de Huxley, apoiado em Darwin e contra a moral religiosa – principalmente a sexual, aureolada pela Igreja, que se autoproclamou sua guardiã, alegando que, não fosse assim, seria a imoralidade e a barbárie: “Eu não preciso de religiões para ser moral, eu tenho a minha consciência.”







1 DARWIN, Charles. The descent of man and selection in relation to sex. London: John Murray, Albemarle Street, 1871. “Se A Origem das Espécies já havia causado muita polêmica ao contrariar as origens do mundo segundo o livro do Gênesis, A Descendência do Homem soou como uma declaração de guerra.” (MESQUITA, André Campos. Darwin: o naturalista da evolução das espécies. São Paulo: Lafonte, 2011. p. 157. [Col. Filosofia Comentada]).
2 MESQUITA, 2011, p. 157.
3 A Vontade de vida é o número do mundo, nada tendo de racional: “A Vontade que, considerada puramente em si, destituída de conhecimento, é apenas um ímpeto cego e irresistível – como a vemos aparecer na natureza inorgânica e na natureza vegetal, assim como na parte vegetativa de nossa própria vida.” Logo, “o que a vontade sempre quer é a vida, precisamente porque esta nada é senão a exposição daquele querer para a representação, é indiferente e tão-somente um pleonasmo se, em vez de simplesmente dizermos ‘a Vontade’, dizemos ‘a Vontade de vida’.” (SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação, I tomo. São Paulo: Editora UNESP, 2005. p. 357-8 [§ 54]). 
4 DARWIN, Charles. A luta pela sobrevivência. Rio de Janeiro: PocketOuro, 2009. p. 239-40. A luta pela sobrevivência é, como foi dito acima, um excerto de A origem das espécies. “O mais importante é que o ponto central da obra [A descendência do homem...] não era exatamente a descendência do homem, mas a seleção em relação ao sexo (subtítulo da obra). Darwin procura refutar opiniões que questionavam a relevância da beleza da plumagem de aves como o pavão na seleção natural, alegando que essas plumagens só poderiam ter sido desenhadas por uma divindade caprichosa.” (MESQUITA, 2011, p. 159).
5 Às vezes Carlos Lineu, ou a versão latinizada de seu nome: Carolus Linnaeus. A Linnean Society of London tem esse nome em sua homenagem; e foi aí que os trabalhos de Darwin foram lidos pela primeira vez, no dia 1º de julho de 1858.
6 No início do Livro X de A república, de Platão, o artífice da “cama ideal” – nas palavras de Sócrates – é quem garante a unidade da Ideia, e a diferença como imitação desta; não real, portanto. “Efetivamente, esse artífice não só é capaz de executar todos os objetos, como também modela todas as plantas e fabrica todos os seres animados, incluindo a si mesmo [Deus como Causa Sui], e, além disso, faz a terra, o céu, os deuses e tudo quanto existe no céu e no Hades, debaixo da terra.” (PLATÃO, A república, 596 a-e; PLATÃO. A república. 9 ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001).
7 “A alma é causa e princípio do corpo que vive. Mas estas coisas se dizem de muitos modos, e a alma é similarmente causa conforme três dos modos definidos, pois a alma é de onde e em vista de que parte este movimento, sendo ainda causa como substância dos corpos animados. Pois, para todas as coisas, a causa de ser é a substância, e o ser para os que vivem é o viver, e disto a alma é causa e princípio. Além do mais, a atualidade é uma determinação do que é em potência." (ARISTÓTELES, De anima. São Paulo: Editora 34, 2006. p. 81). “A crença na imutabilidade das espécies era quase inevitável, tanto que se atribuía à história do mundo uma duração muito curta, e agora que adquirimos algumas noções de lapso de tempo, admitimos prontamente, e sem provas, que o registro geológico é bastante eficiente para nos fornecer a demonstração evidente da mutação das espécies, se elas sofreram mutação.” (DARWIN, 2009, p. 253).
8 ROMA, Justino de. Diálogo com Trifão, 112; P.G. 6, 460-66. GOMES, C. Folch. Antologia dos Santos Padres: páginas seletas dos antigos escritores eclesiásticos. 2. ed. São Paulo: Edições Paulinas, 1979. p. 70.
9 Termo que, parece, surgiu inicialmente – no sentido de “estudo do universo em sua totalidade, e do homem no mundo, por extensão” – com o filósofo alemão Christian Wolff (1679-1754), na publicação de sua Cosmologia Generali, em 1730.  
10 DAWKINS, Richard. The selfish gene. Oxford: Oxford Press, 1989. p. 1. 
11 No mesmo ano em que saiu a edição americana, publicada pela Viking (marca fantasia da Penguin Books), Helena Londres fez uma tradução para a edição brasileira, da Editora Globo: DENNETT, Daniel C. Quebrando o encanto: a religião como fenômeno natural. São Paulo: Globo, 2006. Dennett, filósofo e cientista cognitivo, é juntamente com Dowkins, Christopher Hitchens e Sam Harris, conhecido como um dos “quatro cavaleiros do ateísmo”.
12 SAGAN, Carl. O mundo assombrado pelos demônios: a ciência vista como uma vela no escuro. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
13 Cf. GARRET, Almeida. Cartas de amor à Viscondessa da Luz. Introdução, organização, fixação do texto e notas de Sérgio Nazar David. Rio de Janeiro: 7Letras, 2004. O romântico Almeida Garret viveu de 1799 a 1854. No início da carta nº 1, para citar um exemplo do melodrama: “Que suprema felicidade foi hoje e minha, querida desta alma! Como tu estavas linda, terna, amante, incantadora! [sic] Nunca te vi assim, nunca me pareceste tão bela. Que deliciosa variedade há em ti, minha R. adorada! Possuir-te é gozar de um tesouro infinito, inesgotável. Juro-te que já não tenho mérito em te ser fiel, em te protestar e guardar esta lealdade exclusiva que te hei-de consagrar até o último instante da minha vida: não tenho mérito algum nisso.” (GARRET, 2004, p. 85). O objeto amado, como Deus, na religião cristã, é único e digno de lealdade, e é portador de tudo o que é bom e belo e sublime... Romantismo, cristianismo. 
14 Referência a Gottfried Leibnitz (1646-1710), cientista alemão.
15 DARWIN, 2009, p. 252.
16 HILL, Harold. Darwin e sua macacada. Deerfield, Florida: Editora Vida, 1994. ANDREWS, E. A. From nothing to nature: young people's guide to evolution and creation. Hertfordshire, England: Evangelical Press, 1978.  
17 Conhecido como “o Buldogue de Darwin”, pela paixão com que defendia as teses do amigo, o britânico Thomas Henry Huxley (1825-1895) foi um eminente biólogo, e um dos principais cientistas do século XIX. Patriarca de uma família de acadêmicos ilustres, foi avô de Aldous Huxley (1894-1963), autor da famosa distopia Admirável mundo novo; e também de Sir Julian Huxley (1887-1975) – o primeiro diretor da UNESCO, e fundador da World Wildlife Fund – e Sir Andrew Huxley (1917-2012), fisiologista e biofísico, ganhador do Nobel de Fisiologia/Medicina, em 1963.
18 Ponto que Darwin não havia abordado em seu livro.
19 O bispo anglicano Samuel Wilberforce (1805-1873), enquanto educador, foi um defensor obstinado da ortodoxia cristã inglesa, tipificando o ideal moral da Era Vitoriana, de 1837 a 1860. O referido artigo, bem como a sua celeuma com Huxley, foi abordado em um artigo de J. R. Lucas, Wilberforce and Huxley: a legendary encounter. Disponível em: <http://users.ox.ac.uk/~jrlucas/legend.html> Acesso em: 06 out. 2012
20 O próprio Huxley, em uma carta de 9 de setembro de 1860, enviada ao amigo Frederick Dyster, conta do ocorrido. HUXLEY papers, 15.117. Imperial College os Science and Technology.
21 Cf. MARTINS, Roberto de Andrade. Thomas Huxley, o debate entre ciência e religião, e a educação. In: HUXLEY, Thomas Henry. Escritos sobre ciência e religião. São Paulo: Editora UNESP, 2009. p. 11. (Col. Pequenos Frascos).
22 MARTINS, 2009, p.12.
23 Alfred Russel Wallace (1823-1913) foi um naturalista, geógrafo, antropólogo e biólogo britânico, autor de um ensaio no qual praticamente definia as bases da Teoria da Evolução (ainda em 1858), que foi endereçado pelo próprio a Darwin, de quem era amigo, com o pedido de que ele o analisasse. Para defender a originalidade das suas pesquisas de quase 20 anos, Charles Lyell (1797-1875) e o botânico Joseph Dalton Hooker (1817-1911) propuseram que os trabalhos fossem apresentados conjuntamente à Linnean Society, que era então o centro de estudos de história natural mais importante da Grã-Bretanha; a famosa apresentação do 1º de julho de 1858.
24 MESQUITA, 2011, p. 161.


quinta-feira, 1 de novembro de 2012


21.





Do que fazemos, que é por amor




Nada do que foi feito de grande ou pequeno, na arte, na política, na religião, no mundo ou na história do mundo, se realizou sem amor; e, sem ele, nada do que foi feito se fez. O único problema, nisso, é entender claramente o que se diz ou se quer dizer com “o amor” – a grande palavra encobridora.
O maior, melhor e mais claro tratado já feito sobre ele veio à lume em 1818, pelo gênio de Arthur Schopenhauer1, à sombra do espectro de Charles Darwin e mergulhado em um novo budismo, sob o título Die Welt als Wille und Vorstellung, ou: “O mundo como vontade e como representação”2. Nietzsche, em posse do referido, e fascinado com o que lia, reverenciou o seu autor como sendo seu “primeiro e único educador”, embora tenha se distanciado dele depois, por outras questões.

Nietzsche relata que seu encontro com O mundo como vontade e como representação, obra máxima de Schopenhauer, se deu ao entrar num antiquário em Leipzig, ano de 1865, e ter sua atenção chamada para o livro ali exposto. Comprou-o e teve a sua vida mudada para sempre. Ao iniciar a leitura, não mais conseguiu se desapegar das páginas. Sentia-se embriagado com as revelações ali feitas. Encontrara o seu ‘primeiro e único educador’, que tinha escrito aquele livro para ele e lhe falava intimamente numa linguagem perfeitamente clara. Sua confiança naquela forma de pensamento foi completa.3

Tudo o que Nietzsche, Lou-Salomé ou Sigmund Freud dirão sobre Desejo, Eros, Vontade ou Pulsão, é mera repetição e/ou acréscimo... quando não descarrilam para afirmações pioradas.
Recentemente, no Brasil, foi publicado um excerto de A origem das espécies (The origin of species, de 1859), pela Pocket Ouro, com o título: “A luta pela sobrevivência”. Nas 265 páginas do livreto, Darwin explica porque prefere esse termo e não o de Herbert Spencer4, “a persistência do mais apto”, embora a considere “mais exata e algumas vezes mais cômoda”.5

Nada mais fácil que admitir a verdade deste princípio: a luta universal pela sobrevivência; nada mais difícil – e falo por experiência – do que ter este princípio sempre presente no espírito, pois, caso contrário, ou se vê mal toda a economia da natureza, ou se atribui sentido errado a todos os casos relativos à distribuição, à raridade, à extinção e às variações dos seres organizados.6

 A “A luta pela sobrevivência”, aqui, é a “Vontade de vida”, ali (em Schopenhauer), partindo de um aspecto menos científico – no sentido de a posteriori. Vê a Vontade geral (consciência geral subjetiva: a espécie), sob a ótica do individual, mais fácil de análise objetiva (o indivíduo). Na descrição do “amor” que os animais selvagens têm por suas crias, ao ponto de, por elas, sacrificarem-se, é essa “consciência geral subjetiva que aparece”, e não há amor nenhum aí – no sentido romântico do termo7. Assim também o pai ou a mãe, pelo filho, ou, antes, por si mesmos; ou, de modo mais geral: pela espécie humana. É a Vontade agindo, no instinto, cego ou não. Deveras, o suicídio – como já foi dito com a citação de Pascal8 – não é uma demonstração de desapego à Vontade de vida, mas, ao contrário, demonstração da Vontade no limite de uma experiência finalíssima. Um trecho do Livro terceiro de (“Do mundo como representação”), do Die Welt...:

Nada mais difere tão amplamente da negação da Vontade de vida exposta suficientemente nos limites do nosso modo de consideração, e que constitui o único ato de liberdade da Vontade a entrar em cena no fenômeno, [...] do que a efetiva supressão do fenômeno individual, na efetividade, pelo SUICÍDIO. Este, longe de ser negação da Vontade, é um acontecimento que vigorosamente a afirma. Pois a essência da negação da Vontade reside não em os sofrimentos mas em os prazeres repugnarem. O suicida quer a vida; porém está insatisfeito com as condições sob as quais a vive. Quando destrói o fenômeno individual, ele de maneira alguma renuncia à Vontade de vida, mas tão-somente à vida. [...] A Vontade de vida aparece tanto na morte auto-imposta (Shiva), quanto no prazer da conservação pessoal (Vishnu) e na volúpia da procriação (Brahma).9

Se o suicídio é a única questão filosófica realmente séria, como Camus afirma10, a resposta pela continuidade da vida – qualquer que seja ela é uma resposta à Vontade de vida; e a Vontade de vida, para ser, precisa da continuidade da espécie, além do indivíduo. Assim, e “por mais desinteressada e ideal que pareça [a] admiração por uma pessoa amada, o alvo real é a concepção de um novo indivíduo de determinada natureza.11” Nisso, a beleza do corpo é propaganda da sua saúde, da aptidão à geração do novo indivíduo, pela relação sexual: “A inclinação amorosa, antes de mais nada, procura no sexo oposto um corpo sadio, forte e belo e, por conseguinte, juventude. A Vontade deseja representar, antes de tudo, o caráter geral da espécie humana, como base de toda individualidade.”12
Quando Nietzsche fala da antinatureza cristã, em sua grande crítica ao cristianismo, não é sem considerar tais fundamentos. O ágape, ou o amor ao feio, ao débil, ao aleijado, ao corpo velho, et cetera, é a subjugação do real pelo ideal, a naturalidade invertida, a mentira do romantismo ingênuo, e da pia moral cristã.

O cristianismo tomou o partido de tudo o que é fraco, baixo, malogrado, transformou em ideal aquilo que contraria os instintos de conservação da vida forte; corrompeu a própria razão das naturezas mais fortes de espírito, ensinando-lhes a perceber como pecaminosos, como enganosos, como tentações os valores supremos do espírito. E exemplo mais lamentável – a corrupção de Pascal, que acreditava na corrupção de sua razão pelo pecado original, quando ela fora corrompida apenas pelo seu cristianismo!13

Darwin, Schopenhauer... Nietzsche. É bom que o leitor tenha essa ordem em mente, para o que será dito daqui à frente. No mais, a emergência do indivíduo e do individualismo egotista, desde o século XVIII para cá, somente veio somar pontos ao que fora exposto pelo velho mestre alemão, sobre o Eu individual e sobre a Vontade de vida, a quem me dou como quem abduzido, por amor a mim, em obediência a ela, consciente ou não. Mesmo a nossa ingenuidade sobre o que seja ou não seja “o amor”, ou aquilo que acreditamos sentir por uma pessoa amada, é resposta à Vontade de vida que está oculta na presença enganosa da afecção ao Outro, no fito de que continuemos, e sem o falso escape que o suicídio insinua. Quando insistimos no erro de pensar em um amor ideal – às vezes transcendente a nós, e às vezes imanente , não é por amor ao erro ou ao Outro que assim fazemos, mas por amor a nós mesmos. O Eu, aí, está sempre muito além de qualquer moral, e do bem e do mal. 






1 Arthur Schopenhauer (1788-1860). Gênio que não foi reconhecido por sua mãe, por exemplo. Consta que, em 1813, depois de redigir e publicar a tese A quádrupla raiz do princípio da razão suficiente – que será, depois, completamente absorvida em O mundo como vontade e como representação –, ouviu a mãe (Johanna Henriette Trosina) zombar do conteúdo, dizendo que a obra não era mais que um livro para farmacêuticos. Schopenhauer reage dizendo que os romances dela não sobreviveriam à posteridade, e que ela somente seria lembrada por ser “a mãe de Schopenhauer”. Parece que ele, afinal, tinha razão.
2 Há duas boas traduções para a obra, no Brasil. A melhor, sem dúvida, é a de Jair Barbosa, em: SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo como Vontade e como Representação, I tomo. São Paulo: Editora UNESP, 2005. 695 p.
3 BARBOSA, Jair. Apresentação: um livro que embriaga. In: SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo como Vontade e como Representação, I tomo. São Paulo: Editora UNESP, 2005. p. 7.
4 O britânico Herbert Spencer (1820-1903) é um dos mais ilustres representantes do positivismo. Admirador da obra de Darwin, Spencer cunhou o termo “sobrevivência do mais apto”, aplicando um darwinismo às vezes bem pessoal, pelos níveis que propunha às análises que fazia da atividade humana. Por isso, e embora não tenha falado de um “darwinismo social”, o termo veio a calhar à sua própria obra – pela tentativa de justificar a divisão social (classes) com base na seleção natural.
5 DARWIN, Charles. A luta pela sobrevivência. Rio de Janeiro: PocketOuro, 2009. p. 7.
6 DARWIN, 2009, p. 7.
7 “A lontra, quando perseguida, pega seu filhote, mergulha com seu corpo e enfrenta as flechas dos caçadores enquanto a sua cria se salva. Fere-se um filhote de baleia apenas para atrair a mãe, que acode em seu socorro, e raramente dele se separa enquanto este viver, mesmo que seja atingida por diversos arpões – Na ilha dos Três Reis, na Nova Zelândia, vivem focas colossais chamadas de ‘elefantes marinhos’. Nadam ao redor da ilha em bando organizado e alimentam-se de peixes. Têm, porém, sob a água certos inimigos cruéis e desconhecidos que muitas vezes os ferem gravemente. Por isto, o seu nado em comum exige uma tática especial. As fêmeas dão cria nas margens, e depois, enquanto amamentam, o que demora de sete a oito semanas, todos os machos formam um círculo em seu redor, para impedi-las de ir ao mar, impelidas pela fome. Quando, porém, o tentam, são repelidas a dentadas. Assim, durante sete ou oito semanas, todos juntos passam fome e emagrecem muito, tudo isto para impedir a saída dos filhotes ao mar, antes que sejam capazes de nadar bem e obedecer à usual técnica de natação, que lhes é ensinada a trancos e dentadas. Isto demonstra também, até que ponto o amor dos pais pelos filhos, como qualquer outra forte manifestação da Vontade, aumenta a inteligência. Patos selvagens, toutinegras e muitos outros pássaros, quando o caçador se aproxima do ninho, voam com altos alaridos e se precipitam aos seus pés, esvoaçando de um lado para o outro, como se estivessem paralisadas suas asas, tudo isto para chamar sobre si a atenção do caçador e desviá-la dos filhotes. A cotovia entrega-se ao cão, procurando com isto fazer com que ele se afaste do ninho. Também corças e veados procuram atrair a si a atenção da caçada e fim de salvaguardar os filhos. Voaram andorinhas até casas em chamas para salvas seus filhotes, ou para morrer com eles. Em Delft, uma cegonha deixou-se queimar no ninho, num violento incêndio, para não abandonar seus filhotes que ainda não sabiam voar. Pássaros selvagens, ao chocar, deixam-se apanhar no ninho. A muscicapa tyrannus defende seu ninho com grande valentia, e enfrenta até a águia. Cortou-se uma formiga ao meio e viu-se a sua metade dianteira pôr ainda a salvo os ovos. Uma cadela, de cujo corpo se cortaram os filhotes, arrastou-se moribunda até eles, lambeu-os com amor, e começou só a gemer horrivelmente quando lhos tiraram.” (SHOPENHAUER, Arthur. O instinto sexual. São Paulo: Edições INEDOS, 1951. p. 37-8). O cuidado, aí, é mais à espécie que ao indivíduo – embora seja nele que mais parece aparecer. É de igual modo no homem, e na mulher, e na espécie humana. O impulso não é pela morte, mas pela vida.
8 “Todos os homens procuram ser felizes; não há exceção. Por diferentes que sejam os meios que empregam, tendem todos a esse fim. O que leva uns a irem para a guerra e outros a não irem é esse mesmo desejo que está em todos, acompanhado de diferentes pontos de vista. A vontade nunca efetua a menor diligência, senão com esse objetivo. Esse é o motivo de todas as ações de todos os homens, até mesmo do que vão enforcar-se.” (Pens., VII, 425. PASCAL, Blaise. Pensamentos. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1998. p. 137. [Col. Os Pensadores]).
9 SCHOPENHAUER, 2005, p. 504 (§ 69).
10 “Só existe um problema filosófico realmente sério: o suicídio. Julgar se a vida vale ou não vale a pena ser vivida é responder à pergunta fundamental da filosofia.” (CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Rio de Janeiro: Edições BestBolso, 2010. p. 19).
11 SCHOPENHAUER, 1951, p. 44.
12 SCHOPENHAUER, 1951, p. 46.
13 NIETZSCHE, Friedrich. O anticristo: Maldição do cristianismo: Ditirambos de Dionísio. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 12 (§ 5).





LinkWithin

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...