24.
De uma
hermenêutica para o sublime
A alma da vastíssima literatura romancesca que entope livrarias,
sebos e bancas de revistas – com os acessíveis pocket books e brochuras1
–, está na mesma linha vertical da ortodoxia teológica, que consigna a
veracidade do amor à imediata experiência do numinoso, na subjetividade natural do sentimento de “sublime”, preso à ideia platônico-cristã de um Sumo Bem – mesmo que isso somente se
dê no nível do inconsciente. O Summum Bonum seria a finalidade e a fonte originária de onde surgem e por onde se mensuram todos os corações perfeitos, e os bons pensamentos, e os nobres sentimentos
das almas piedosas, etc.
“Nós o amamos porque ele nos amou primeiro”, é são João evangelista quem diz2. E Sócrates, repetindo o que teria
escutado de Diotima de Mantinéia:
[...] Quando então
alguém, subindo a partir do que aqui é belo, através do correto amor aos
rapazes, começa a contemplar aquele belo, quase que estaria a atingir o ponto
final. Eis, com efeito, em que consiste o proceder corretamente nos caminhos do
amor ou por outro se deixar conduzir: em começar do que aqui é belo e, em vista
daquele belo, subir sempre, como que se servindo de degraus, de um só para dois
e de dois para todos os corpos belos, e dos belos corpos para os belos ofícios,
e dos belos ofícios para as belas ciências, até que das ciências acabe naquela
ciência que nada mais é senão daquele próprio belo, e conheça enfim o que em si
mesmo é belo.3
Justino de Roma, depois de procurar um mestre pitagórico e ser
rejeitado, procura outro, um platônico. E logo “julgava ter-me tornado
um sábio”, ele diz, “um sábio em tão pouco tempo, e totalmente esperava em
breve ver o próprio Deus – pois tal é o fim da filosofia platônica.4” O “belo em si mesmo”, na fala de
Sócrates, transforma-se, com Justino, no próprio Deus, Summum Bonum. Foi assim que a “filosofia cristã” se apoderou da
filosofia pagã (e da teologia judaica) e recriou o mundo, rebaixando o Eros grego em favor do seu ágape: “Quem ama é nascido de Deus e
conhece a Deus. Aquele que não ama não conhece a Deus, porque Deus é amor.5” É João, novamente. E o amor, aí,
somente é perfeito se estiver ligado ao ágape,
que é perfeito, e medido por ele.
Inventamos o sublime porque não desejamos a realidade tal qual é ela:
nua, fria, insensível, desesperada e... mortal. Sim, basta que Eu morra para
que a realidade de tudo, inclusive de Deus e do seu Espírito, despareça comigo.
“Sei que sem mim Deus não pode viver um instante
sequer / Se eu for aniquilado, também o seu espírito tem de necessariamente
extinguir-se.6” A sensação da finitude temporal nos apavora
e, conhecendo a não-eternidade deste mundo, inventamos a eternidade de um mundo
extramundano, com um novo destino após o nosso tempo no mundo de agora. No tempo
passado, o que morre são as consciências da realidade, individuais ou
coletivas... históricas. E o mundo continuará, sem mim. E daí a permanente mudança
de valores morais, de preferências estéticas, de ideias e ideologias:
políticas, religiosas, etc. Nada é estanque, no mundo.
Para sobreviver ao espírito do tempo (Zeitgeist) e para fortalecerem-se diante das ameaças atrativas
das minorias em oposições, em transformações, religiões e partidos políticos,
dentre outros grupos ideológico-sociais, carecem da adesão dos diferentes, dos
avulsos, dos contrários ou indiferentes. Para tanto, prometem em suas
confissões de fé ou estatutos: felicidade, algum tipo de riqueza, algum tipo de
liberdade e, naturalmente, a satisfação do espírito... com um objetivo dado à sua
vida – imergido o indivíduo na coletividade dos que professam o mesmo ânimo,
respirando (conspiram) os mesmos ares de fé na verdade da verdade do que
acreditam.
O método teológico – aqui referido enquanto “ponte para o sublime” e,
naturalmente, para a vaga noção romântico-idealista fundamental –, funciona
através de saltos: da fé, pela fé (os absurdos escandalosos, paradoxais)7, e cosmológico/ontológicos (como na grande crítica
de Kant)8. O que a hermenêutica teológica
aplicada à matéria de bibliologia, ensinada em academias teológicas, prova, por
exemplo? Que a Bíblia é um livro antigo escrito por muitas mãos, em várias
épocas, com estilos variados e em línguas diferentes; que alguns dos seus relatos
têm fundamentação histórica comprovada; que alguns dos seus personagens foram
pessoas que realmente viveram e sentiram o peso deste mundo, como qualquer
humano comum, etc. É quando parte daí, do puramente horizontal – exigindo fé na
fé que esses homens e mulheres antigos tinham, conforme surgem no antigo livro
–, que ocorre o salto: na verticalidade que a fé propõe, cortando a linha que
prende a pipa ao chão e ao seu dono. Quanto ao seu voo, porém, quem sabe ao
certo para onde os ventos a levará? A hermenêutica bíblica, na analogia, é o
vento.
Na palestra de Vattimo, A
tentação do realismo, uma frase de Nietzsche abre, de cara, o primeiro
parágrafo, e depois reaparece por toda parte: “Não existem fatos, somente
interpretações; e esta também é uma interpretação.9”
E o próprio Vattimo revela a sua intenção com o uso que faz da referida: “Não
estou [...] pretendendo que a hermenêutica, sintetizada na frase de Nietzsche,
seja a descrição mais adequada da cultura tardo-moderna”, ele diz. “Defendo,
pelo contrário, que ela é a interpretação mais razoável.10” Acontece que toda interpretação parte
de um universo particular, aquele ao
qual é preso o seu intérprete: língua, história, geografia, existencialidade,
situação psicológica, et cetera. É
nesse sentido que “o argumento lógico contra o cético nunca convenceu alguém a
abandonar as próprias ‘convicções’ céticas.11” Sim, de fato. Nas palavras de um desses, Paul Valéry:
Repugna-me a
todos que querem me convencer – Um partido, uma religião em procura adeptos,
que desejam o nome e a propagação, são cheios (para mim) de ignomínia. Uma
doutrina deve, para ser nobre, em nada ceder ao desejo de ser compartilhada.
Que ela seja como ela é, ou que ela não seja.
Eu não desejo
fazer aos outros o que eu não quero que me façam.
[...] – Ter
razão. Desejo de ter razão – Propagar. Desejar convencer
Isso conduz aos
milagres... à “publicidade”.12
E:
“Toda emoção, todo sentimento é uma marca de defeito de adaptação.13” Ou: “Toda a vida afetiva não passa de
besteira e circulo vicioso.14” Noutra
parte, a sentença “Quem faz o bem por dever o faz mal, e o faz sem arte”15, depõe tanto contra a ética autônoma
kantiana quanto a heterônoma, da filosofia/teologia Clássico-Antiga. Valéry
chuta conceitos e explode consensos, anunciando que “Tudo o que é humano me é estranho.16” Mas, ainda assim, ah!, eis aí o homem;
o homem que estranha.
Com Valéry, e no que toca à certeza das palavras que apontam para uma
realidade final e absoluta, mergulhamos em um fosso conceitual, sem escadas ou
fendas por onde possamos nos animar à escalada, em direção a alguma luz
anunciada ou que se anuncie. As palavras, como o mundo, o tempo e a nossa compreensão de mundo e tempo, estão
em movimento.
O sentimento imediato, ante o objeto – real ou imaginário
– fenomenologicamente dado, é a única realidade que possuo, e sem outras garantias
que não as sensuais. Por isso, no final, ainda é o Eu quem fala e aparece, também alterado: amando,
odiando, desejando isso ou aquilo; ora inventando deuses e afecções sublimadas,
ora destruindo velhos ídolos à base de marteladas. De um jeito ou de outro, é a
realidade da vida o que se vê, aí, lançada e desnuda na casa cheia de convivas famintos,
vorazes. No mais, é o escape delirante (através da arte, da religião, da
esperança na esperança, da fé na fé, etc.) contra o concreto... Como na frase
que vi em algum lugar: Acreditamos na utopia, porque a realidade nos parece
inacreditável.
Inventamos o cotidiano e, com ele, impressos no papel ou
em nosso inconsciente, os romances bons e baratos e preciosos – as doses
diárias do ópio que nos mantém sedados –, contra a realidade da vida, que é
dor, deserto e desolação. O Caeiro de Fernando Pessoa dizia que “sentir é estar
distraído”. Sim, é; e amar, também.
1
Agora mesmo (novembro de 2011), enquanto escrevo, um livro de Natalie Anderson,
Brilho no olhar, compõe o volume 51
da Coleção Modern Sexy, da série Maverick Millionaires, da editora Harlequin.
Na apresentação editorial: “Ela não deveria se aproximar de seu chefe
mal-humorado… Os opostos se atraem? Rude e rebelde, Lorenzo Hall é um homem que
construiu a própria fortuna começando do nada. E agora ele tem um novo objetivo
na vida: descobrir se sua assistente pessoal é tão certinha e recatada quanto
parece. É claro que Sophy deveria fazer de tudo para não deixá-lo se aproximar.
Mas com aquele corpo e aquele brilho no olhar, seria muito difícil não ceder à
tentação…” Esse é tom de tais romances – e sem desmerecê-los, pelo fato de
serem populares –, com suas naturais variações. A questão, como eu a coloco
aqui, também não poupa os romances clássicos, de capa-dura, vendidos em lojas
chiques e livrarias de shoppings. Nas bancas, além das brochuras da série
Maverick Millionaires, as séries Bianca,
Julia, Super Julia, Sabrina – que apareceram no início dos anos sessenta – e Best-Sellers, sempre alcançaram tiragens
enormes, e até hoje, quando os novos títulos e séries, seguindo o nicho sempre
renovado, surgem.
2
1 João, 4, 19. In: A Bíblia Sagrada:
Antigo e Novo Testamento. Deerfield, EUA: Vida, 1993. Edição Contemporânea.
3
PLATÃO. O banquete, 211c. In: _____. Diálogos.
2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Col. Os Pensadores).
4 ROMA, Justino de. Diálogo com Trifão, 112; P.G. 6, 460-66.
GOMES, C. Folch. Antologia dos Santos
Padres: páginas seletas dos antigos escritores eclesiásticos. 2. ed. São
Paulo: Edições Paulinas, 1979. p. 70.
5 1 João, 4, 7b-8.
6 Citado em: SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação.
São Paulo: Editora UNESP, 2005. p. 190. (II, § 25).
7 Aqui, novamente, volto a
Kierkegaad, na leitura de Camus: “O cristianismo é o
escândalo, e o que Kierkegaard pede com simplicidade é o terceiro sacrifício
exigido por Inácio de Loyola, aquele com o qual Deus mais se delicia: ‘o
sacrifício do Intelecto.’ Esse efeito do ‘salto’ é bizarro, mas não deve nos
surpreender mais. ele faz do absurdo o critério do outro mundo, enquanto não
passa de um resíduo da experiência deste mundo. ‘Em seu fracasso’, diz
Kierkegaard, “o crente encontra [como em Abraão] o seu triunfo’.” (CAMUS,
Albert. O mito de Sísifo. Rio de
Janeiro: Edições BestBolso, 2010. p. 47). Paradoxo
porque o movimento da fé, uma vez compreendido pelo intelecto, não pode mais
efetivar o seu sacrifício: “Não posso realizar o movimento da fé, não
posso cerrar os olhos e lançar-me de cabeça, pleno de confiança, no absurdo;
tal coisa é impossível, mas não me vanglorio por isso.” (KIERKEGAARD, Sören. Temor e tremor. Lisboa: Guimarães
Editores, 1990. p. 47).
8 Os argumentos “cosmológicos”,
reduzidos a ontológicos, segundo Kant (1724-1804)
– na linha dos de Anselmo de Cantuária (c. 1033/1034-1109)
e Tomás de Aquino (c. 1225-1274), entre
os autores principais –, são argumentos do tipo a priori, e são falhos. Uma prova cosmológica, segundo Kant,
“formula-se assim: se algo existe, deve existir, também, um ser absolutamente
necessário. Ora, pelo menos existo eu próprio; logo, existe um ser
absolutamente necessário... Mas a prova prossegue e conclui que o ser
necessário só pode ser determinado de uma única maneira, isto é, somente
mediante um dos predicados, de entre todos os predicados opostos possíveis, e,
por conseguinte, deverá ser integralmente determinada pelo seu conceito. Ora,
só pode haver um único conceito de coisa que determine a priori esta coisa, ou seja, o conceito de ens realissimum; portanto o conceito de ser soberanamente real é o
único pelo qual pode ser pensado um ser necessário, isto é, existe
necessariamente um Ser supremo.” Kant continua: “Neste argumento cosmológico
reúnem-se tantos princípios sofísticos que, a razão especulativa, parece, aqui,
ter desenvolvido a sua arte dialética, a fim de produzir a máxima aparência
transcendental possível... Para bem, ao assegurar o seu fundamento, a prova
estriba-se na experiência, dando assim a impressão de se distinguir da prova
ontológica, que deposita toda a confiança em conceitos puros a priori. Mas a prova cosmológica só
serve desta experiência para dar um único passo, a saber, para se elevar à
existência de um ser necessário em geral. O fundamento empírico da prova nada
nos pode ensinar acerca dos atributos deste ser; então a razão afasta-se dele,
inteiramente, e por detrás de simples conceitos investiga os atributos que um
ser absolutamente necessário em geral deve possuir... Mas, é claro,
pressupõe-se, aqui, que um ser dotado da realidade suprema satisfaz plenamente
o conceito de necessidade absoluta na existência... eis uma proposição
sustentada pelo argumento ontológico, que assim se admite e dá por fundamento
ao argumento cosmológico, o que se pretendera evitar.” (KANT,
Immanuel. Kritik der reinen Vernunft.
Leipzig: Felix Meiner, 1926. p. 576-78).
9 VATTIMO, Gianni. A tentação do realismo. Rio de Janeiro:
Lacerda Ed.: Instituto Italiano di Cultura, 2001. p. 17. (Col. Conferências
Italianas, 1).
10 VATTIMO, 2001, p. 28.
11 VATTIMO, 2001, p. 21. Ou: “Como
tentei mostrar em Oltre I’interpretazione,
a hermenêutica se configura como puro e perigoso relativismo só se não se leva
bastante a sério as próprias implicações niilistas. Posto que a ‘verdade da
hermenêutica’ como teoria alternativa a outras (e antes de tudo ao conceito de
verdade como ‘reflexo’ dos ‘fatos’) não pode se legitimar pretendendo valer
como uma descrição adequada de um estado de coisas metafisicamente estabelecido
(‘não existem fatos, somente interpretações’) mas deve reconhecer-se também
como uma interpretação, a sua única possibilidade é a de argumentar-se como
tal, quer dizer, como uma ‘descrição’ interna ou leitura sui generis da condição histórica na qual é lançada e que escolhe
orientar numa direção determinada, pela qual não existem outros critérios a não
ser os que herda, interpretando, desta mesma proveniência.” (VATTIMO, 2001, p.
29-30).
12 VALÉRY, Paul. Au sujet du
‘Cimetière Marin’. In: _____. Œuvres. Paris: Bibliothèque de la
Pléiade / Gallimard, 1973. p. 132-133. v. 1.
13 VALÉRY, 1997, p. 354. v. 2.
14 VALÉRY, 1997, p. 382. v. 2.
15 VALÉRY, 1973, p. 620. v. 1.