quarta-feira, 10 de outubro de 2012


19.





Do egoísmo e seu problema



Antes de ser vitimado por um câncer em 15 de dezembro de 2011, Christopher Hitchens foi um dos ateus mais atuantes e influentes, defendendo teses que mostram a atual desnecessidade das religiões; existentes, no passado, por alguns motivos óbvios: o nosso medo infantil daquilo que é maior que nós, e externo (o mundo, o cosmos, o desconhecido, etc.), nosso medo da extinção do nosso Eu post mortem e a necessidade de alguma resposta à pergunta: “por que há alguma coisa ao invés do nada?” A resposta da fé foi, por muito tempo, mais importante do que a resposta nenhuma. Nunca soubemos silenciar o pensamento inquiridor, a dúvida cortante, o espanto diante de... Daí nasceu a filosofia, daí vieram as religiões. Por um viés mais político, a religião também foi (e ainda é) instrumento para o surgimento, poder e manutenção de líderes autointitulados  ou intitulados por outros  representantes dos deuses entre nós, seus/nossos legítimos mediadores na terra, etc.
Ensaísta, crítico literário e jornalista, Hitchens era conhecido, juntamente com Richard Dawkins, Sam Harris e Daniel Dennet, como um dos quatro “cavaleiros do ateísmo”. Algumas teses de Hitchens têm bases antigas, apoiadas nos estudos naturalistas de Charles Darwin e no pseudo-agnosticismo de Thomas Henry Huxley1 (“pseudo” porque, embora seja assim que o próprio Huxley tenha definido a sua posição religiosa – aliás, o primeiro a fazê-lo –, suas convicções são as mesmas de qualquer ateu confesso), bem como na grande crítica de Nietzsche à moral cristã e no materialismo histórico de Marx, Engels, dentre outros2. Seu livro de 1995, The missionary position: Mother Teresa in theory and practice3, foi base para um documentário produzido para a televisão, que, no Brasil, ganhou o título de Madre Teresa de Calcutá: anjo do inferno4, no qual é narrador. Madre Teresa foi, para Hitchens, uma “ladra anã e fanática”, uma “demagoga de extrema-direita”, uma fraude dissimulada. No seu “amor ao outro”, o que mais aparecia era o amour de soi. Embora a teoria do “gene egoísta” (the selfish gene) tenha sido divulgada por seu amigo Dawkins5, não há como não vê aí – e em todos os livros de Hitchens – a natural prevalescência do Eu como agente primeiro e inevitável a qualquer causa que seja considerada boa ou má, conforme as normas culturais e/ou os juízos éticos consensuais, dentre outras áreas e análises que podem ser lembradas – a religiosa, por exemplo.
Apesar da fama de crítico das religiões – da cristã, em especial –, nem Hitchens, nem Dawkins, e nenhum outro “cavaleiro do ateísmo” foi tão frio e incisivo, até hoje, quanto o já mencionado Nietzsche – a quem o equivocado Urbano Zilles se refere, forçadamente, como um “cristão [em] potencial ou reprimido”6. Não mesmo!
Depois de ver Madre Teresa de Calcutá: anjo do inferno, o trecho abaixo – enorme, mas interessante e provocativo – fará todo o sentido, e reforçará o que é dito por Hitchens, Dawkins, Harris e Dennet, referente ao nosso egoísmo inevitável, e necessário.   

“253 – O egoísmo e seu problema! A tristeza cristã em La Rochefoucauld7 que o encontra em toda parte e julga com isso diminuir o valor das coisas e das virtudes! Procurei de início demonstrar contra ele que nada mais pode existir senão o egoísmo – que no homem, cujo ego se enfraquece e se ameniza, a força do grande amor se enfraquece também – que os grandes apaixonados o são por força de seu ego – que o amor é uma expressão do egoísmo, etc. O erro na avaliação visa na realidade o interesse: 1º. daqueles que é necessário servir, ajudar; do rebanho; 2º. contém uma suspeita pessimista na própria raiz da vida; 3º. procura negar os homens mais magníficos e mais realizados: medo; 4º. quer ajudar os vencidos a reivindicar seu direito contra os vencedores; 5º. acarreta uma deslealdade geral, até entre os melhores homens.

“254 – Crítica do amor-próprio. – Ingenuidade involuntária de La Rochefoucauld, que acredita dizer algo de audacioso, livre e paradoxal – nessa época a ‘verdade’ psicológica parecia surpreendente. Exemplo: ‘As grandes almas não são as que têm menos paixões e mais virtudes que as almas comuns, mas somente as que têm maiores desígnios.’ É verdade que John Stuart Mill8 (que chamava Chamfort9 o La Rochefoucauld do século XVIII, mas mais nobre e mais filósofo) só vê nele o observador perspicaz de tudo o que na alma humana se reduz ao ‘amor-próprio habitual’ e acrescenta: ‘Um espírito nobre jamais consentirá em se impor a necessidade de considerar de modo duradouro a vulgaridade e a baixeza, se for para mostrar contra quais influências nefastas a elevação do espírito e a nobreza do caráter podem prevalecer.’

“255 – Nunca pensei em ‘deduzir’ todas as virtudes do egoísmo. Gostaria de estar certo primeiramente que são ‘virtudes’ e não formas temporárias que o instinto de conservação assume em certos rebanhos, em certas comunidades.

“256 – Não pode haver ações não egoístas; as palavras ‘instinto altruísta’ soam a meus ouvidos como ‘ferro de madeira’. Gostaria que se tentasse demonstrar a possibilidade de semelhantes atos. É o povo que acredita que existem, e todos aqueles que se assemelham ao povo; – é como se acreditássemos que o amor materno ou simplesmente o amor são sentimentos altruístas.
            Acreditar que os povos sempre interpretaram no sentimento do egoísmo e do altruísmo o quadro do bem e do mal é um erro histórico. O bem e o mal como o ‘lícito’ e o ‘ilícito’ (conforme ou não ao ‘costume’) são muito mais antigos e universais.

“257 – Os homens admiram e elogiam os atos de outro que parecem desinteressados de sua parte, contanto que esses atos sirvam a eles. (Desinteressados no sentido do desfrute ou da utilidade). Outrora se conferia ao desfrute e à utilidade10 um sentido muito vulgar e muito estreito; e todo aquele que fizesse uma coisa, por exemplo, para a glória, já era desinteressado na opinião dos homens grosseiros, da massa. É porque não viam os desfrutes mais delicados, porque muito maior era a estima no domínio do desinteresse. A falta de refinamento psicológico é a razão de muitos elogios e de admiração. Uma vez que a massa não tem paixão, admira a paixão, porque está ligada a sacrifícios e ignora a prudência; não podendo imaginar o desfrute que a paixão oferece, era negada. A multidão despreza tudo o que é habitual, fácil, pequeno.

“258 – Como nascem o instinto, o gosto, a paixão? Esta sacrifica em proveito próprio outros instintos menos poderosos (outras necessidades de prazer); não é altruísmo. Um só instinto domina os outros, mesmo o pretenso instinto de conservação. O ‘heroísmo’, etc., não foram compreendidos como paixões, mas como eram muito úteis aos outros, eram considerados como superiores, mais nobres, diferentes, porque a maioria das outras paixões eram perigosas para os outros. Era uma visão bem limitada! Mesmo o heroísmo do patriotismo, da lealdade, da ‘verdade’, da pesquisa, etc., é extremamente perigoso para os outros – mas os homens são muito tolos para perceber isso. De outra forma, difamariam as virtudes altruístas, como a cobiça, a sensualidade, a crueldade, o gosto das conquistas, etc. Mas as primeiras, uma vez julgadas e sentidas como boas, aos poucos foram idealizadas, tornaram-se ideais. É assim que o trabalho, a pobreza, a usura, a pederastia foram desprezadas em certas épocas, idealizadas em outras.

“259 – Que um homem não deseje certas coisas, não goste delas, nós lhe imputamos isso à baixeza e à vilania. O ‘altruísmo’ é exatamente o contrário: consiste em amar certas coisas às quais sacrificamos outros instintos e sobre as quais a maioria dos outros homens não chegue até mesmo a pensar que possamos amá-las até esse ponto. Desse modo admitem o milagre do ‘altruísmo’.

“260 – Os homens constataram com surpresa que alguns negligenciam seu próprio interesse (na paixão ou por gosto); ficaram cegos em proveito íntimo do orgulho, da emoção, etc., e consideraram esses homens primeiramente loucos, depois bons, no caso em que levassem vantagem da parte deles. Em seguida desenvolveram a crença de que esses atos são realizados propositadamente para seu bem. Ao elogiar essa espécie de homens e de ações, conseguimos fomentar outros atos análogos e gratuitos. O que exaltou o altruísmo até esse ponto foi o egoísmo daqueles que necessitam de ajuda e benefícios.

“261 – O amor. – Olhem-nos a funda esse amor e essa compaixão feminina – o que há de mais egoísta? E quando as próprias mulheres sacrificam sua honra, sua virtude, a quem elas se sacrificam? Ao homem? Ou melhor, a uma necessidade desenfreada? São desejos igualmente egoístas, embora representem um benefício para outros e inspirem reconhecimento.
            Em que medida semelhante superfetação de um único valor pode santificar todo o resto.

“262 – Viver para os outros: passatempo infinitamente agradável para os homens intensamente egoístas (entre eles contamos aqueles que se torturam por escrúpulos morais).

“263 – A compaixão, desperdício do sentimento, parasita prejudicial à saúde moral. ‘Só pode ser o dever, aumentar a soma dos males no mundo.’ Toda vez que só fazemos o bem por compaixão, fazemos o bem para nós mesmos e não ao próximo. A compaixão não se baseia em máximas; a compaixão é um contágio.

“264 – Crer que a história de todos os fenômenos morais se deixa simplificar, como julgou Schopenhauer, a ponto que a compaixão esteja na raiz de toda emoção moral conhecida – é um grau de absurdo e de ingenuidade onde só poderia chegar um pensador desprovido de todo senso histórico e que teria escapado de forma mais estanha dessa marcante escola histórica que os alemães fundaram, de Herder11 a Hegel.12

“265 – O egoísmo não é um princípio, é só e unicamente fato.

“266 – O egoísmo! Mas ninguém jamais perguntou de que tipo de ego se trata. Todos supõem involuntariamente que todo ego é igual a outro ego. Essas são as consequências da teoria servil do sufrágio universal e da ‘igualdade’.

“267 – Não há egoísmo que se mantenha em si e que não invada os outros – portanto, esse egoísmo ‘permitido’, moralmente indiferente, de que se fala, não existe.
            ‘Sempre se desenvolve o próprio eu em detrimento do próximo’ – ‘A vida subsiste sempre à custa de outra vida’ – quem não compreende isso não deu ainda o primeiro passo na probidade para consigo mesmo.

“268 – Retificação do conceito de ‘egoísmo’ – Se compreendemos até que ponto o conceito de ‘indivíduo’ está errado, quando todo ser particular é justamente o processo inteiro em linha reta (não a herança desse processo, mas o próprio processo), então o ser particular adquire uma enorme importância. O instinto fala nele de modo preciso. Quando esse instinto se enfraquece, quando o indivíduo procura um valor no serviço de outrem, podemos concluir com toda segurança pela lassidão e degenerescência. O altruísmo dos sentimentos, se for profundo e sem trapaça, é um instinto que procura garantir-se pelo menos um valor secundário no serviço de outros egoísmos. Mas na maioria das vezes é apenas aparente, é um desvio destinado a conservar o sentimento próprio de nossa vida, de nosso valor.”

Cristãos católicos e protestantes, notadamente os que utilizam as grandes mídias para a divulgação do que afirmam ser uma “mensagem cristã”, não encontram forma melhor de “venderem sua fé” senão explorando o que há de melhor partilhado entre os homens: o egoísmo, a imediata satisfação do Eu. O que pedem em volta, mais do que a fé ou a piedade, são os recursos para continuarem aí, aparecendo e rapinando os mesmos crentes miseráveis que, carentes de senso crítico, não percebem que são vítimas exatamente do que combatem, neles e nos outros: o egoísmo, o superexagerado amor ao Eu.
É claro que há diferenças entre o egoísmo valor moral (a super autoestima, a vontade de receber o louvor alheio, etc.) e o egoísmo natural (o cuidado inconsciente do Eu que abraça, inclusive, a ideia do “valor moral”), sem o qual a vida não é possível. O problema é que esses mesmos cristãos, crédulos e confiantes, não pensam sobre tais diferenças – como é comum de se fazer depois de abraçarem a fé no que, dizem, está além da razão... E assim não ouvem o sapere aude! kantiano, dentre outros desafios menores. Mas até mesmo isso, essa preguiça da razão e o seu sono, não é outra coisa senão uma cama grande e macia onde deitamos o nosso Eu, deixando que a vida siga o seu curso natural, animalizando-nos – pela falta de uma reflexão desapaixonada referente às coisas da fé, às vezes, única paixão. Paixão? Paixão nenhuma.






1 Cf. HUXLEY, Thomas Henry. Escritos sobre ciência e religião. São Paulo: Editora UNESP, 2009. (Col. Pequenos Frascos).
2 Hitchens é conhecido por sua admiração a George Orwell, Thomas Paine e Thomas Jefferson, frequentemente citados em seus livros.
3 HITCHENS, Christopher. The missionary position: Mother Teresa in theory and practice. London: Verso, 1996.
4 Pode ser visto no YouTube, em: <http://www.youtube.com/watch?v=zjB1YlDE4ok> Acesso em: 10 out. 2012.
5 DAWKINS, Richard. O gene egoísta. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. The selfish gene foi publicado pela primeira vez em 1976.  
6 “[Nietzsche] atacou o cristianismo com fanatismo. Serviu-se de certas formas do cristianismo histórico nas quais só via debilidade e mentira. Rejeitou a idéia de um Deus vingador. É difícil verificar até que ponto sua fúria anti-religiosa não oculta um cristão potencial ou reprimido.” (ZILLES, Urbano. Filosofia da Religião. 2. ed. São Paulo: Paulus, 1991. p. 180 [Col. Filosofia]).
7 François La Rochefoucauld (1613-1680), escritor moralista francês. 
8 John Stuart Mill (1806-1873), filósofo e economista inglês, divulgador do pensamento utilitarista. 
9 Pseudônimo de Sébastien-Roch Nicolas (1740-1794), que foi poeta, jornalista, humorista e moralista francês.  
10 Cabe exatamente ao conceito da moral cristã de Santo Agostinho (354-430), relacionado ao uti e frui, que, principalmente no De doctrina Christina, aparecem pormenorizados e definidos: “Fruir é aderir a alguma coisa por amor a ela própria. E usar é orientar o objeto de que se faz uso para obter o objeto ao qual se ama, caso tal objeto mereça ser amado” (De doc. christ., I, 4). Nas palavras de Lima Vaz: “Agostinho recorre à distinção frui-uti para estabelecer a distinção entre a dimensão teológica e a dimensão antropológica da doutrina cristã, a primeira compreendendo o mistério da SS. Trindade, os atributos de Deus e a Encarnação do Verbo, a segunda tendo por objeto a ordem da vida moral do homem, considerado na excelência de sua condição de criatura feita à imagem e semelhança de Deus. A ordem da vida moral é, pois, regida pela ordem do amor que se desdobra na esfera do uso como amor de si mesmo e dos outros segundo o reto modo e os graus correspondentes, e se eleva finalmente à esfera da fruição como amor de Deus, amado em si mesmo e por si mesmo.” (VAZ, Henrique Cláudio de Lima. Escritos de filosofia IV: introdução à ética filosófica. São Paulo: Loyola, 1999. p. 193).
11 Johann Gottfried Herder (1744-1803), escritor alemão.
12 Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831), filósofo romântico-idealista alemão, combatido tanto por Kierkegaard como por Schopenhauer e Nietzsche.


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