19.
Do egoísmo e
seu problema
Antes de ser vitimado por um câncer em 15 de dezembro de 2011,
Christopher Hitchens foi um dos ateus mais atuantes e influentes, defendendo teses que
mostram a atual desnecessidade das religiões; existentes, no passado, por alguns
motivos óbvios: o nosso medo infantil daquilo que é maior que nós, e externo (o mundo,
o cosmos, o desconhecido, etc.), nosso medo da extinção do nosso Eu post mortem e a necessidade
de alguma resposta à pergunta: “por que há alguma coisa ao invés do nada?” A resposta da fé foi, por muito tempo, mais importante do que a resposta nenhuma. Nunca soubemos silenciar o pensamento inquiridor, a dúvida cortante, o espanto diante de... Daí nasceu a filosofia, daí vieram as religiões. Por
um viés mais político, a religião também foi (e ainda é) instrumento para o
surgimento, poder e manutenção de líderes autointitulados – ou intitulados por
outros – representantes dos deuses entre nós, seus/nossos legítimos mediadores na terra, etc.
Ensaísta, crítico literário e jornalista, Hitchens era conhecido,
juntamente com Richard Dawkins, Sam Harris e Daniel Dennet, como um dos quatro “cavaleiros
do ateísmo”. Algumas teses de Hitchens têm bases antigas, apoiadas nos estudos
naturalistas de Charles Darwin e no pseudo-agnosticismo de Thomas Henry Huxley1 (“pseudo” porque, embora seja assim que
o próprio Huxley tenha definido a sua posição religiosa – aliás, o primeiro a
fazê-lo –, suas convicções são as mesmas de qualquer ateu confesso), bem como na grande
crítica de Nietzsche à moral cristã e no materialismo histórico de Marx, Engels,
dentre outros2. Seu livro de 1995, The missionary position: Mother Teresa in
theory and practice3, foi base
para um documentário produzido para a televisão, que, no Brasil, ganhou o
título de Madre Teresa de Calcutá: anjo
do inferno4, no qual é narrador. Madre Teresa foi, para Hitchens, uma “ladra
anã e fanática”, uma “demagoga de extrema-direita”, uma fraude dissimulada. No seu “amor ao outro”, o que mais
aparecia era o amour de soi. Embora
a teoria do “gene egoísta” (the selfish
gene) tenha sido divulgada por seu amigo Dawkins5,
não há como não vê aí – e em todos os livros de Hitchens – a natural
prevalescência do Eu como agente primeiro e inevitável a qualquer causa que
seja considerada boa ou má, conforme as normas culturais e/ou os juízos éticos
consensuais, dentre outras áreas e análises que podem ser lembradas – a religiosa,
por exemplo.
Apesar da fama de crítico das religiões – da cristã, em especial –,
nem Hitchens, nem Dawkins, e nenhum outro “cavaleiro do ateísmo” foi tão frio e
incisivo, até hoje, quanto o já mencionado Nietzsche – a quem o equivocado Urbano
Zilles se refere, forçadamente, como um “cristão [em] potencial ou reprimido”6. Não mesmo!
Depois de ver Madre Teresa
de Calcutá: anjo do inferno, o trecho abaixo – enorme, mas interessante e
provocativo – fará todo o sentido, e reforçará o que é dito por Hitchens, Dawkins, Harris e Dennet,
referente ao nosso egoísmo inevitável, e necessário.
“253 – O egoísmo e seu problema! A tristeza cristã em La Rochefoucauld7 que o encontra em toda parte e julga
com isso diminuir o valor das coisas
e das virtudes! Procurei de início demonstrar contra ele que nada mais pode existir senão o egoísmo – que no
homem, cujo ego se enfraquece e se ameniza, a força do grande amor se
enfraquece também – que os grandes apaixonados o são por força de seu ego – que
o amor é uma expressão do egoísmo, etc. O erro na avaliação visa na realidade o
interesse: 1º. daqueles que é necessário servir, ajudar; do rebanho; 2º. contém
uma suspeita pessimista na própria raiz da vida; 3º. procura negar os homens
mais magníficos e mais realizados: medo; 4º. quer ajudar os vencidos a
reivindicar seu direito contra os vencedores; 5º. acarreta uma deslealdade
geral, até entre os melhores homens.
“254 – Crítica do amor-próprio. – Ingenuidade involuntária de La Rochefoucauld, que
acredita dizer algo de audacioso, livre e paradoxal – nessa época a ‘verdade’
psicológica parecia surpreendente. Exemplo: ‘As grandes almas não são as que
têm menos paixões e mais virtudes que as almas comuns, mas somente as que têm
maiores desígnios.’ É verdade que John Stuart Mill8
(que chamava Chamfort9 o La
Rochefoucauld do século XVIII, mas mais nobre e mais filósofo) só vê nele o
observador perspicaz de tudo o que na alma humana se reduz ao ‘amor-próprio
habitual’ e acrescenta: ‘Um espírito nobre jamais consentirá em se impor a
necessidade de considerar de modo duradouro a vulgaridade e a baixeza, se for
para mostrar contra quais influências nefastas a elevação do espírito e a
nobreza do caráter podem prevalecer.’
“255 – Nunca pensei em ‘deduzir’ todas
as virtudes do egoísmo. Gostaria de estar certo primeiramente que são
‘virtudes’ e não formas temporárias que o instinto de conservação assume em
certos rebanhos, em certas comunidades.
“256 – Não pode haver ações não
egoístas; as palavras ‘instinto altruísta’ soam a meus ouvidos como ‘ferro de
madeira’. Gostaria que se tentasse demonstrar a possibilidade de semelhantes
atos. É o povo que acredita que existem, e todos aqueles que se assemelham ao
povo; – é como se acreditássemos que o amor materno ou simplesmente o amor são
sentimentos altruístas.
Acreditar
que os povos sempre interpretaram no sentimento do egoísmo e do altruísmo o
quadro do bem e do mal é um erro histórico. O bem e o mal como o ‘lícito’ e o
‘ilícito’ (conforme ou não ao ‘costume’) são muito mais antigos e universais.
“257 – Os homens admiram e elogiam os
atos de outro que parecem desinteressados
de sua parte, contanto que esses atos sirvam a eles. (Desinteressados no
sentido do desfrute ou da utilidade). Outrora se conferia ao desfrute e à
utilidade10 um sentido muito vulgar
e muito estreito; e todo aquele que fizesse uma coisa, por exemplo, para a
glória, já era desinteressado na
opinião dos homens grosseiros, da
massa. É porque não viam os desfrutes mais
delicados, porque muito maior era
a estima no domínio do desinteresse. A falta de refinamento psicológico é a
razão de muitos elogios e de admiração.
Uma vez que a massa não tem paixão, admira
a paixão, porque está ligada a sacrifícios e ignora a prudência; não podendo
imaginar o desfrute que a paixão
oferece, era negada. A multidão despreza tudo o que é habitual, fácil, pequeno.
“258 – Como nascem o instinto, o
gosto, a paixão? Esta sacrifica em proveito próprio outros
instintos menos poderosos (outras necessidades de prazer); não é altruísmo.
Um só instinto domina os outros,
mesmo o pretenso instinto de conservação. O ‘heroísmo’, etc., não foram compreendidos como paixões,
mas como eram muito úteis aos outros,
eram considerados como superiores,
mais nobres, diferentes, porque a maioria das outras paixões eram perigosas
para os outros. Era uma visão bem limitada! Mesmo o heroísmo do patriotismo, da lealdade, da ‘verdade’, da pesquisa,
etc., é extremamente perigoso para os
outros – mas os homens são muito tolos para perceber isso. De outra forma,
difamariam as virtudes altruístas, como a cobiça, a sensualidade, a crueldade,
o gosto das conquistas, etc. Mas as primeiras, uma vez julgadas e sentidas como
boas, aos poucos foram idealizadas, tornaram-se ideais. É assim
que o trabalho, a pobreza, a usura, a pederastia foram
desprezadas em certas épocas, idealizadas em outras.
“259 – Que um homem não deseje certas
coisas, não goste delas, nós lhe imputamos isso à baixeza e à vilania. O ‘altruísmo’ é exatamente o contrário: consiste em amar certas
coisas às quais sacrificamos outros instintos e sobre as quais a maioria dos
outros homens não chegue até mesmo a
pensar que possamos amá-las até esse ponto. Desse modo admitem o milagre do ‘altruísmo’.
“260 – Os homens constataram com
surpresa que alguns negligenciam seu
próprio interesse (na paixão ou por gosto); ficaram cegos em proveito
íntimo do orgulho, da emoção, etc., e consideraram esses homens primeiramente loucos, depois bons, no caso em que levassem vantagem da parte deles. Em seguida
desenvolveram a crença de que esses atos são realizados propositadamente para
seu bem. Ao elogiar essa espécie de homens e de ações, conseguimos fomentar
outros atos análogos e gratuitos. O que exaltou o altruísmo até esse ponto foi
o egoísmo daqueles que necessitam de ajuda e benefícios.
“261 – O amor. – Olhem-nos a funda esse amor e essa compaixão feminina – o
que há de mais egoísta? E quando as próprias mulheres sacrificam sua honra, sua
virtude, a quem elas se sacrificam? Ao homem? Ou melhor, a uma necessidade
desenfreada? São desejos igualmente egoístas, embora representem um benefício
para outros e inspirem reconhecimento.
Em
que medida semelhante superfetação de um único valor pode santificar todo o resto.
“262 – Viver para os outros:
passatempo infinitamente agradável para os homens intensamente egoístas (entre
eles contamos aqueles que se torturam por escrúpulos morais).
“263 – A compaixão, desperdício do
sentimento, parasita prejudicial à saúde moral. ‘Só pode ser o dever, aumentar
a soma dos males no mundo.’ Toda vez que só fazemos o bem por compaixão,
fazemos o bem para nós mesmos e não ao próximo. A compaixão não se baseia em
máximas; a compaixão é um contágio.
“264 – Crer que a história de todos os
fenômenos morais se deixa simplificar, como julgou Schopenhauer, a ponto que a compaixão esteja na raiz de toda emoção
moral conhecida – é um grau de absurdo e de ingenuidade onde só poderia chegar
um pensador desprovido de todo senso histórico e que teria escapado de forma
mais estanha dessa marcante escola histórica que os alemães fundaram, de Herder11 a Hegel.12
“265 – O egoísmo não é um princípio, é só e unicamente fato.
“266 – O egoísmo! Mas ninguém jamais perguntou de que tipo de ego se trata. Todos supõem involuntariamente
que todo ego é igual a outro ego. Essas são as consequências da
teoria servil do sufrágio universal e
da ‘igualdade’.
“267 – Não há egoísmo que se mantenha
em si e que não invada os outros – portanto, esse egoísmo ‘permitido’,
moralmente indiferente, de que se fala, não existe.
‘Sempre
se desenvolve o próprio eu em detrimento do próximo’ – ‘A vida subsiste sempre
à custa de outra vida’ – quem não compreende isso não deu ainda o primeiro
passo na probidade para consigo mesmo.
“268 – Retificação do conceito de ‘egoísmo’ – Se compreendemos até que
ponto o conceito de ‘indivíduo’ está errado, quando todo ser particular é
justamente o processo inteiro em linha reta (não a herança desse processo, mas
o próprio processo), então o ser particular adquire uma enorme importância. O instinto fala nele de modo preciso.
Quando esse instinto se enfraquece,
quando o indivíduo procura um valor no serviço de outrem, podemos concluir com
toda segurança pela lassidão e degenerescência. O altruísmo dos sentimentos, se
for profundo e sem trapaça, é um instinto que procura garantir-se pelo menos um
valor secundário no serviço de outros egoísmos. Mas na maioria das
vezes é apenas aparente, é um desvio destinado a conservar o sentimento próprio de nossa vida, de nosso
valor.”
Cristãos católicos e protestantes, notadamente os que utilizam as
grandes mídias para a divulgação do que afirmam ser uma “mensagem cristã”, não
encontram forma melhor de “venderem sua fé” senão explorando o que há de melhor
partilhado entre os homens: o egoísmo, a imediata satisfação do Eu. O que pedem
em volta, mais do que a fé ou a piedade, são os recursos para continuarem aí,
aparecendo e rapinando os mesmos crentes miseráveis que, carentes de senso
crítico, não percebem que são vítimas exatamente do que combatem, neles e nos
outros: o egoísmo, o superexagerado amor ao Eu.
É claro que há diferenças entre o egoísmo valor moral (a super autoestima, a vontade de receber o louvor alheio,
etc.) e o egoísmo natural (o cuidado
inconsciente do Eu que abraça, inclusive, a ideia do “valor moral”), sem o qual
a vida não é possível. O problema é que esses mesmos cristãos, crédulos e
confiantes, não pensam sobre tais diferenças – como é comum de se fazer depois
de abraçarem a fé no que, dizem, está além da razão... E assim não ouvem o sapere aude! kantiano, dentre outros
desafios menores. Mas até mesmo isso, essa preguiça da razão e o seu sono, não
é outra coisa senão uma cama grande e macia onde deitamos o nosso Eu, deixando
que a vida siga o seu curso natural, animalizando-nos – pela falta de uma
reflexão desapaixonada referente às coisas da fé, às vezes, única paixão.
Paixão? Paixão nenhuma.
1 Cf. HUXLEY,
Thomas Henry. Escritos sobre ciência e
religião. São Paulo: Editora UNESP, 2009. (Col. Pequenos Frascos).
2 Hitchens é
conhecido por sua admiração a George Orwell, Thomas Paine e Thomas Jefferson, frequentemente
citados em seus livros.
3 HITCHENS, Christopher. The missionary position: Mother
Teresa in theory and practice. London: Verso, 1996.
4 Pode ser
visto no YouTube, em: <http://www.youtube.com/watch?v=zjB1YlDE4ok>
Acesso em: 10 out. 2012.
5 DAWKINS,
Richard. O gene egoísta. São Paulo:
Companhia das Letras, 2007. The selfish
gene foi publicado pela primeira vez em 1976.
6 “[Nietzsche]
atacou o cristianismo com fanatismo. Serviu-se de certas formas do cristianismo
histórico nas quais só via debilidade e mentira. Rejeitou a idéia de um Deus
vingador. É difícil verificar até que ponto sua fúria anti-religiosa não oculta
um cristão potencial ou reprimido.” (ZILLES, Urbano. Filosofia da Religião. 2. ed. São Paulo: Paulus, 1991. p. 180 [Col.
Filosofia]).
7 François La
Rochefoucauld (1613-1680), escritor moralista francês.
8 John Stuart
Mill (1806-1873), filósofo e economista inglês, divulgador do pensamento
utilitarista.
9 Pseudônimo
de Sébastien-Roch Nicolas (1740-1794), que foi poeta, jornalista, humorista e
moralista francês.
10 Cabe
exatamente ao conceito da moral cristã de Santo Agostinho (354-430),
relacionado ao uti e frui, que, principalmente no De doctrina Christina, aparecem
pormenorizados e definidos: “Fruir é aderir a alguma coisa por amor a ela
própria. E usar é orientar o objeto de que se faz uso para obter o objeto ao
qual se ama, caso tal objeto mereça ser amado” (De doc. christ., I, 4). Nas palavras de Lima Vaz: “Agostinho
recorre à distinção frui-uti para
estabelecer a distinção entre a dimensão teológica e a dimensão antropológica
da doutrina cristã, a primeira compreendendo o mistério da SS. Trindade, os
atributos de Deus e a Encarnação do Verbo, a segunda tendo por objeto a ordem da vida moral do homem, considerado na excelência de sua condição de
criatura feita à imagem e semelhança de Deus. A ordem da vida moral é, pois,
regida pela ordem do amor que se desdobra na esfera do uso como amor de si
mesmo e dos outros segundo o reto modo e os graus correspondentes, e se eleva
finalmente à esfera da fruição como amor de Deus, amado em si mesmo e por si
mesmo.” (VAZ, Henrique Cláudio de Lima. Escritos
de filosofia IV: introdução à ética filosófica. São Paulo: Loyola, 1999. p.
193).
11 Johann
Gottfried Herder (1744-1803), escritor alemão.
12 Georg
Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831), filósofo romântico-idealista alemão,
combatido tanto por Kierkegaard como por Schopenhauer e Nietzsche.