18.
De como ficam
tolos, os bêbados e os apaixonados
Tarde de sábado em Campina Grande,
ali no Ferro de Engomar.
No bar, que ganhou o nome por
ter o formato de um ferro de passar roupas, encontrei amigos que já estavam por
lá desde a hora em que a manhã cumpriu o seu ofício. Havia cachaça em copos
espalhados sobre a mesa, e cerveja, e cigarros, e conversas atiradas para todos
os temas. Um grupo de homens tocava samba, mantendo o que já é, ali, tradicional
ajuntamento. E até me arrisquei a tocar algumas coisas junto com
eles, armado com um triângulo.
Notei a mulher posta em pé,
próxima à porta do banheiro. Seu companheiro lhe pagava bebidas e, vez ou
outra, cobrava alguns carinhos. E ela parecia feliz, protegida pelo seu homem. Dois
completos desconhecidos.
Tarde bem caída, e quando todos
pareciam ensaiar as primeiras despedidas, a mulher subiu ao balcão e, sem se
importar com as reclamações do dono do bar – que depois me disse estar morto de
cansaço, por não haver dormido nadinha na noite passada –, olhou para todos que,
surpreendidos pelo gesto, deveriam ter, se fossem personagens de uma história
em quadrinhos, aqueles balões cheios de interrogações desenhados sobre as suas
cabeças.
– Gente! Genteee! – ela falou,
como a pedir atenção. – Eu posso falar?
Todo mundo aplaudiu, respondendo
em coro e acompanhando os gritos com palmas:
– Fala! Fala! Fala! Fala! Fala!...
A cara do dono do bar não era
de satisfação, mas, diante do apelo comum, deixou que a cena continuasse.
– Vocês sabem o que é o amor? Vocês
sabem o que é o amooooor? – Perguntou assim, de modo retórico, esticando bem
muito o “ôooor...” no final da palavra. – Eu vou dizer. O amor é uma coisa muito
louca, mas é muito lindo também.
– Êeee... – Todos aplaudiam, em
festa e picardia. Ela continuou:
– Eu subi aqui somente para
dizer isso, e dizer que amo esse homem. – Tinha a cara encabulada, mas resistia, feliz e embriagada, apontando para o homem que também parecia meio acanhado.
Daí, e atestando a veracidade
da loucura que é o amor, todos começaram a gritar ainda mais e ainda mais agitados:
– Tira a roupa! Tira a roupa! Tira
a roupa! Tira a roupa! Tira a roupa!...
Mas ela não tirou.
Desceu do balcão, ajudada por
seu companheiro, que lhe recebeu com um beijo, atendendo à saraivada
de palmas e gritos de “beija!, beija!, beija!, beija!, beija!, beija!..”
“A paixão é uma dama perversa,
e de reações têpêemísticas variadas!”, pensei, na hora, lembrando-me de um fala
do Fedro, n’O banquete, de Platão, em
que a coragem alucinada dos apaixonados é pura sandice e, por isso, “dê-me um
exército de amantes e conquistarei o mundo”, ele dizia.1
Na literatura, a temática
amorosa costuma privilegiar o absoluto do amor, a opção eletiva do um pelo outro, nas promessas de exclusividade do amante ao seu objeto. Na literatura ocidental, especialmente, o tema
do amor também é alimentado pela tragicidade, pelo obstáculo e pelas tantas
provações – puro platonismo.2 A maior história de amor do Ocidente termina
com o seu personagem principal crucificado, e por amor a uma que, na trama,
aparece como sua noiva... Ele se vai, prometendo voltar logo, rico e majestoso; ela o espera, pacientemente, sem pensar em se dar a outro.
Figurado em Alceste, que
oferece a sua vida em favor do seu marido3,
Roland Barthes reconhece a historicidade do discurso ausente, aquele marcado na
voz da Mulher: e ela que espera o Homem que partiu – como Penélope, a Odisséu;
como a Igreja, a Cristo –, dispondo de todo o tempo do mundo para tecer o seu
tapete, construir a sua doutrina poético-teológica, ou elaborar a intrincada ficção
de um discurso interior: “[...] a ausência apaixonada dirige-se apenas num
sentido e não pode exprimir-se senão a partir de quem fica – e não de quem
parte: o eu, sempre presente, não se constitui senão em face de ti, sempre
ausente.”4
Seja no andrógino de Aristófanes,
narrado por Platão5, seja na Eva, feita da
costela do Homem – e, por sua causa, a sua ruína –, o que há, nas relações afetivas,
pela união ou pela separação, é a insatisfação satisfeita, a dor consentida, o “fogo
que arde sem se ver”, a “ferida que dói e não se sente” – e isso, naturalmente,
não explica o ideal, nem o revela, mas o real, e o animal no/do homem (no
sentido mais abrangente do termo), sempre à caça não de uma vítima, mas da vida
(Vontade de vida)... embora domado pelas morais dominantes, a heterônoma ou
a autônoma, especialmente.
Na primeira parte de O conceito de ironia constantemente referido
a Sócrates, publicado em 1841, Sören A. Kierkegaard mostra que o discurso
de Sócrates, em contraponto ao dos seus predecessores, n’O banquete, tem a ironia como método. O pensador dinamarquês não tem
uma novidade maior que esta, e apesar das críticas que faz ao romantismo6. Às coisas do amor, se ainda
permanecemos em Kierkegarrd, será preciso ir à outra obra sua, o primeiro volume
de A alternativa: Diário de um sedutor... mas, mesmo aí, e
o estágio do esteta que aparece, e que, como se sabe, será ultrapassado pelo
ético, e, este, pelo religioso. Mas, não vou falar disso... por hora.
Se, à semelhança daquela mulher
apaixonada, eu também subisse ao balcão e fizesse um discurso sobre o amor, mas
dizendo o que é que ele é mesmo, de
verdade, era bem capaz de tomar umas garrafadas no meio da cara, para aprender
a não estragar a festa alheia.
1 O banquete, 179 a. PLATÃO. O banquete (O Simpósio ou do Amor). Lisboa:
Guimarães Editores, 1986.
2 Veja o discurso de Sócrates,
reproduzindo os ensinos de Diotima, em: O
banquete; e também o Fedro.
PLATÃO. Fedro (ou da Beleza). 6. ed.
Lisboa: Guimarães Editores, 2000.
3 Cf. O banquete, 179 b.
4 BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. Lisboa:
Edições 70, 2001. p. 52.
5
Também n’O banquete, 189c–193e.
6
“A ironia trabalha com o mal-entendido. A própria banca examinadora [da tese de
Kierkegaard, que resulta no referido livro] experimentou isto na carne. O orientador
da tese, Prof. F. C. Sibbem, não entendeu bem a ligação da primeira com a
segunda parte, enquanto outros pareceres falaram até de dois trabalhos
distintos, um sobre Sócrates e outro sobre o romantismo.” (VALLS, Álvaro. L. M.
Apresentação. In: KIERKEGAARD, S. A. O
conceito de ironia constantemente referido a Sócrates. Petrópolis: Vozes,
1991. p. 11. [Col. Pensamento Humano]).