segunda-feira, 24 de setembro de 2012


18.






De como ficam tolos, os bêbados e os apaixonados




Tarde de sábado em Campina Grande, ali no Ferro de Engomar.
No bar, que ganhou o nome por ter o formato de um ferro de passar roupas, encontrei amigos que já estavam por lá desde a hora em que a manhã cumpriu o seu ofício. Havia cachaça em copos espalhados sobre a mesa, e cerveja, e cigarros, e conversas atiradas para todos os temas. Um grupo de homens tocava samba, mantendo o que já é, ali, tradicional ajuntamento. E até me arrisquei a tocar algumas coisas junto com eles, armado com um triângulo.
Notei a mulher posta em pé, próxima à porta do banheiro. Seu companheiro lhe pagava bebidas e, vez ou outra, cobrava alguns carinhos. E ela parecia feliz, protegida pelo seu homem. Dois completos desconhecidos.  
Tarde bem caída, e quando todos pareciam ensaiar as primeiras despedidas, a mulher subiu ao balcão e, sem se importar com as reclamações do dono do bar – que depois me disse estar morto de cansaço, por não haver dormido nadinha na noite passada –, olhou para todos que, surpreendidos pelo gesto, deveriam ter, se fossem personagens de uma história em quadrinhos, aqueles balões cheios de interrogações desenhados sobre as suas cabeças.  
– Gente! Genteee! – ela falou, como a pedir atenção. – Eu posso falar?
Todo mundo aplaudiu, respondendo em coro e acompanhando os gritos com palmas:
– Fala! Fala! Fala! Fala! Fala!...
A cara do dono do bar não era de satisfação, mas, diante do apelo comum, deixou que a cena continuasse.
– Vocês sabem o que é o amor? Vocês sabem o que é o amooooor? – Perguntou assim, de modo retórico, esticando bem muito o “ôooor...” no final da palavra. – Eu vou dizer. O amor é uma coisa muito louca, mas é muito lindo também.
– Êeee... – Todos aplaudiam, em festa e picardia. Ela continuou:
– Eu subi aqui somente para dizer isso, e dizer que amo esse homem. – Tinha a cara encabulada, mas resistia, feliz e embriagada, apontando para o homem que também parecia meio acanhado.  
Daí, e atestando a veracidade da loucura que é o amor, todos começaram a gritar ainda mais e ainda mais agitados:
– Tira a roupa! Tira a roupa! Tira a roupa! Tira a roupa! Tira a roupa!...
Mas ela não tirou.
Desceu do balcão, ajudada por seu companheiro, que lhe recebeu com um beijo, atendendo à saraivada de palmas e gritos de “beija!, beija!, beija!, beija!, beija!, beija!..”
“A paixão é uma dama perversa, e de reações têpêemísticas variadas!”, pensei, na hora, lembrando-me de um fala do Fedro, n’O banquete, de Platão, em que a coragem alucinada dos apaixonados é pura sandice e, por isso, “dê-me um exército de amantes e conquistarei o mundo”, ele dizia.1
Na literatura, a temática amorosa costuma privilegiar o absoluto do amor, a opção eletiva do um pelo outro, nas promessas de exclusividade do amante ao seu objeto.  Na literatura ocidental, especialmente, o tema do amor também é alimentado pela tragicidade, pelo obstáculo e pelas tantas provações – puro platonismo.2 A maior história de amor do Ocidente termina com o seu personagem principal crucificado, e por amor a uma que, na trama, aparece como sua noiva... Ele se vai, prometendo voltar logo, rico e majestoso; ela o espera, pacientemente, sem pensar em se dar a outro.  
Figurado em Alceste, que oferece a sua vida em favor do seu marido3, Roland Barthes reconhece a historicidade do discurso ausente, aquele marcado na voz da Mulher: e ela que espera o Homem que partiu – como Penélope, a Odisséu; como a Igreja, a Cristo –, dispondo de todo o tempo do mundo para tecer o seu tapete, construir a sua doutrina poético-teológica, ou elaborar a intrincada ficção de um discurso interior: “[...] a ausência apaixonada dirige-se apenas num sentido e não pode exprimir-se senão a partir de quem fica – e não de quem parte: o eu, sempre presente, não se constitui senão em face de ti, sempre ausente.”4
Seja no andrógino de Aristófanes, narrado por Platão5, seja na Eva, feita da costela do Homem – e, por sua causa, a sua ruína –, o que há, nas relações afetivas, pela união ou pela separação, é a insatisfação satisfeita, a dor consentida, o “fogo que arde sem se ver”, a “ferida que dói e não se sente” – e isso, naturalmente, não explica o ideal, nem o revela, mas o real, e o animal no/do homem (no sentido mais abrangente do termo), sempre à caça não de uma vítima, mas da vida (Vontade de vida)... embora domado pelas morais dominantes, a heterônoma ou a autônoma, especialmente.
Na primeira parte de O conceito de ironia constantemente referido a Sócrates, publicado em 1841, Sören A. Kierkegaard mostra que o discurso de Sócrates, em contraponto ao dos seus predecessores, n’O banquete, tem a ironia como método. O pensador dinamarquês não tem uma novidade maior que esta, e apesar das críticas que faz ao romantismo6. Às coisas do amor, se ainda permanecemos em Kierkegarrd, será preciso ir à outra obra sua, o primeiro volume de A alternativa: Diário de um sedutor... mas, mesmo aí, e o estágio do esteta que aparece, e que, como se sabe, será ultrapassado pelo ético, e, este, pelo religioso. Mas, não vou falar disso... por hora.
Se, à semelhança daquela mulher apaixonada, eu também subisse ao balcão e fizesse um discurso sobre o amor, mas dizendo o que é que ele é mesmo, de verdade, era bem capaz de tomar umas garrafadas no meio da cara, para aprender a não estragar a festa alheia.  






1 O banquete, 179 a. PLATÃO. O banquete (O Simpósio ou do Amor). Lisboa: Guimarães Editores, 1986.
2 Veja o discurso de Sócrates, reproduzindo os ensinos de Diotima, em: O banquete; e também o Fedro. PLATÃO. Fedro (ou da Beleza). 6. ed. Lisboa: Guimarães Editores, 2000.
3 Cf. O banquete, 179 b.
4 BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. Lisboa: Edições 70, 2001. p. 52.
5 Também n’O banquete, 189c–193e.
6 “A ironia trabalha com o mal-entendido. A própria banca examinadora [da tese de Kierkegaard, que resulta no referido livro] experimentou isto na carne. O orientador da tese, Prof. F. C. Sibbem, não entendeu bem a ligação da primeira com a segunda parte, enquanto outros pareceres falaram até de dois trabalhos distintos, um sobre Sócrates e outro sobre o romantismo.” (VALLS, Álvaro. L. M. Apresentação. In: KIERKEGAARD, S. A. O conceito de ironia constantemente referido a Sócrates. Petrópolis: Vozes, 1991. p. 11. [Col. Pensamento Humano]).


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