6.
O Eu, por trás de nós oculto
Ourself behind
ourself, concealed –
Should startle
most.
– Emily Dickinson*
Freud era
casado com
Martha Bernays, com quem
vivia muito bem .
A única coisa
que Freud detestava era
a religião – a judaico-cristã, em particular –
e os Estados Unidos. Conhecido como
“o pai da psicanálise (Psychoanalyse)” – literalmente: “falar
sobre (ou
estudar ) a alma ”
–, Freud acreditava que era possível compreender e tratar certas doenças mediante a análise
da alma , da mente1.
Ateu proclamado, também acreditava que as pessoas
eram constituídas de mente e corpo , e só ;
sendo a mente uma parte
do corpo . Isso
quer dizer que um problema mental pode, de
várias maneiras , atingir
o corpo ; e o tratamento
mais adequado para
o tal problema
pode não ser aquele que é
administrado diretamente ao corpo , mas à mente . Freud comparou o seu
trabalho à arqueologia :
ele escavava a mente
humana em
busca de coisas
ali enterradas, encobertas, inconscientes2. Foi assim
que ele
desenvolveu as teorias do inconsciente e do complexo de Édipo, dentre outras.
Numa viagem
que fez a Paris, entre 1885 e 86, com a finalidade
de observar os trabalhos
de Jean-Martin Charcot – que acreditava
poder fazer sumir os sintomas dos seus
pacientes histéricos ,
sob os efeitos da hipnose; e também
plantar sintomas em pessoas saudáveis –, o jovem Freud se convenceu de que o problema
de muitos daqueles pacientes
(como a paralisia ,
por exemplo )
não eram físicos ,
mas mentais .
Ele , todavia ,
não adotaria a hipnose
como tratamento
– embora tenha se utilizado dela por um curto período . Permitindo que as pessoas
simplesmente falassem dos seus problemas, Freud desenvolveu o método da livre
associação: por meio do que dizem, as pessoas ,
inconscientemente , revelam algo sobre a raiz (ou o fundamento ) dos seus
problemas psíquicos.
Caso famoso ,
de livre associação ,
é o do “homem dos ratos ”3 – que Freud descreveu em suas Notas sobre um caso de neurose obsessiva,
texto de 1909. O tal homem ,
muito gordo ,
decidiu que tinha
de perder peso .
Deixou de comer doces ,
passou a correr ao sol
e escalar montes
até ficar
exaurido. Acontece que a palavra “gordo ”,
em alemão , é
“dick”; e Dick era o apelido de Richard, um
primo seu ,
americano . O “homem
dos ratos ” tinha
ciúmes de Dick, que
demonstrava demasiado interesse por
uma garota que
era o amor
da sua vida .
Assim , livrar-se da gordura
significava, para ele ,
livrar-se de Dick. Por meio de sofridas dietas, ele
não castigava a si
mesmo , mas
a Dick, seu oponente .
Nós também ,
inconscientemente , fazemos isto o tempo todo : o outro , que nos oprime,
nós o punimos em
nós mesmos .
É assim que ,
quando você
ouve uma canção que lembra um amor
perdido, ou chora por um amor que nem chegou
a ser “seu ”, você está se auto comiserando, punindo o outro que está em você – seja na saudade dolorida
ou na raiva reprimida, recalcado. O mesmo acontece quando
alguém bebe ou tem crises de sono. Na
embriaguez ou no sono, tenta-se esquecer um problema qualquer, uma dor qualquer. Essa “fuga ”, ou punição do outro
em nós, acontece de muitas e variadas
maneiras – até mesmo no prêmio da boa ação, ou na virtude4.
Por cima de tudo está em questão a nossa
própria sobrevivência, física e mental.
Isso tudo
pode explicar, talvez, o problema da “mulher dos gatos ”.
Ela amava João, que
não a amava, porque
somente conseguia pensar em
Alice. Quem ficou sabendo dessa sua paixão , e
sofreu por isso ,
porque a amava, foi Augusto .
Um dia ,
numa conversa que
a “mulher dos gatos ”
teve com João, ele
retirou-lhe todas as esperanças de um futuro romance . E ela
viu o seu horizonte
turvar sob um céu
encarvoado, de uma opacidade inenarrável. Como doía! O mundo
todo , num instante ,
perdeu a cor. Ela, tempos depois , ainda com
as palavras de João voando por sua mente,
e sabendo dos sentimentos de Augusto, retirou-lhe todas as esperanças
de um futuro
romance . E ele viu o seu sol dizer adeus
por sobre o horizonte, e a noite fria desabar sobre o seu mundo. O crepúsculo. Ah!,
o crepúsculo!, a hora mais triste do
dia; metáfora de um adeus .
A “mulher
dos gatos ”, inconscientemente ,
condenando Augusto ao desterro , condenava não
a ele , exatamente
– e nem o fazia por
maldade –, mas ,
de modo indireto ,
vingava-se de João, punindo-o pelo que fizera a ela .
O mando da situação ,
ao contrário da cena
do capítulo anterior ,
agora lhe pertencia, estava ao seu favor , sob seu controle . Assim, e de algum
modo , ela reassumia a sua posição no
jogo romântico. Aqui, na arrogância ou na modéstia, é o Eu quem manda, quem
mais aparece. A modéstia:
A modéstia – diz Schopenhauer – é uma virtude inventada
principalmente para uso dos velhacos, porque exige que cada qual fale de si
como se fosse um; isso estabelece uma igualdade de nível admirável e produz a
mesma aparência, como se não houvesse, em geral, mais que velhacos.5
É claro que não há uma precisão
científica sobre tudo isso, e nem uma regra sobre a ação – o mesmo vale para o
homem que bebe, para esquecer um infortúnio amoroso, ou outro (que alguém possa,
falsamente, associar a algo que não envolva amor). Muitas das teorias de Freud,
como Richard Webster mostra, foram construídas sobre erros e juízos equivocados6. Seja como for, amar ou ser amado
faz parte de um
jogo que ,
geralmente , perdemos: ganhamos e, aí, nos perdemos de nós, no outro (que é a
inautenticidade); perdemos e, daí, o sofrimento, a dor da rejeição. Ninguém gosta de perder. Mas, no jogo romântico, não há opção.
É, novamente, o pêndulo de Schopenhauer.7
Por trás
de tudo , emergindo do id , está o nosso Ego,
amando ou odiando (punindo) o Outro,
nosso objeto. No final, é a nós mesmos que punimos – e tudo por amor.
* “O ‘eu’, por trás de nós oculto, / É
muito mais assustador.” (DICKINSON, Emily. Poemas escolhidos. Porto Alegre: L&PM, 2007. p. 57. [Col. L&PM Pocket,
436]).
1 “O principal
da terminologia técnica da psicanálise”, diz Laplanche e Pontalis, “é obra de
Freud.” (LAMPLANCHE, Jean. Prefácio. In: _____. Vocabulário da psicanálise / Laplanche e Pontalis. 4. ed. São
Paulo: Martins Fones, 2001. p. VI). “Freud empregou inicialmente os termos análise, análise psíquica, análise
psicológica, análise hipnótica,
no seu primeiro artigo As psiconeuroses
de defesa (Die Abwehr-Neuropsychosen,
1894). Só mais tarde introduziu o termo psycho-analyse num artigo sobre a
etiologia das neuroses publicado em francês.” (LAPLANCHE, 2001, p. 385).
2 Mirando o inconsciente
(das Unbewwusste, unbewusst), convém diferenciar psicanálise
de psicologia. “O nome é as ideias de Sigmund Freud são tão familiares ao
público em geral que a psicologia é às vezes identificada com a teoria
psicanalítica, denominação genérica para as ideias freudianas a respeito da
personalidade, da anormalidade e do tratamento. A teoria psicanalítica é,
naturalmente, apenas uma teoria psicológica. [...] Freud nunca tentou
influenciar a psicologia acadêmica.” (DAVIDOFF, Linda L. Introdução à psicologia. São Paulo: McGraw-Hill do Brasil, 1983. p.
15). “Freud definiu a Psicanálise como um conjunto de ideias sobre o
funcionamento psíquico, uma técnica de tratamento e um meio de investigar o
inconsciente. Nesta definição englobou tanto a pesquisa quanto a terapêutica.
No entanto, ele próprio afirmou que tais aspectos não são necessariamente
coincidentes e que os objetivos de pesquisar e de tratar podem ser separados.
[...] Ele abriu [...] avenidas para todos aqueles que quisessem utilizar-se de
suas descobertas e aplica-las de modos diferentes dos seus.” (MOREIRA FILHO,
Alonso Augusto. Prefácio. In: _____. Psicoterapias
de inspiração psicanalítica. Rio de Janeiro: DP&A, 1999. p. 7). A
psicanálise, como a psicologia, “não é um corpo de conhecimentos nem unificado,
nem completo”. (DAVIDOFF, 1983, p. 5). Isso é evidente, em meu texto.
3 FREUD, Sigmund.
Notas sobre um caso de neurose obsessiva. In: STRACHEY, J. (Org.). Edição Standard brasileira das obras psicológicas
completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda. 1975. p.
159-325. v. 10. 24 v.
4 Como no
verso do Hamlet, de Shakespeare, citado
por Schopenhauer: “Acima de tudo sê fiel a ti mesmo: / Disso se segue, como a
noite ao dia, / Que não podes ser falso com ninguém.” (SCHOPENHAUER, Arthur. A arte de conhecer a si mesmo. São
Paulo: Martins Fontes, 2009. p. 16). Não há como não ser fiel a si mesmo, por um ou outro viés.
5 SCHOPENHAUER,
Arthur. Arte del buen vivir. Madrid:
EDAF. p. 101. (Col. Biblioteca EDAF de Bolsillo, 47).
6 “Ainda que a
relação de Freud com o conhecimento se ‘assemelhe’ à de um profeta messiânico,
ele mesmo reivindicou, de maneira triunfal, o título de ‘cientista’. A
psicanálise, ele escreveu, ‘colocou-nos em posição de dotar a psicologia de
fundamentos similares aos de qualquer outra ciência, tal como a física’. A
crença de Freud de que estava construindo uma ciência genuína é crucial para
qualquer entendimento da maneira pela qual a psicanálise se desenvolveu. Foi
seu implacável e redutor cientificismo que, somado à sua compulsiva necessidade
por fama, levou Freud cada vez mais longe em um labirinto de erros.” (WEBSTER,
Richard. Freud. São Paulo: Editora
UNESP, 2006. p. 53. (Col. Grandes Filósofos).
7 A nossa
“vida [...] oscila como um pêndulo, para aqui e para acolá, entre a dor e o
tédio”. (SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo
como Vontade e como Representação. São Paulo: Editora UNESP, 2005. p. 402.
[IV, 57]).