segunda-feira, 27 de junho de 2011

24.


Um discurso em favor do herege


Quando Agostinho procurou uma autoridade que fundamentasse a utilização da filosofia pela teologia, diferentemente de Tertuliano e ao contrário deste, não foi em são Paulo – que julgava o maior entre os escritores neotestamentários, e a mais genial das mentes cristãs – que ele a encontrou, mas em uma alegoria, que criou ao interpretar a saída dos judeus do Egito, carregados com seu ouro – e com a prata e os bens que utilizariam na construção de um templo para Deus, e para o seu culto –, como uma “deixa” para o uso sagrado que pode ser dado às riquezas de origem pagãs. A legitimação, limitada, como se vê, fez emudecer, ilimitadamente, aquelas palavras ácidas e réprobas do Apóstolo, que se opõe claramente ao “inquiridor deste século, à sabedoria deste mundo”, aos que tomam o evangelho como loucura (μωρίαν). Daí se compreende a ênfase que ele dá ao modo simples do anúncio do seu evangelho entre os cristãos de Corinto – “Irmãos, quando fui à vossa cidade anunciar-vos o mistério de Deus, não recorri a uma linguagem elevada ou ao prestígio da sabedoria humana. Pois, entre vós, não julguei saber coisa alguma, a não ser Jesus Cristo, e este crucificado. Aliás, eu estive junto de vós, com fraqueza e receio, e muito tremor. Também a minha palavra e a minha pregação não tinham nada dos discursos persuasivos da sabedoria, mas eram uma demonstração do poder do Espírito, para que a vossa fé se baseasse no poder de Deus e não na sabedoria dos homens.” –, e, por extensão, nos demais lugares por onde andou, anunciando o que acreditava ser a verdadeira doctrina christiana.
Neste sentido, e se queremos ser honestos com a história e com seus personagens, Tertuliano, apesar dos excessos dos seus erros teológicos – e que teólogo esteve isento deles? –, está mais próximo do Apóstolo que o próprio Agostinho. Três exemplos:

1. “Eis as doutrinas de homens e demônios, nascidas do engenho da sabedoria mundana para encantar os ouvidos. Esta é a sabedoria que o Senhor chama de estultície, aquele mesmo Senhor que, para confundir também a mesma filosofia, escolheu o que passa por estulto aos olhos do mundo.” (De praescriptione haereticorum, c. 7).

2. “Eis aí [no idealismo platônico e na dialética aristotélica] a origem daquelas fábulas e genealogias intermináveis, daquelas questões estéreis, daqueles discursos que se propagam como um cancro; é contra eles que nos alerta o Apóstolo, designando expressamente a filosofia como algo de que é preciso acautelar-se, ao escrever aos Colossenses: ‘Estai alerta, para que ninguém vos colha no laço da filosofia e de vãos sofismas, baseados em tradições humanas’ e contrários à providência do Espírito Santo. É que ele estivera em Atenas, e nos congressos ali realizados viera a conhecer a sabedoria humana, esta arrematadora e adulteradora da verdade.” (De praescriptione haereticorum, c. 7).

3. “Nossa religião sabe que seu destino é ser estrangeira sobre esta terra e que sempre terá adversários. É no céu que ela tem sua sede, suas esperanças, seu crédito e sua glória. A única coisa a que aspira é não ser condenada sem ter sido ouvida.” (Apologeticum, 1; PL. 1, 306-317).

Tertuliano não deseja que a doctrina christiana (que não entende ser uma “filosofia”) seja aceita, compreendida, elogiada; quer tão somente que seja respeitada. E é por essas e outras colocações incrivelmente modernas que ele, como dizem Philotheus Boehner e Etienne Gilson, “tem sido muito aplaudido por sua defesa da liberdade de consciência em matéria religiosa.” Talvez, hoje, e mesmo contra certas noções que defendia, Tertuliano seja muito necessário às novas teologias; talvez, hoje, e mais que nunca, seja necessário um discurso em favor desse herege.


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