23.
Do crer e do pensar
O Nominalismo, principalmente na figura de Guilherme de Ockham, foi a maior de todas as escolas filosóficas; porque procurava dar o devido lugar à filosofia (enquanto ciência) e à teologia (enquanto... teologia) – coisa confusa na Idade Média, desde que prevaleceu o credo ut intelligam de Agostinho de Hipona. Mesmo a cisão entre os governos da Igreja e dos príncipes, por tal “navalha”, foi cortejada em suas grandes linhas, como germe daquela separação que somente viria bem depois, entre a Igreja e o Estado. Também Tertuliano, se não tivesse uma hermenêutica tão decadente, uma teologia tão estática, e se não tivesse se bandeado para a seita de Montano, poderia ter sido, com justiça, na história da teologia, não menor que o próprio Agostinho – uma vez que, diferentemente deste, questionava a união da Academia com a Igreja, de Atenas com Jerusalém, do helenismo com a doutrina cristã. A teologia cristã – depois de Agostinho, e pela enorme influência que ele exerceu com o seu gênio e suas tantas e variadas obras –, que se dizia senhora da filosofia (philosofia ancilla theologiae), caiu do seu pomposo trono, e a escrava o assumiu. Parte de tal “culpa” (?), porém, já é, aí, herança de Filo de Alexandria, judeu helenizado [veja na citação nº 1, abaixo]. Uma filosofia cristã? Como seria possível? Não seria; não é. E, se chega a “ser”, não é mesmo, em sua legitimidade racionalmente exclusiva. A filosofia helênica foi para a doutrina cristã o mesmo que o Cavalo de Tróia para os troianos: presente de grego. Daí Nietzsche dizer, com toda a razão deste mundo, e neste sentido particular: “Cristianismo é platonismo para o povo.” É só olhar para trás, Helena; só olhar.
1. “Como as ciências encíclicas (ta enkuklia) ajudam a perceber a filosofia, do mesmo modo a filosofia ajuda a adquirir a sabedoria. Porque a filosofia é o estudo da sabedoria, a sabedoria é a ciência das coisas divinas e humanas e de suas causas. Portanto, do mesmo modo que o ciclo de atividades devotadas às Musas (hè egkuklios mousikè) é o escravo da filosofia, assim também a filosofia é escrava da sabedoria. A filosofia ensina a dominar o ventre, o baixo-ventre, a dominar também a língua. Esse domínio, dizem, merece ser escolhido por si mesmo, mas teria um caráter mais sublime, se fosse buscado para honrar a Deus e agradá-lo; é preciso pois que guardemos a lembrança de nosso soberano, quando queremos cortejar suas servas (therapainidas), podemos admitir que nos tenham por seus maridos, com a condição de que o Outro seja a nossa verdadeira mulher e não tenha somente o nome”. (Filo de Alexandria [10/15 a.C.], De congressu eruditionis gratia, 79-80).
2. “Os pagãos [do Egito] deram seu ouro, sua prata, suas vestes ao povo de Deus, ao sair do Egito, porque ignoravam que esses dons passariam ao serviço de Cristo. Esse fato narrado no Êxodo é, sem dúvida alguma, figura que simbolizava, de antemão, o que acabo de dizer, sem que isso impeça, aliás, alguma outra explicação de igual valor ou talvez melhor.” (Santo Agostinho [354-430], De doc. christ., II, C 41,62).