quarta-feira, 29 de junho de 2011

Escousses exegético-psicológicos


25.


Das máscaras da civilidade ocidental


A civilização ocidental, desde muito, escondeu-se sob duas máscaras: Deus e a “pessoa humana”. Maquiou assim, com algum sucesso, o cru e o vazio que é a barbárie do humano limpo, o si-mesmo (o autêntico que não é si-mesmo senão como inautêntico); na negação artificial de ser aquilo que se é, e, eo ipso, sendo não-si-mesmo – situação (mesmo quando posicionamento inconsciente) existencial que passa a ser o seu estado mais “puro” e “natural”. Nada mais verdadeiro e revelador que a máxima de Plauto (proferida duzentos anos antes de Cristo), popularizada depois por Hobbes, no Leviatã (publicado em 1651), tratando sobre o homem em seu estado natural, sem Lei: homo homini lupus. Nada mais mentiroso e dissimulado que a máxima cartesiana: “O bom senso é a coisa melhor partilhada entre os homens”. O contrário é bem verdadeiro. Heidegger apoia Hobbes, e opõe-se à Descartes, quando fala do Eu inautêntico, dizendo que “Ninguém é si-mesmo”. Sim: somos o resultado das convenções seculares, dos muitos olhos que nos indicam as melhores vias, e nos vigiam, previnem, punem; e somos, não por fim, o que deixamos que nos façam os governos e/ou a fé majoritária do grupo onde estamos lançados. Essa inautenticidade é o que, sob todas as formas, foi nomeada como “civilização”, “civilidade” – e assim o círculo se fechou (ou foi sendo fechado, aos ditames da irracionalidade cega de consciências menores, submissas à Vontade, sem um senso crítico acerca da espontaneidade da vida e/ou da inevitabilidade da morte como... simul finis) –, na representação tola do progresso: esse grande embuste da inteligência superior, da animalidade pseudo-domada. É por isso que o “amor” – a palavra mais doce e mentirosa dessa “civilização” construída, inventada –, principalmente à ocidentalidade platônico-aristotélico-cristã, precisa ser constantemente re-definido, re-vivido, re-inventado. Dai nascem todas as guerras, todas as religiões e, ipso facto, todas as mentiras de progressos e finais felizes.


segunda-feira, 27 de junho de 2011

24.


Um discurso em favor do herege


Quando Agostinho procurou uma autoridade que fundamentasse a utilização da filosofia pela teologia, diferentemente de Tertuliano e ao contrário deste, não foi em são Paulo – que julgava o maior entre os escritores neotestamentários, e a mais genial das mentes cristãs – que ele a encontrou, mas em uma alegoria, que criou ao interpretar a saída dos judeus do Egito, carregados com seu ouro – e com a prata e os bens que utilizariam na construção de um templo para Deus, e para o seu culto –, como uma “deixa” para o uso sagrado que pode ser dado às riquezas de origem pagãs. A legitimação, limitada, como se vê, fez emudecer, ilimitadamente, aquelas palavras ácidas e réprobas do Apóstolo, que se opõe claramente ao “inquiridor deste século, à sabedoria deste mundo”, aos que tomam o evangelho como loucura (μωρίαν). Daí se compreende a ênfase que ele dá ao modo simples do anúncio do seu evangelho entre os cristãos de Corinto – “Irmãos, quando fui à vossa cidade anunciar-vos o mistério de Deus, não recorri a uma linguagem elevada ou ao prestígio da sabedoria humana. Pois, entre vós, não julguei saber coisa alguma, a não ser Jesus Cristo, e este crucificado. Aliás, eu estive junto de vós, com fraqueza e receio, e muito tremor. Também a minha palavra e a minha pregação não tinham nada dos discursos persuasivos da sabedoria, mas eram uma demonstração do poder do Espírito, para que a vossa fé se baseasse no poder de Deus e não na sabedoria dos homens.” –, e, por extensão, nos demais lugares por onde andou, anunciando o que acreditava ser a verdadeira doctrina christiana.
Neste sentido, e se queremos ser honestos com a história e com seus personagens, Tertuliano, apesar dos excessos dos seus erros teológicos – e que teólogo esteve isento deles? –, está mais próximo do Apóstolo que o próprio Agostinho. Três exemplos:

1. “Eis as doutrinas de homens e demônios, nascidas do engenho da sabedoria mundana para encantar os ouvidos. Esta é a sabedoria que o Senhor chama de estultície, aquele mesmo Senhor que, para confundir também a mesma filosofia, escolheu o que passa por estulto aos olhos do mundo.” (De praescriptione haereticorum, c. 7).

2. “Eis aí [no idealismo platônico e na dialética aristotélica] a origem daquelas fábulas e genealogias intermináveis, daquelas questões estéreis, daqueles discursos que se propagam como um cancro; é contra eles que nos alerta o Apóstolo, designando expressamente a filosofia como algo de que é preciso acautelar-se, ao escrever aos Colossenses: ‘Estai alerta, para que ninguém vos colha no laço da filosofia e de vãos sofismas, baseados em tradições humanas’ e contrários à providência do Espírito Santo. É que ele estivera em Atenas, e nos congressos ali realizados viera a conhecer a sabedoria humana, esta arrematadora e adulteradora da verdade.” (De praescriptione haereticorum, c. 7).

3. “Nossa religião sabe que seu destino é ser estrangeira sobre esta terra e que sempre terá adversários. É no céu que ela tem sua sede, suas esperanças, seu crédito e sua glória. A única coisa a que aspira é não ser condenada sem ter sido ouvida.” (Apologeticum, 1; PL. 1, 306-317).

Tertuliano não deseja que a doctrina christiana (que não entende ser uma “filosofia”) seja aceita, compreendida, elogiada; quer tão somente que seja respeitada. E é por essas e outras colocações incrivelmente modernas que ele, como dizem Philotheus Boehner e Etienne Gilson, “tem sido muito aplaudido por sua defesa da liberdade de consciência em matéria religiosa.” Talvez, hoje, e mesmo contra certas noções que defendia, Tertuliano seja muito necessário às novas teologias; talvez, hoje, e mais que nunca, seja necessário um discurso em favor desse herege.


domingo, 26 de junho de 2011

23.


Do crer e do pensar


O Nominalismo, principalmente na figura de Guilherme de Ockham, foi a maior de todas as escolas filosóficas; porque procurava dar o devido lugar à filosofia (enquanto ciência) e à teologia (enquanto... teologia) – coisa confusa na Idade Média, desde que prevaleceu o credo ut intelligam de Agostinho de Hipona. Mesmo a cisão entre os governos da Igreja e dos príncipes, por tal “navalha”, foi cortejada em suas grandes linhas, como germe daquela separação que somente viria bem depois, entre a Igreja e o Estado. Também Tertuliano, se não tivesse uma hermenêutica tão decadente, uma teologia tão estática, e se não tivesse se bandeado para a seita de Montano, poderia ter sido, com justiça, na história da teologia, não menor que o próprio Agostinho – uma vez que, diferentemente deste, questionava a união da Academia com a Igreja, de Atenas com Jerusalém, do helenismo com a doutrina cristã. A teologia cristã – depois de Agostinho, e pela enorme influência que ele exerceu com o seu gênio e suas tantas e variadas obras –, que se dizia senhora da filosofia (philosofia ancilla theologiae), caiu do seu pomposo trono, e a escrava o assumiu. Parte de tal “culpa” (?), porém, já é, aí, herança de Filo de Alexandria, judeu helenizado [veja na citação nº 1, abaixo]. Uma filosofia cristã? Como seria possível? Não seria; não é. E, se chega a “ser”, não é mesmo, em sua legitimidade racionalmente exclusiva. A filosofia helênica foi para a doutrina cristã o mesmo que o Cavalo de Tróia para os troianos: presente de grego. Daí Nietzsche dizer, com toda a razão deste mundo, e neste sentido particular: “Cristianismo é platonismo para o povo.” É só olhar para trás, Helena; só olhar.

Dois textos clássicos para a "legitimação" do uso da Filosofia na Teologia:

1. “Como as ciências encíclicas (ta enkuklia) ajudam a perceber a filosofia, do mesmo modo a filosofia ajuda a adquirir a sabedoria. Porque a filosofia é o estudo da sabedoria, a sabedoria é a ciência das coisas divinas e humanas e de suas causas. Portanto, do mesmo modo que o ciclo de atividades devotadas às Musas (hè egkuklios mousikè) é o escravo da filosofia, assim também a filosofia é escrava da sabedoria. A filosofia ensina a dominar o ventre, o baixo-ventre, a dominar também a língua. Esse domínio, dizem, merece ser escolhido por si mesmo, mas teria um caráter mais sublime, se fosse buscado para honrar a Deus e agradá-lo; é preciso pois que guardemos a lembrança de nosso soberano, quando queremos cortejar suas servas (therapainidas), podemos admitir que nos tenham por seus maridos, com a condição de que o Outro seja a nossa verdadeira mulher e não tenha somente o nome”. (Filo de Alexandria [10/15 a.C.], De congressu eruditionis gratia, 79-80).

2. “Os pagãos [do Egito] deram seu ouro, sua prata, suas vestes ao povo de Deus, ao sair do Egito, porque ignoravam que esses dons passariam ao serviço de Cristo. Esse fato narrado no Êxodo é, sem dúvida alguma, figura que simbolizava, de antemão, o que acabo de dizer, sem que isso impeça, aliás, alguma outra explicação de igual valor ou talvez melhor.” (Santo Agostinho [354-430], De doc. christ., II, C 41,62).



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