domingo, 15 de agosto de 2010

Do desejo e da falta

1.

Diferentemente do conceito de “Ser”, em Heidegger, o amor não é uma coisa indefinível. Aliás, por tanto ser, nós, carentes de absolutos, absolutivizamos o que é tão natural, físico, biológico. Absolutivizamos porque desejamos que aquilo que amamos seja eterno. E o amor é um desejo de felicidade, de eterna felicidade, como afirma Nietzsche por boca de Zaratustra 11. Ora, somente desejamos – algo que fica sempre adiante de nós, como perspectiva – o que ainda não temos. Assim, o desejo vem antes da felicidade; que é aquilo que, através do amor, por exemplo, pensamos poder conseguir, reter. Mas, como continuar desejando o que já se tem?

O ter o que se queria (e não o que se quer) está, no presente, como não-desejo, pois é o já realizado; não mais “existindo”, portanto, como “não-existente”, adiante de nós, perspectiva. Como o querer o que se tem – o não-desejo – pode ser querer real, desejo no não-desejo? Longe do infame joguete de palavras, parece que a resposta repousa num sempre-querer, querer do que se já tem e, por isso mesmo, nada mais querer, nada mais desejar, nada mais esperar... uma completa desesperança. O “querer algo” nunca é, realmente, “querer algo”, mas querer-si-mesmo 12.

2.

O sentido de ainda-querer, aqui, liga-se a uma permanência própria da querença na não-querença, a Vontade – que é a um só tempo, eterno retorno do mesmo. O desejo amoroso, ou o querer amar é, assim, o desejo de uma felicidade eterna. Desejo, todavia, é falta, é querença, é não ter o que se quer, e é, por fim, nas palavras de Schopenhauer, a infelicidade (ou o sofrimento) de, tendo-o, um tédio resultante do não querer o que se tem. É assim que André Comte-Sponville, interpretando essa máxima de Schopenhauer, diz: “Ora amamos quem não temos, e sofremos com essa falta: é o que se chama de um tormento amoroso; ora temos quem não nos falta e nos entediamos: é o que chamamos um casal. E é raro que isso baste à felicidade. É o que Schopenhauer, como discípulo genial de Platão, resumirá bem mais tarde, no século XIX, numa frase que costumo dizer que é a mais triste da historiada filosofia [A vida oscila pois, como um pêndulo, da direita para a esquerda, do sofrimento ao tédio]. Quando desejo o que não tenho, é a falta, a frustração, o que Schopenhauer chama de sofrimento. E quando o desejo é satisfeito? não é sofrimento, uma vez que nãodesejo. É o que Schopenhauer chama de tédio, que é a ausência da felicidade no lugar mesmo da sua presença esperada. [...] Sofrimento porque eu desejo o que não tenho e porque sofro com essa falta; tédio porque tenho o que, por conseguinte, não desejo” 13.

3.

O amor nasce do desejo de felicidade. Mas o desejo, embora potência, é falta, e a falta é sofrimento. É sofrimento porque não é nem sublime, nem alcançável – pois escapa sempre, como um gozo que momentaneamente se tem, mas que não pode ser retido, carecendo sempre de um outro, e de um outro sempre por vir. Mas esse amor, desejo de amar, não é mais que um engodo da vontade de permanência – o instinto primitivo sublimado. “É uma ilusão de voluptuosidade que faz cintilar aos olhos do homem a imagem enganadora de uma felicidade soberana nos braços da formosura que a seu ver nenhuma outra criatura humana se igualha; outra ilusão ainda, quando imagina que a posse de um único ente no mundo lhe assegura uma felicidade sem medida e sem limites” 14.

4.

A paixão que “se tem pelo Outro” – nenhuma paixão é pelo Outro, realmente –, por esse viés, revela-se como com-paixão de si-mesmo, porque também o Outro é instrumento da Vontade; e daí decorre a idéia que temos de justiça: fazendo-a ao Outro, a nós mesmos fazemos. Todo amor é compaixão, e o Outro é seu/nosso instrumento. A Vontade apresenta-se desde cedo no instinto de sobrevivência; mas, nos seres humanos, diferentemente dos animais, vai além – porque eles podem pensá-la.


NOTAS:

11 “A dor diz: ‘Passa, momento!’ / Mas quer todo o prazer eternidade – / Quer profunda, profunda eternidade!”. NIETZSCHE, Friedrich W. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Trad. de Mário da Silva. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 325.

12 Cf. SCHOPENHAUER, 1993, p. 439-60. (IV, § 62).

13 COMTE-SPONVILLE, André. A felicidade, desesperadamente. Trad. de Eduardo Bradão. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 35. A citação de Schopenhauer, utilizada por Conmte-Sponville, encontra-se em SCHOPENHAUER, 1951, p. 23: “A vida do homem oscila, como uma pêndula, entre a dor e o tédio, tais são na realidade os seus dois últimos elementos. Os homens tiveram que exprimir esta idéia de um modo singular; depois de haverem feito do inferno o lugar de todos os tormentos e de todos os sofrimentos, que ficou para o céu? Justamente o aborrecimento”.

14 SCHOPENHAUER, Arthur. El amor, las mujeres e otros ensayos. Trad. de Miguel Urquiola. Madrid: Editorial EDAF, S. A., 1993. p. 54.

Continua...

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