Do desejo e da falta
1.
Diferentemente do conceito de “Ser”, em Heidegger, o amor não é uma coisa indefinível. Aliás, por tanto ser, nós, carentes de absolutos, absolutivizamos o que é tão natural, físico, biológico. Absolutivizamos porque desejamos que aquilo que amamos seja eterno. E o amor é um desejo de
O ter o que se queria (e não o que se quer) está, no presente, como não-desejo, pois é o já realizado; não mais “existindo”, portanto, como “não-existente”, adiante de nós, perspectiva. Como o querer o que se tem – o não-desejo – pode ser querer real, desejo no não-desejo? Longe do infame joguete de palavras, parece que a resposta repousa num sempre-querer, querer do que se já tem e, por isso mesmo, nada mais querer, nada mais desejar, nada mais esperar... uma completa desesperança. O “querer algo” nunca é, realmente, “querer algo”, mas querer-si-mesmo 12.
2.
O sentido de ainda-querer, aqui, liga-se a uma permanência própria da querença na não-querença, a Vontade – que é a um só tempo, eterno retorno do mesmo. O
3.
O amor nasce do desejo de felicidade. Mas o desejo, embora potência, é falta, e a falta é sofrimento. É sofrimento porque não é nem sublime, nem alcançável – pois escapa sempre, como um gozo que momentaneamente se tem, mas que não pode ser retido, carecendo sempre de um outro, e de um outro sempre por vir. Mas esse amor, desejo de amar, não é mais que um engodo da vontade de permanência – o instinto primitivo sublimado. “É uma ilusão de voluptuosidade que faz cintilar aos olhos do homem a imagem enganadora de uma felicidade soberana nos braços da formosura que a seu ver nenhuma outra criatura humana se igualha; outra ilusão ainda, quando imagina que a posse de um único ente no mundo lhe assegura uma felicidade sem medida e sem limites” 14.
4.
A paixão que “se tem pelo Outro” – nenhuma paixão é pelo Outro, realmente –, por esse viés, revela-se como com-paixão de si-mesmo, porque também o Outro é instrumento da Vontade; e daí decorre a idéia que temos de justiça: fazendo-a ao Outro, a nós mesmos fazemos. Todo amor é compaixão, e o Outro é seu/nosso instrumento. A Vontade apresenta-se desde cedo no instinto de sobrevivência; mas, nos seres humanos, diferentemente dos animais, vai além – porque eles podem pensá-la.
NOTAS:
11 “A dor diz: ‘Passa, momento!’ / Mas quer todo o prazer eternidade – / Quer profunda, profunda eternidade!”. NIETZSCHE, Friedrich W. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Trad. de Mário da Silva. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. p. 325.
12 Cf. SCHOPENHAUER, 1993, p. 439-60. (IV, § 62).
13 COMTE-SPONVILLE, André. A felicidade, desesperadamente. Trad. de Eduardo Bradão. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p.
14 SCHOPENHAUER, Arthur. El amor, las mujeres e otros ensayos. Trad. de Miguel Urquiola. Madrid: Editorial EDAF, S. A., 1993. p. 54.
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