sexta-feira, 12 de abril de 2013


34.





Do amor enquanto uma “teoria do ideal inatingível”


Como nas exigências impossíveis que faz aos que querem segui-lo, no Sermão da Montanha1 – que a ortodoxia luterana chamou de “teoria do ideal inatingível” (Unerfüllbarkeitstheorie)2 –, o Cristo também, no evangelho de são Lucas, exige outras impossibilidades:

Se alguém quer ser meu seguidor, que esqueça os seus próprios interesses, esteja pronto cada dia para morrer como eu vou morrer e me acompanhe. Pois quem põe os seus próprios interesses em primeiro lugar nunca terá a vida verdadeira; mas quem esquece a si mesmo por minha causa terá a vida verdadeira.3

“... que esqueça os seus próprios interesses”, “pois quem põe os seus próprios interesses em primeiro lugar nunca terá a vida verdadeira; mas quem esquece a si mesmo por minha causa terá a vida verdadeira.” Ah!, que ideal tão nobre – também presente no budismo, para o alcance do Nirvana e a cessação do ciclo de renascimentos –, o esquecer-se de si. A busca por sua realização, porém, não pode ser senão por um colocar os “próprios interesses em primeiro lugar”, senão não há qualquer ação, e nem a consequência que, “exitosa”, é  ou seria – absurdamente paradoxal ao seu propósito: “nunca terá a vida verdadeira”. Ademais, o “quem esquece a si mesmo por minha causa”, com a promessa de que esse “terá a vida verdadeira”, não é possível porque, em primeiríssimo lugar, e para o bem ou para o mal: somos nós que estamos, fatalmente, atrás de tal esquecimento, que só seria possível em nós mesmos, por nós mesmos. E como saberíamos? É um paradoxo inevitável. O Cristo exige o impossível.
Mas, talvez seja apenas uma maneira que ele tenha de, como sempre, dizer aos seus: “Se não for mediante a graça” – que faz tudo cair, novamente, no ágape (ἀγάπη) –, “vocês estão perdidos, inapelavelmente.” Sim, pois como nos três primeiros versículos de 1 Coríntios 13, de nada adianta o esforço do penitente, se ele não estiver sob o ágape4. No final, e “ainda que...”, tudo termina como o metal que soa, e como o sino que tine, e nada tem aproveitamento substancial depois de todo o esforço empreendido.
Como é possível “esquecer os seus próprios interesses” sem que se coloque “os próprios interesses em primeiro lugar”? Não há saída para o amor senão no amor; ou: não há saída contra o amour-propre senão no ágape, que “não é um amor humano. Que enorme conflito isso seria se isso... fosse. O “conflito”, aqui, porém, é mera ideologia, construção teológica, doutrina metafísica, romantismo religioso. 
Como parece bem claro – e espero honestamente já ter demonstrado isso satisfatoriamente –, o amour-propre prevalece sempre, e não há como apelar contra ele senão incitando-o e, nisso, reafirmando-o ainda mais soberano; como nos sermões que os pregadores fazem domingo após domingo, escondidos atrás dos púlpitos de suas igrejas. Quanto mais o indivíduo se mostrar piedoso (religiosamente falando), tanto mais egoísta ele será. Não há violência aqui senão na conceituação da piedade, contra o Eu. E o discurso do Cristo, contra isso, é mesmo uma Unerfüllbarkeitstheorie, uma “teoria do ideal inatingível”.






1 Conjunto de discursos atribuídos ao Cristo, que estão mais organizados e mais completos no evangelho de são Mateus (capítulos 5 a 7). Santo Agostinho foi o primeiro a nomeá-los como um “Sermão do Senhor sobre o monte”, e o primeiro a comentá-lo de modo doutrinal, bíblico-expositivo, exegético-hermenêutico. Cf. AGOSTINHO, Santo. O sermão da montanha. São Paulo: Paulinas, 1992. (Col. Espiritualidade).  
2 Nesse sentido, ver: JEREMIAS, J. O sermão da montanha. 5. ed. São Paulo: Edições Paulinas, 1984. p. 12. (Col. A Palavra Viva).
3 Lucas, 9, 23-4; NTLH.
4 Nos referidos: “Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, e não tivesse amor, seria como o metal que soa, ou como o sino que tine. Ainda que eu tivesse o dom de profecia, e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, e ainda que eu tivesse toda a fé, de maneira tal que transportasse os montes, e não tivesse amor, nada seria. E ainda que eu distribuísse toda a minha fortuna para o sustento dos pobres, e ainda que entregasse o meu corpo para ser queimado, e não tivesse amor, nada disso me aproveitaria.” (1 Coríntios 13, 1-3; ECA). À fórmula “ainda que...”, constante nos três primeiros versículos, a conclusão é o inevitável fracasso, na ausência de ágape – que é como aparece no original grego. Tratei sobre o Sermão do Monte e sobre todas essas colocações, com mais profundidade, no capítulo 2 da minha tese de doutorado: A filosofia/teologia moral de Santo Agostinho: dos antecedentes gregos à apropriação e interiorização do elemento cristão e sua recepção no Brasil colonial (1500-1808). São Leopoldo: EST/PPG, 2009. p. 89-123. (Tese de doutorado).



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