34.
Do amor enquanto uma “teoria do ideal inatingível”
Como nas
exigências impossíveis que faz aos que querem segui-lo, no Sermão da Montanha1 – que a ortodoxia luterana chamou de “teoria
do ideal inatingível” (Unerfüllbarkeitstheorie)2 –, o Cristo também, no evangelho de são
Lucas, exige outras impossibilidades:
Se alguém quer
ser meu seguidor, que esqueça os seus próprios interesses, esteja pronto cada
dia para morrer como eu vou morrer e me acompanhe. Pois quem põe os seus
próprios interesses em primeiro lugar nunca terá a vida verdadeira; mas quem
esquece a si mesmo por minha causa terá a vida verdadeira.3
“... que
esqueça os seus próprios interesses”, “pois quem põe os seus próprios
interesses em primeiro lugar nunca terá a vida verdadeira; mas quem esquece a
si mesmo por minha causa terá a vida verdadeira.” Ah!, que ideal tão nobre –
também presente no budismo, para o alcance do Nirvana e a cessação do ciclo de renascimentos
–, o esquecer-se de si. A busca por sua realização, porém, não pode ser senão por um colocar os “próprios interesses em primeiro lugar”, senão não há
qualquer ação, e nem a consequência que, “exitosa”, é – ou seria – absurdamente paradoxal
ao seu propósito: “nunca terá a vida verdadeira”. Ademais, o “quem esquece a si
mesmo por minha causa”, com a promessa de que esse “terá a vida verdadeira”,
não é possível porque, em primeiríssimo lugar, e para o bem ou para o mal:
somos nós que estamos, fatalmente,
atrás de tal esquecimento, que só seria possível em nós mesmos, por nós mesmos.
E como saberíamos? É um paradoxo inevitável. O Cristo exige o impossível.
Mas, talvez
seja apenas uma maneira que ele tenha de, como sempre, dizer aos seus: “Se não for mediante a graça” – que faz tudo
cair, novamente, no ágape (ἀγάπη) –, “vocês estão perdidos, inapelavelmente.” Sim, pois
como nos três primeiros versículos de 1
Coríntios 13, de nada adianta o esforço do penitente, se ele não
estiver sob o ágape4. No final, e “ainda que...”, tudo
termina como o metal que soa, e como o sino que tine, e nada tem aproveitamento
substancial depois de todo o esforço empreendido.
Como é
possível “esquecer os seus próprios interesses” sem que se coloque “os próprios
interesses em primeiro lugar”? Não há saída para o amor senão no amor; ou: não
há saída contra o amour-propre senão no
ágape, que “não é” um amor humano. Que
enorme conflito isso seria se isso... fosse. O “conflito”, aqui, porém, é mera ideologia,
construção teológica, doutrina metafísica, romantismo religioso.
Como parece
bem claro – e espero honestamente já ter demonstrado isso satisfatoriamente –,
o amour-propre prevalece sempre, e
não há como apelar contra ele senão incitando-o e, nisso, reafirmando-o ainda
mais soberano; como nos sermões que os pregadores fazem domingo após domingo, escondidos
atrás dos púlpitos de suas igrejas. Quanto mais o indivíduo se mostrar piedoso
(religiosamente falando), tanto mais egoísta ele será. Não há violência aqui
senão na conceituação da piedade, contra o Eu. E o discurso do Cristo, contra
isso, é mesmo uma Unerfüllbarkeitstheorie,
uma “teoria do ideal inatingível”.
1
Conjunto de discursos atribuídos ao Cristo, que estão mais organizados e mais completos
no evangelho de são Mateus (capítulos
5 a 7). Santo Agostinho foi o primeiro a nomeá-los como um “Sermão do Senhor
sobre o monte”, e o primeiro a comentá-lo de modo doutrinal,
bíblico-expositivo, exegético-hermenêutico. Cf. AGOSTINHO, Santo. O sermão da montanha. São Paulo:
Paulinas, 1992. (Col. Espiritualidade).
2
Nesse sentido, ver: JEREMIAS, J. O
sermão da montanha. 5. ed. São Paulo: Edições Paulinas, 1984. p. 12. (Col.
A Palavra Viva).
3
Lucas, 9, 23-4; NTLH.
4 Nos referidos: “Ainda que eu falasse as
línguas dos homens e dos anjos, e não tivesse amor, seria como o metal que soa,
ou como o sino que tine. Ainda que eu tivesse o dom de profecia, e conhecesse
todos os mistérios e toda a ciência, e ainda que eu tivesse toda a fé, de
maneira tal que transportasse os montes, e não tivesse amor, nada seria. E
ainda que eu distribuísse toda a minha fortuna para o sustento dos pobres, e
ainda que entregasse o meu corpo para ser queimado, e não tivesse amor, nada
disso me aproveitaria.” (1 Coríntios
13, 1-3; ECA). À fórmula “ainda que...”, constante nos três primeiros versículos, a conclusão é o
inevitável fracasso, na ausência de ágape
– que é como aparece no original grego. Tratei sobre o Sermão do Monte e sobre
todas essas colocações, com mais profundidade, no capítulo 2 da minha tese de
doutorado: A filosofia/teologia moral de
Santo Agostinho: dos antecedentes gregos à apropriação e interiorização do
elemento cristão e sua recepção no Brasil colonial (1500-1808). São Leopoldo:
EST/PPG, 2009. p. 89-123. (Tese de doutorado).