35.
Do amor à solidão*
Entre 1776 e
1778, que é quando escreve os relatos sob o título Les rêveries du promeneur solitaire (Os devaneios do caminhante
solitário), que são uma sequência às suas Confissões,
Jean-Jacques Rousseau é um homem velho, cansado e angustiado, profundamente amargurado
com o desprezo que seus pares lhe deram, e o destino que, segundo ele,
relegaram à sua obra. No que escreve, pontuam declarações de que é perseguido,
caluniado, agredido verbal e moralmente. O mundo se lhe tornou um lugar inóspito, um palco de
tristezas continuadas; por isso e por muito mais, Rousseau confessa que é melhor
estar assim, como agora: isolado dos homens e de suas coisas, e da
sociedade que, um dia, tentou melhorar1,
com a publicação do seu Emílio, O contrato social, Carta a d’Alembert sobre os espetáculos, etc.
Eis-me,
portanto2, sozinho sobre a terra, sem outro
irmão, próximo, amigo ou companhia que a mim mesmo. O mais sociável e o mais
afetuoso dos homens dela foi proscrito por um acordo unânime. Buscaram3 nas sutilizas de seus ódios que
tormento poderia ser mais cruel para minha alma sensível e romperam com
violência todos os laços que me ligavam a eles.4
Mais adiante:
Tudo o que me é
externo de agora em diante me é estranho. Não tenho mais neste mundo nem
próximo, nem semelhantes, nem irmãos. Estou sobre a terra como num planeta
estranho onde tivesse caído daquele que habitava. Se reconheço à minha volta
alguma coisa, são apenas objetos aflitivos e dilacerantes para o meu coração, e
não posso colocar os olhos sobre o que me toca e rodeia sem encontrar sempre
algum desdém que me revolta ou dor que me aflige. [...] É neste estado que
retomo a continuação do exame severo e sincero que chamei outrora minhas Confissões5.
[...] Essas folhas podem, portanto, ser consideradas um apêndice a minhas Confissões, mas não uso o mesmo título
por não sentir mais nada a dizer que possa merecê-lo.6
A análise
íntima, semelhante àquelas dos Ensaios
de Montaigne7, tem uma diferença: “Faço
a mesma empresa de Montaigne, mas com um objetivo em tudo oposto ao seu:
escrevia seus Ensaios apenas para os
outros, enquanto escrevo meus devaneios apenas para mim.8”
Assim:
Se em meus
últimos dias, próximo da partida, em continuar, como espero, com o mesmo estado
de espírito com que me encontro, sua leitura me lembrará da doçura que
experimento ao escrevê-los e, fazendo assim renascer o tempo passado, duplicará
de certo modo minha existência. Apesar dos homens, saberei apreciar ainda o
encanto da sociedade e viverei decrépito ao lado de mim mesmo em outra idade
como viveria com um amigo menos velho.9
À força do
tempo, Rousseau descobre que, no mundo, está sozinho – e nunca foi tanto ele mesmo, antes de enxergar-se assim,
no fundo dos abismos de si-mesmo10
–; descobre que o reconhecimento e a glória, uma vez adquiridos, não são
seguros e nem garantem nada contra a roda da fortuna, que sempre gira. O Eu,
com tudo o que lhe é próprio, é o que nunca se perde – e o seu amor: amour-propre, na boa ou má intenção –,
mesmo quando tentamos sufocá-lo no ideal romântico de uma “bondade humana”,
reflexo daquela outra, divina. A indiferença (indifférence) é um princípio – não anotado por Rousseau, ao menos no
sentido que será dado por Laplace, em 181411
– carente de definição12,
porque a ação, qualquer que seja ela, é a regra mais comum da norma: há o homem e a sua natureza intrínseca. Um
dos precursores do Romantismo, Rousseau acreditava que a natureza do homem é essencialmente
boa, mas estragada pela sociedade. Para ajustá-la, sob a justiça da lei (ou do Estado
de Direito), ele redige O contrato social13. Para a educação do indivíduo, o
modelo e as regras estão no Emílio14. Muito mais haveria que ser feito, por amor aos homens e à sociedade, “e
foi” – Rousseau deve ter pensado, voltando de um passeio entre Ménilmontant e
Charonne, numa quinta-feira, 24 de outubro de 177615. Mas, o que se fez de tudo o que foi
feito? Ele rememora:
Há alguns dias
a vindima havia terminado; os visitantes da cidade se haviam retirado; os
camponeses também abandonavam os campos, até os trabalhos de inverno. A
planície, ainda verde e agradável, mas em parte desfolhada e quase deserta,
apresentava por toda parte a imagem da solidão e da aproximação do inverno.
Resultava de seu aspecto uma mistura de impressões doces e tristes, análogas
demais a meu destino para que não as aplicasse a mim. Via a mim mesmo no
declínio de uma vida inocente e desafortunada, a alma ainda repleta de
sentimentos vivazes e o espírito ainda ornado de algumas flores, murchas pela
tristeza e ressequidas pelos desgostos. Sozinho e abandonado, sentia chegar o
frio das primeiras geadas, e minha imaginação esgotada não mais povoava minha
solidão com seres criados por meu coração. Dizia a mim mesmo, suspirando: o que
fiz neste mundo?16
É o que ele
tenta responder, no melhor do que poderia ser o seu espírito estoico – se tivesse um, e se fosse possível. No
início da Nona Caminhada17, o
relato é desolador: a ataraxía é uma
coisa distante, a eudaimonía18, impossível; o amor, uma estação da
alma... Nada é permanente, exceto a mudança, que caminha para o nada,
conduzindo todos os seres pela mão. Rousseau é enfático, contundente,
conclusivo:
A felicidade é
um estado permanente que não parece feita para o homem neste mundo. Tudo na
terra está em um fluxo contínuo que não permite a nada assumir uma forma
constante. Tudo muda à nossa volta. Nós mesmos mudamos, e ninguém pode garantir
que amará amanhã aquilo que ama hoje. Assim, todos os nossos projetos de
felicidade nessa vida são ilusões. Aproveitemos o contentamento do espírito
quando ele ocorre; evitemos afastá-lo por erro nosso, mas não façamos projetos
para acorrenta-lo, pois tais projetos são puras tolices.19
É Belchior, coberto
de razão: “A felicidade é uma arma quente”, ele diz20. Contentamentos, estações... coisas
fluidas. Um disparo. Um estouro. Som, fúria e... silêncio. A calmaria depois da
tempestade. O que fica depois do gozo – post
coitum omne animal triste. Como em uma sucessão de dias perfeitos21, não há quem suporte as perfeições de
um amor... perfeito, caso houvesse algum. Na felicidade e no amor, estamos como
que suspensos sobre um hiato temporal, posto entre a expectativa – se acaso
ainda temos uma – e a sua realização, que é também a sua fatalidade. E vamos
vivendo assim, entre outonos e primaveras, entre invernos e verões, entre o nada (de não ter nascido) e o esquecimento (de, uma vez nascido, fatalmente ter que morrer), que é a única conclusão para o ser – no sentido de “consciência individual”. Fora isso, não há conclusões – “A única conclusão é morrer”, dizia Álvaro de Campos22 –, como os Devaneios
de um Rousseau que sempre morre antes. Sim, a única conclusão é morrer. Mas, ainda é
cedo, e amar é inevitável, e querer ser feliz... no amor e em outros delírios
cotidianos. E todo mundo está assim: só, sozinho, até o fim.
*
Há um livro de André Comte-Sponville, L’amour
la solitude (Paris, Éditions Albin Michel,
2000). E daí que vem o meu título, modificado, com crase – tratando de algo (um
desejo) que parte para algo (solidão), ou que é seu termo, fim, conclusão,
consequência. Nas palavras de Comte-Sponville: “O amor e a solidão sempre andam
juntos; não são dois contrários, mas como que dois reflexos de uma mesma luz,
que é viver. Sem essa luz, a filosofia não valeria uma hora de esforço.”
(COMTE-SPONVILLE, Comte. O amor a solidão.
2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 30. [Col. Mesmo que o céu não exista]).
1
Embora tenha tido cinco filhos com a Sra.
(Louise) de Warens, sua amante de Paris, e
os tenha colocado, todos, no Enfants-Trouvés, um orfanato.
2
“Os Devaneios, de Rousseau, escritos
nos dois últimos anos de sua vida e deixados inacabados, são considerados por
ele a conclusão da sua obra e de sua vida, daí a utilização da palavra
‘portanto’, que anuncia uma conclusão.” (SIMÕES, Julia Rosa. Nota [1]. In:
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Os devaneios do
caminhante solitário. Porto Alegre: L&PM, 2010. p. 7. [Col. L&PM
Pocket, 743]).
3
“Alusão constante no texto, esse sujeito oculto diz respeito ao complô que
Rousseau acreditava existir contra a sua pessoa.” (SIMÕES, 2010, p. 7. Nota 2).
4
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Os devaneios do
caminhante solitário. Porto Alegre: L&PM, 2010. p. 7. (Col. L&PM
Pocket, 743).
5
Escrito entre 1764-1770, e publicada
postumamente, Les Confessions é obra de um Rousseau já maduro, que
resolve “revelar, num livro, a sua vida íntima. [...] Ele narra detalhadamente
toda a sua trajetória, tanto a do homem como a do pensador. À luz da
experiência concedida pelo tempo, Rousseau repassa toda a sua vida, mesmo os
episódios mais vergonhosos ou controversos, e comenta sua formação intelectual
e as relações que manteve, oferecendo ao leitor a oportunidade de conhecer o
contexto em que surgiram muitas de suas teorias. Dividida em duas partes, a
obra apresenta – além do caráter pioneiro, uma das primeiras do gênero – um
estilo bastante particular: não se limitando a um registro cronológico,
Rousseau conta sua história enquanto tece reflexões sobre as experiências
vividas. Assim, As confissões ganham um matiz quase romanesco, reunindo uma
linguagem poética e rebuscada e um caráter documental de testemunho autobiográfico.”
(Da apresentação editorial à edição da Martin Claret. Cf. ROUSSEAU,
Jean-Jacques. As confissões. São
Paulo: Martin Claret, 2011. [Orelha]).
6
ROUSSEAU, 2010, p. 12-3.
7
Cf. MONTAIGNE. Ensaios. São Paulo:
Nova Cultural, 1996. 2 v. (Col. Os Pensadores).
8 ROUSSEAU, 2010, p. 14. No início das Confissões, porém, ele havia dito: “Já
que por fim o meu nome deve viver, eu devo me preocupar em transmitir com ele a
lembrança do homem desafortunado que o carregou consigo, tal como esse homem
foi realmente e não como os inimigos injustos trabalharam sem descanso a
descrevê-lo.” (ROUSSEAU,
Jean-Jacques. Les Confessions. In: Oeuvres completes. Paris: Gallimard. Bibliothèque de la Pléiade, 1959. p. 23. v.
1. [Itálicos meus]). Há, na Internet,
uma excelente versão em HTML do texto das Confissões, na
edição H. Launette & Cie (Paris, 1889), com ilustrações de Maurice Leloir.
Cf. Les Confessions (HTML, ilustrado,
com documentos, em francês. Disponível em: <http://athena.unige.ch/athena/rousseau/confessions/rousseau_confessions.html>.
Acesso em 14 mar. 2013). Se o intento, nos Devaneios, é honesto ou não, isso não me
compete dizer, aqui; e nem é minha intenção tecer algum juízo, ao menos nessa
questão.
9
Redigidos nos dois últimos anos de sua vida (1777-78), os Devaneios ficam incompletos. É provável que o ataque sofrido pelo
cão dinamarquês tenha agravado o seu estado físico, debilitando-o e apresando a
sua morte em Ermenonville, na França, depois de um mal-estar, às 11:00 do dia 2
de julho de 1778. Eis o relato do acidente, por ele mesmo: “Às seis horas,
estava descendo de Ménilmontant, quase em frente ao Galant Jardinier, quando,
de repente, as pessoas que caminhavam à minha frente se afastaram e vi se
lançar sobre mim um grande cão dinamarquês que, avançando veloz na frente de
uma carruagem, não teve tempo de parar sua corrida ou desviar ao me ver.
Calculei que a única maneira de evitar ser atirado ao chão era dar um grande salto,
tão preciso que o cão passasse por baixo de mim enquanto estivesse no ar. Essa
ideia, mais breve que o relâmpago, que não tive tempo nem de considerar nem de
executar, foi a última antes do acidente. Não senti nem o golpe nem a queda,
nem nada do que se seguiu até o momento em que voltei a mim. Era quase noite
quando recuperei os sentidos. Estava nos braços de três ou quatro jovens que me
contaram o que acabara de acontecer. O cão dinamarquês, não conseguindo frear
seu impulso, precipitara-se sobre as minhas duas pernas e, atingindo-me com sua
massa e sua velocidade, me fizera cair de cabeça: o maxilar superior, ao
suportar o peso de meu corpo, batera numa pedra do pavimento bastante
irregular, e a queda fora ainda mais violenta porque, estando numa ladeira,
minha cabeça batera abaixo de meus pés. A carruagem a que o cão pertencia vinha
logo atrás e teria passado sobre meu corpo se o cocheiro não tivesse de pronto
parado os cavalos. Foi isso que fiquei sabendo pelo relato daqueles que me
haviam levantado e que ainda me seguravam quando voltei a mim.” (ROUSSEAU,
2010, p. 19-20).
10
“Tudo terminou para mim sobre a terra. Não podem mais me fazer nem bem nem mal.
Não me resta mais nada a esperar nem a temer neste mundo, e aqui estou
tranquilo no fundo do abismo, pobre mortal desventurado, mas impassível como o
próprio Deus.” (ROUSSEAU, 2010, p. 12). Nas palavras de Comte-Sponville: “Ser
só é ser si mesmo, sem recurso, e é a verdade da existência humana. Como
poderíamos ser outro? Como alguém poderia nos descarregar desse peso de ser si
mesmo? ‘O homem nasce só, vive só, morre só’, dizia Buda. Isso não quer dizer
que a gente nasce, vive e morre no isolamento!” (COMTE-SPONVILLE, 2006, p. 29).
11
Pierre Simon de Laplece (1749-1827), em seu Essai
philosophique sur les probabilités (Ensaio
filosófico sobre as probabilidades), de 1814.
12
E contrário à verdade geral, por sua individualidade e indiferença: “A verdade
geral e abstrata é o mais precioso de todos os bens. Sem ela, o homem é cego;
ela é o olho da razão. É através dela que o homem aprende a se portar, a ser o
que deve ser, a fazer o que deve fazer, a rumar para o seu verdadeiro fim. A
verdade particular e individual nem sempre é um bem, às vezes é um mal, muitas
vezes uma coisa indiferente.” (ROUSSEAU, 2010, p. 46). E: “Os indivíduos
morrem, mas os organismos coletivos não morrem jamais.” (ROUSSEAU, 2010, p.
11).
13
Assim: “Quero indagar se pode existir, na ordem civil, alguma regra de
administração legítima, tomando os homens como são e as leis como podem ser.
Esforçar-me-ei sempre, nessa procura, para unir o que o direito permite ao que
o interesse prescreve, a fim de que não fiquem separadas a justiça e a
utilidade.” (ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do
contrato social ou Princípios do
Direito Político. São Paulo: Nova Cultural, 1996. p. 51 [Livro 1]. v. 1.
[Col. Os Pensadores]). A noção de justiça e utilidade, aqui, ainda fazem eco
inequívoco ao platonismo cristão do uti
e frui, na moral agostiniana: “Fruir
é aderir a alguma coisa por amor a ela própria. E usar é orientar o objeto de
que se faz uso para obter o objeto ao qual se ama, caso tal objeto mereça ser
amado.” (De doc. christ., I, 4;
AGOSTINHO, Santo. A doutrina cristã:
manual de exegese e formação cristã. São Paulo: Paulus, 2002. [Col. Patrística,
17]). É o Romantismo, herdeiro do platonismo, guiado pela doctrina christiana, vivíssima.
14
Tanto o Du contrat social ou Principes du droit politique como o Émile, ou De l’éducation, foram redigidos entre 1759-60, e publicados em
1762. “O Emílio é um ensaio pedagógico
sob forma de romance e nele Rousseau procura traçar em linhas gerais que
deveriam ser seguidas com o objetivo de fazer da criança um adulto bom. Mais
exatamente, trata dos princípios para evitar que a criança se torne má, já que
o pressuposto básico do autor é a crença na bondade natural do homem. Outro
pressuposto de seu pensamento consiste em atribuir à civilização a
responsabilidade pela origem do mal.” (CHAUÍ, Marilena de Souza. Vida e obra.
In: ROUSSEAU, 1996, p. 16).
15
A data e a localização são dadas por ele mesmo, em: ROUSSEAU, 2010, p. 17.
“Ménilmontant e Charonne foram, até 1860, quando de sua anexação a Paris,
cidades nos subúrbios da capital francesa – hoje bairros pertencentes ao 20º arrondissement.” (SIMÕES, 2010, p. 7
[Nota 5]).
16
ROUSSEAU, 1996, p. 18.
17
A Décima Caminhada, última parte do livro, ficou incompleta.
18 Ataraxía
(imperturbabilidade) e eudaimonía (felicidade)
são termos ligados às escolas dos estoicos e epicureus. Trato sobre eles no
artigo que fiz para a carta de Epicuro a Meneceu. Ver: SALES, Antonio Patativa
de. O tema da ΕΥΔΑΙΜΟΝΙΑ na carta de Epicuro a Meneceu. In: Ágora filosófica: pensamento
Antigo-tardio e Medieval. Recife, ano 4, n. 2, p. 21-32, 2004.
19 ROUSSEAU,
2010, p. 116.
20 BELCHIOR. Comentário
a respeito de John. In: _____. Apenas um
rapaz latino-americano. Rio de Janeiro: Continental/EastWest / Warner Music
Brasil Ltada. [s.d.]. CD. Faixa 7.
21 Penso em
Freud, citando Goethe: “Nada é mais difícil de suportar que uma sucessão de
dias belos.” (FREUD, Sigmund. O mal-estar
na civilização. Rio de Janeiro: Imago, 1997. p. 24).
22 “Não: não quero
nada. / Já disse que não quero nada. / Não me venham com conclusões! / A única
conclusão é morrer.” (CAMPOS, Álvaro de. (Fernando Pessoa). Lisbon revisited.
In: PESSOA, Fernando. Ficções do
interlúdio: 1914-1935. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 165).