domingo, 12 de maio de 2013


36.






Do amor às mulheres velhas, e da sua utilidade




O texto pseudo-solene de Benjamin Franklin1, Como escolher amantes2, é resposta a um “jovem” fictício, personagem que lhe teria perguntado como lidar com as “violentas inclinações pessoais” relativas ao sexo oposto. No referido, quase cômico, Franklin afirma que o melhor remédio contra tais inclinações é o casamento – que faz cessar o fogo de ambos, no sexo sempre à disposição. Evidentemente que, não por uma força biológica, mas moral. Ou, em outras palavras: na barreira que essa mesmíssima moral impõe àquele “saltar o cerco” (do sagrado matrimônio) em busca da grama mais verde no cercado alheio, ou na vasta planície, quando o fogo se aceder por outro ou outra. Se casar, porém, não é a intenção do jovem, para o “inevitável intercâmbio com o outro sexo”, então o remédio é procurar uma amante. Mas não uma qualquer. Uma que seja mais velha que ele, que deve preferi-la às mais jovens. E Franklin aponta as razões práticas de tal escolha:

1. Porque por possuírem mais conhecimento do mundo e por serem suas mentes mais fornidas de observações, sua conversação é mais edificante e mais duradouramente agradável.
2. Porque quando as mulheres deixam de ser formosas, procuram ser boas. Para manter sua influência sobre os homens, compensam a diminuição da beleza com o aumento da utilidade. Aprendem a desempenhar mil tarefas, pequenas e grandes, e, caso adoeças, são os mais gentis e solícitos de todos os amigos. Continuam então amáveis. Portanto, difícil é existir uma mulher velha que não seja também uma boa mulher.
3. Porque não há o contratempo dos filhos que, irregularmente concebidos, podem acarretar grandes inconvenientes.
4. Porque dada a maior experiência que têm, são mais prudentes e discretas ao promover um caso amoroso de modo a evitar suspeitas. O comércio com elas é, portanto, mais seguro no que toca à tua reputação. E, em relação à dela, caso o affaire venha a ser conhecido, pessoas ponderadas tendem a desculpar uma mulher velha que, com gentileza, cuida de um homem jovem, molda suas maneiras conforme bons conselhos e evita que ele arruíne a saúde e a fortuna com prostitutas mercenárias.
5. Porque em todo animal que anda ereto, a deficiência dos fluídos que preenchem os músculos aparece primeiro nas seções superiores: de início, a face torna-se encurvada e enrugada; vem então o pescoço, chega a vez dos seios e dos braços; as seções inferiores continuam até o fim sempre viçosas. De tal forma que, em se cobrindo toda a parte de cima com uma cesta e considerando-se apenas aquilo que vem abaixo da cintura, é impossível que se distinga, entre duas mulheres, a velha da jovem. Além disso, como no escuro todos os gatos são pardos, o prazer ou deleite corpóreo com uma mulher velha é ao menos igual, e frequentemente superior, posto que a prática é capaz de aperfeiçoar toda destreza.
6. Porque o pecado é mais venial. A violação de uma virgem pode significar sua ruína e tornar-lhe a vida miserável.
7. Porque a compunção é menor. Tornar miserável uma jovem pode evocar-te amargas reflexões, nenhuma das quais seria associada ao ato de tornar feliz uma mulher madura.
8. Oitava e última. Elas ficam tão gratas!3

São conselhos práticos e claramente avaros. Mas não são fórmulas definitivas. Se eu às tivesse, Franklin afirma, não vos “daria”4. A mulher, objeto da conquista – não do amor, para o amor romântico –, é mirada por sua utilidade, por aquilo que pode oferecer, na cama ou fora dela5. O utilitarismo americano, a mais conhecida filosofia estadunidense6, está aí, com toda a força. Não é ágape quem manda – embora o país, à época, fosse predominantemente cristão protestante –, mas stergein: amour-prope, amour de soi.
A primeira vez que a cara de Franklin apareceu na cédula de cem dólares, nos Estados Unidos, foi em 1914. É a sua imagem mais conhecida, certamente; e é também, muito mais certamente, a imagem máxima do “espírito do capitalismo” estadunidense. O rosto de Franklin não mostra qualquer traço de humor. É um rosto atento, determinado... e com uma boca bem fechada. “Tempo é dinheiro!”, ele escreve no Poor Richard’s Almanack. Max Weber resume a “filosofia” franklineana como uma “filosofia da avareza”, diz, ao reproduzir – em sua A ética protestante e o espírito do capitalismo, de 1904-5 – longos trechos de dois folhetos de Franklin, publicados em 1736 e 1748.7
Na cédula de cem dólares, há três legendas estampadas: “In God We Trust”, “The United States of America”, e aquela que é a única verdade filosófico-teológica – e nada romântica – estadunidense, e sua máxima representação histórico-político-ideológica: “ONE HUNDRED DOLLARS”8. O resto, de valor menor, não é dinheiro, mas o Mundo; e o mundo é objeto para o lucro e a exploração... como as mulheres, para Franklin. O amor romântico, aí, também é moeda e objeto, para comercio e lucro – o cinema americano tem, de longe, doutorado em tudo isso. Quer romantismo nos EUA?, compre o livro, veja o filme.




1 Benjamin Franklin (1706-1790), um dos líderes da Revolução Americana (1776), é mais conhecido por suas citações e experiências com a eletricidade. Mas foi, também, jornalista, autor e editor do famoso Poor Richard’s Almanack, e de vários ensaios. Filantropo, também foi abolicionista, cientista, diplomata e funcionário público, dentre outras funções – como a de enxadrista, etc. Calvinista, foi objeto de várias referências de Max Weber, no que diz respeito à austeridade moral calvinista e o acúmulo de capital.
2 Ou: Conselho a um jovem sobre como escolher amantes. No Poor Richard’s Almanack (edição de 1739), o Conselho está impresso em uma única página, a 13. O “Almanaque do pobre Ricardo” começou a ser publicado em 1732; sendo, depois, constantemente ampliado e revisado pelo seu autor, que também era o editor. 
3 FRANKLIN, Benjamin. Como escolher amantes (e outros textos). São Paulo: Editora da UNESP, 2006. p. 34-6. (Col. Pequenos Frascos).
4 FRANKLIN, 2006, p. 34. Dado o valor de tal fórmula, caso existisse, ela seria vendida a peso de ouro.
5 Escrito em 1745, o texto foi considerado obsceno pelo neto de Franklin, que se tornou responsável pelos textos do avô, morto aos 84 anos. O referido ficou “perdido” por quase um século, mantido na obscuridade por todos os seus editores.
6 Em prática histórica e política, é bom que se diga. O utilitarismo mesmo, enquanto filosofia, no nível da abstração, surgiu com o britânico Jeremy Bentham (1738-1832), sendo amplamente difundido por John Stuart Mill (1806-1873) – com a publicação do seu Utilitarianism, em 1863 – e o escocês James Mill (1773-1836), que esteve à frente do ambicioso e influente Literary Journal.
7 Neste sentido, ver a apresentação de R. Jackson Wilson para os excertos do Poor Richard’s Almanack, que é de onde é feita a nossa tradução: WILSON, R. Jackson. Apresentação biográfica. In: FRANKLIN, Benjamin. Como escolher amantes (e outros textos). São Paulo: Editora da UNESP, 2006. p. 7-29. (Col. Pequenos Frascos). Quanto à obra de Weber, ver – em especial os capítulos 4 e 5: WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. 4 ed. São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1985.
8 Respectivamente: “Nós confiamos em Deus”; “Estados Unidos da América” e “CEM DÓLARES”.


quinta-feira, 18 de abril de 2013

35.






Do amor à solidão*



Entre 1776 e 1778, que é quando escreve os relatos sob o título Les rêveries du promeneur solitaire (Os devaneios do caminhante solitário), que são uma sequência às suas Confissões, Jean-Jacques Rousseau é um homem velho, cansado e angustiado, profundamente amargurado com o desprezo que seus pares lhe deram, e o destino que, segundo ele, relegaram à sua obra. No que escreve, pontuam declarações de que é perseguido, caluniado, agredido verbal e moralmente. O mundo se lhe tornou um lugar inóspito, um palco de tristezas continuadas; por isso e por muito mais, Rousseau confessa que é melhor estar assim, como agora: isolado dos homens e de suas coisas, e da sociedade que, um dia, tentou melhorar1, com a publicação do seu Emílio, O contrato social, Carta a d’Alembert sobre os espetáculos, etc.
               
Eis-me, portanto2, sozinho sobre a terra, sem outro irmão, próximo, amigo ou companhia que a mim mesmo. O mais sociável e o mais afetuoso dos homens dela foi proscrito por um acordo unânime. Buscaram3 nas sutilizas de seus ódios que tormento poderia ser mais cruel para minha alma sensível e romperam com violência todos os laços que me ligavam a eles.4
               
Mais adiante:

Tudo o que me é externo de agora em diante me é estranho. Não tenho mais neste mundo nem próximo, nem semelhantes, nem irmãos. Estou sobre a terra como num planeta estranho onde tivesse caído daquele que habitava. Se reconheço à minha volta alguma coisa, são apenas objetos aflitivos e dilacerantes para o meu coração, e não posso colocar os olhos sobre o que me toca e rodeia sem encontrar sempre algum desdém que me revolta ou dor que me aflige. [...] É neste estado que retomo a continuação do exame severo e sincero que chamei outrora minhas Confissões5. [...] Essas folhas podem, portanto, ser consideradas um apêndice a minhas Confissões, mas não uso o mesmo título por não sentir mais nada a dizer que possa merecê-lo.6

A análise íntima, semelhante àquelas dos Ensaios de Montaigne7, tem uma diferença: “Faço a mesma empresa de Montaigne, mas com um objetivo em tudo oposto ao seu: escrevia seus Ensaios apenas para os outros, enquanto escrevo meus devaneios apenas para mim.8” Assim:

Se em meus últimos dias, próximo da partida, em continuar, como espero, com o mesmo estado de espírito com que me encontro, sua leitura me lembrará da doçura que experimento ao escrevê-los e, fazendo assim renascer o tempo passado, duplicará de certo modo minha existência. Apesar dos homens, saberei apreciar ainda o encanto da sociedade e viverei decrépito ao lado de mim mesmo em outra idade como viveria com um amigo menos velho.9
               
À força do tempo, Rousseau descobre que, no mundo, está sozinho – e nunca foi tanto ele mesmo, antes de enxergar-se assim, no fundo dos abismos de si-mesmo10 –; descobre que o reconhecimento e a glória, uma vez adquiridos, não são seguros e nem garantem nada contra a roda da fortuna, que sempre gira. O Eu, com tudo o que lhe é próprio, é o que nunca se perde – e o seu amor: amour-propre, na boa ou má intenção –, mesmo quando tentamos sufocá-lo no ideal romântico de uma “bondade humana”, reflexo daquela outra, divina. A indiferença (indifférence) é um princípio – não anotado por Rousseau, ao menos no sentido que será dado por Laplace, em 181411 – carente de definição12, porque a ação, qualquer que seja ela, é a regra mais comum da norma: há o homem e a sua natureza intrínseca. Um dos precursores do Romantismo, Rousseau acreditava que a natureza do homem é essencialmente boa, mas estragada pela sociedade. Para ajustá-la, sob a justiça da lei (ou do Estado de Direito), ele redige O contrato social13. Para a educação do indivíduo, o modelo e as regras estão no Emílio14. Muito mais haveria que ser feito, por amor aos homens e à sociedade, “e foi” – Rousseau deve ter pensado, voltando de um passeio entre Ménilmontant e Charonne, numa quinta-feira, 24 de outubro de 177615. Mas, o que se fez de tudo o que foi feito? Ele rememora:

Há alguns dias a vindima havia terminado; os visitantes da cidade se haviam retirado; os camponeses também abandonavam os campos, até os trabalhos de inverno. A planície, ainda verde e agradável, mas em parte desfolhada e quase deserta, apresentava por toda parte a imagem da solidão e da aproximação do inverno. Resultava de seu aspecto uma mistura de impressões doces e tristes, análogas demais a meu destino para que não as aplicasse a mim. Via a mim mesmo no declínio de uma vida inocente e desafortunada, a alma ainda repleta de sentimentos vivazes e o espírito ainda ornado de algumas flores, murchas pela tristeza e ressequidas pelos desgostos. Sozinho e abandonado, sentia chegar o frio das primeiras geadas, e minha imaginação esgotada não mais povoava minha solidão com seres criados por meu coração. Dizia a mim mesmo, suspirando: o que fiz neste mundo?16

É o que ele tenta responder, no melhor do que poderia ser o seu espírito estoico – se tivesse um, e se fosse possível. No início da Nona Caminhada17, o relato é desolador: a ataraxía é uma coisa distante, a eudaimonía18, impossível; o amor, uma estação da alma... Nada é permanente, exceto a mudança, que caminha para o nada, conduzindo todos os seres pela mão. Rousseau é enfático, contundente, conclusivo:

A felicidade é um estado permanente que não parece feita para o homem neste mundo. Tudo na terra está em um fluxo contínuo que não permite a nada assumir uma forma constante. Tudo muda à nossa volta. Nós mesmos mudamos, e ninguém pode garantir que amará amanhã aquilo que ama hoje. Assim, todos os nossos projetos de felicidade nessa vida são ilusões. Aproveitemos o contentamento do espírito quando ele ocorre; evitemos afastá-lo por erro nosso, mas não façamos projetos para acorrenta-lo, pois tais projetos são puras tolices.19

É Belchior, coberto de razão: “A felicidade é uma arma quente”, ele diz20. Contentamentos, estações... coisas fluidas. Um disparo. Um estouro. Som, fúria e... silêncio. A calmaria depois da tempestade. O que fica depois do gozo – post coitum omne animal triste. Como em uma sucessão de dias perfeitos21, não há quem suporte as perfeições de um amor... perfeito, caso houvesse algum. Na felicidade e no amor, estamos como que suspensos sobre um hiato temporal, posto entre a expectativa – se acaso ainda temos uma – e a sua realização, que é também a sua fatalidade. E vamos vivendo assim, entre outonos e primaveras, entre invernos e verões, entre o nada (de não ter nascido) e o esquecimento (de, uma vez nascido, fatalmente ter que morrer), que é a única conclusão para o ser  no sentido de “consciência individual. Fora isso, não há conclusões – “A única conclusão é morrer”, dizia Álvaro de Campos22 –, como os Devaneios de um Rousseau que sempre morre antes. Sim, a única conclusão é morrer. Mas, ainda é cedo, e amar é inevitável, e querer ser feliz... no amor e em outros delírios cotidianos. E todo mundo está assim: só, sozinho, até o fim.





* Há um livro de André Comte-Sponville, L’amour la solitude (Paris, Éditions Albin Michel, 2000). E daí que vem o meu título, modificado, com crase – tratando de algo (um desejo) que parte para algo (solidão), ou que é seu termo, fim, conclusão, consequência. Nas palavras de Comte-Sponville: “O amor e a solidão sempre andam juntos; não são dois contrários, mas como que dois reflexos de uma mesma luz, que é viver. Sem essa luz, a filosofia não valeria uma hora de esforço.” (COMTE-SPONVILLE, Comte. O amor a solidão. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 30. [Col. Mesmo que o céu não exista]).
1 Embora tenha tido cinco filhos com a Sra. (Louise) de Warens, sua amante de Paris, e os tenha colocado, todos, no Enfants-Trouvés, um orfanato.
2 “Os Devaneios, de Rousseau, escritos nos dois últimos anos de sua vida e deixados inacabados, são considerados por ele a conclusão da sua obra e de sua vida, daí a utilização da palavra ‘portanto’, que anuncia uma conclusão.” (SIMÕES, Julia Rosa. Nota [1]. In: ROUSSEAU, Jean-Jacques. Os devaneios do caminhante solitário. Porto Alegre: L&PM, 2010. p. 7. [Col. L&PM Pocket, 743]).
3 “Alusão constante no texto, esse sujeito oculto diz respeito ao complô que Rousseau acreditava existir contra a sua pessoa.” (SIMÕES, 2010, p. 7. Nota 2).
4 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Os devaneios do caminhante solitário. Porto Alegre: L&PM, 2010. p. 7. (Col. L&PM Pocket, 743).
5 Escrito entre 1764-1770, e publicada postumamente, Les Confessions é obra de um Rousseau já maduro, que resolve “revelar, num livro, a sua vida íntima. [...] Ele narra detalhadamente toda a sua trajetória, tanto a do homem como a do pensador. À luz da experiência concedida pelo tempo, Rousseau repassa toda a sua vida, mesmo os episódios mais vergonhosos ou controversos, e comenta sua formação intelectual e as relações que manteve, oferecendo ao leitor a oportunidade de conhecer o contexto em que surgiram muitas de suas teorias. Dividida em duas partes, a obra apresenta – além do caráter pioneiro, uma das primeiras do gênero – um estilo bastante particular: não se limitando a um registro cronológico, Rousseau conta sua história enquanto tece reflexões sobre as experiências vividas. Assim, As confissões ganham um matiz quase romanesco, reunindo uma linguagem poética e rebuscada e um caráter documental de testemunho autobiográfico.” (Da apresentação editorial à edição da Martin Claret. Cf. ROUSSEAU, Jean-Jacques. As confissões. São Paulo: Martin Claret, 2011. [Orelha]). 
6 ROUSSEAU, 2010, p. 12-3.
7 Cf. MONTAIGNE. Ensaios. São Paulo: Nova Cultural, 1996. 2 v. (Col. Os Pensadores).
8 ROUSSEAU, 2010, p. 14. No início das Confissões, porém, ele havia dito: “Já que por fim o meu nome deve viver, eu devo me preocupar em transmitir com ele a lembrança do homem desafortunado que o carregou consigo, tal como esse homem foi realmente e não como os inimigos injustos trabalharam sem descanso a descrevê-lo.” (ROUSSEAU, Jean-Jacques. Les Confessions. In: Oeuvres completes. Paris: Gallimard. Bibliothèque de la Pléiade, 1959. p. 23. v. 1. [Itálicos meus]). Há, na Internet, uma excelente versão em HTML do texto das Confissões, na edição H. Launette & Cie (Paris, 1889), com ilustrações de Maurice Leloir. Cf. Les Confessions (HTML, ilustrado, com documentos, em francês. Disponível em: <http://athena.unige.ch/athena/rousseau/confessions/rousseau_confessions.html>. Acesso em 14 mar. 2013). Se o intento, nos Devaneios, é honesto ou não, isso não me compete dizer, aqui; e nem é minha intenção tecer algum juízo, ao menos nessa questão. 
9 Redigidos nos dois últimos anos de sua vida (1777-78), os Devaneios ficam incompletos. É provável que o ataque sofrido pelo cão dinamarquês tenha agravado o seu estado físico, debilitando-o e apresando a sua morte em Ermenonville, na França, depois de um mal-estar, às 11:00 do dia 2 de julho de 1778. Eis o relato do acidente, por ele mesmo: “Às seis horas, estava descendo de Ménilmontant, quase em frente ao Galant Jardinier, quando, de repente, as pessoas que caminhavam à minha frente se afastaram e vi se lançar sobre mim um grande cão dinamarquês que, avançando veloz na frente de uma carruagem, não teve tempo de parar sua corrida ou desviar ao me ver. Calculei que a única maneira de evitar ser atirado ao chão era dar um grande salto, tão preciso que o cão passasse por baixo de mim enquanto estivesse no ar. Essa ideia, mais breve que o relâmpago, que não tive tempo nem de considerar nem de executar, foi a última antes do acidente. Não senti nem o golpe nem a queda, nem nada do que se seguiu até o momento em que voltei a mim. Era quase noite quando recuperei os sentidos. Estava nos braços de três ou quatro jovens que me contaram o que acabara de acontecer. O cão dinamarquês, não conseguindo frear seu impulso, precipitara-se sobre as minhas duas pernas e, atingindo-me com sua massa e sua velocidade, me fizera cair de cabeça: o maxilar superior, ao suportar o peso de meu corpo, batera numa pedra do pavimento bastante irregular, e a queda fora ainda mais violenta porque, estando numa ladeira, minha cabeça batera abaixo de meus pés. A carruagem a que o cão pertencia vinha logo atrás e teria passado sobre meu corpo se o cocheiro não tivesse de pronto parado os cavalos. Foi isso que fiquei sabendo pelo relato daqueles que me haviam levantado e que ainda me seguravam quando voltei a mim.” (ROUSSEAU, 2010, p. 19-20).
10 “Tudo terminou para mim sobre a terra. Não podem mais me fazer nem bem nem mal. Não me resta mais nada a esperar nem a temer neste mundo, e aqui estou tranquilo no fundo do abismo, pobre mortal desventurado, mas impassível como o próprio Deus.” (ROUSSEAU, 2010, p. 12). Nas palavras de Comte-Sponville: “Ser só é ser si mesmo, sem recurso, e é a verdade da existência humana. Como poderíamos ser outro? Como alguém poderia nos descarregar desse peso de ser si mesmo? ‘O homem nasce só, vive só, morre só’, dizia Buda. Isso não quer dizer que a gente nasce, vive e morre no isolamento!” (COMTE-SPONVILLE, 2006, p. 29).
11 Pierre Simon de Laplece (1749-1827), em seu Essai philosophique sur les probabilités (Ensaio filosófico sobre as probabilidades), de 1814.
12 E contrário à verdade geral, por sua individualidade e indiferença: “A verdade geral e abstrata é o mais precioso de todos os bens. Sem ela, o homem é cego; ela é o olho da razão. É através dela que o homem aprende a se portar, a ser o que deve ser, a fazer o que deve fazer, a rumar para o seu verdadeiro fim. A verdade particular e individual nem sempre é um bem, às vezes é um mal, muitas vezes uma coisa indiferente.” (ROUSSEAU, 2010, p. 46). E: “Os indivíduos morrem, mas os organismos coletivos não morrem jamais.” (ROUSSEAU, 2010, p. 11).
13 Assim: “Quero indagar se pode existir, na ordem civil, alguma regra de administração legítima, tomando os homens como são e as leis como podem ser. Esforçar-me-ei sempre, nessa procura, para unir o que o direito permite ao que o interesse prescreve, a fim de que não fiquem separadas a justiça e a utilidade.” (ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social ou Princípios do Direito Político. São Paulo: Nova Cultural, 1996. p. 51 [Livro 1]. v. 1. [Col. Os Pensadores]). A noção de justiça e utilidade, aqui, ainda fazem eco inequívoco ao platonismo cristão do uti e frui, na moral agostiniana: “Fruir é aderir a alguma coisa por amor a ela própria. E usar é orientar o objeto de que se faz uso para obter o objeto ao qual se ama, caso tal objeto mereça ser amado.” (De doc. christ., I, 4; AGOSTINHO, Santo. A doutrina cristã: manual de exegese e formação cristã. São Paulo: Paulus, 2002. [Col. Patrística, 17]). É o Romantismo, herdeiro do platonismo, guiado pela doctrina christiana, vivíssima. 
14 Tanto o Du contrat social ou Principes du droit politique como o Émile, ou De l’éducation, foram redigidos entre 1759-60, e publicados em 1762. “O Emílio é um ensaio pedagógico sob forma de romance e nele Rousseau procura traçar em linhas gerais que deveriam ser seguidas com o objetivo de fazer da criança um adulto bom. Mais exatamente, trata dos princípios para evitar que a criança se torne má, já que o pressuposto básico do autor é a crença na bondade natural do homem. Outro pressuposto de seu pensamento consiste em atribuir à civilização a responsabilidade pela origem do mal.” (CHAUÍ, Marilena de Souza. Vida e obra. In: ROUSSEAU, 1996, p. 16).
15 A data e a localização são dadas por ele mesmo, em: ROUSSEAU, 2010, p. 17. “Ménilmontant e Charonne foram, até 1860, quando de sua anexação a Paris, cidades nos subúrbios da capital francesa – hoje bairros pertencentes ao 20º arrondissement.” (SIMÕES, 2010, p. 7 [Nota 5]).
16 ROUSSEAU, 1996, p. 18.
17 A Décima Caminhada, última parte do livro, ficou incompleta.
18 Ataraxía (imperturbabilidade) e eudaimonía (felicidade) são termos ligados às escolas dos estoicos e epicureus. Trato sobre eles no artigo que fiz para a carta de Epicuro a Meneceu. Ver: SALES, Antonio Patativa de. O tema da ΕΥΔΑΙΜΟΝΙΑ na carta de Epicuro a Meneceu. In: Ágora filosófica: pensamento Antigo-tardio e Medieval. Recife, ano 4, n. 2, p. 21-32, 2004. 
19 ROUSSEAU, 2010, p. 116.
20 BELCHIOR. Comentário a respeito de John. In: _____. Apenas um rapaz latino-americano. Rio de Janeiro: Continental/EastWest / Warner Music Brasil Ltada. [s.d.]. CD. Faixa 7.
21 Penso em Freud, citando Goethe: “Nada é mais difícil de suportar que uma sucessão de dias belos.” (FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago, 1997. p. 24).
22 “Não: não quero nada. / Já disse que não quero nada. / Não me venham com conclusões! / A única conclusão é morrer.” (CAMPOS, Álvaro de. (Fernando Pessoa). Lisbon revisited. In: PESSOA, Fernando. Ficções do interlúdio: 1914-1935. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 165). 


sexta-feira, 12 de abril de 2013


34.





Do amor enquanto uma “teoria do ideal inatingível”


Como nas exigências impossíveis que faz aos que querem segui-lo, no Sermão da Montanha1 – que a ortodoxia luterana chamou de “teoria do ideal inatingível” (Unerfüllbarkeitstheorie)2 –, o Cristo também, no evangelho de são Lucas, exige outras impossibilidades:

Se alguém quer ser meu seguidor, que esqueça os seus próprios interesses, esteja pronto cada dia para morrer como eu vou morrer e me acompanhe. Pois quem põe os seus próprios interesses em primeiro lugar nunca terá a vida verdadeira; mas quem esquece a si mesmo por minha causa terá a vida verdadeira.3

“... que esqueça os seus próprios interesses”, “pois quem põe os seus próprios interesses em primeiro lugar nunca terá a vida verdadeira; mas quem esquece a si mesmo por minha causa terá a vida verdadeira.” Ah!, que ideal tão nobre – também presente no budismo, para o alcance do Nirvana e a cessação do ciclo de renascimentos –, o esquecer-se de si. A busca por sua realização, porém, não pode ser senão por um colocar os “próprios interesses em primeiro lugar”, senão não há qualquer ação, e nem a consequência que, “exitosa”, é  ou seria – absurdamente paradoxal ao seu propósito: “nunca terá a vida verdadeira”. Ademais, o “quem esquece a si mesmo por minha causa”, com a promessa de que esse “terá a vida verdadeira”, não é possível porque, em primeiríssimo lugar, e para o bem ou para o mal: somos nós que estamos, fatalmente, atrás de tal esquecimento, que só seria possível em nós mesmos, por nós mesmos. E como saberíamos? É um paradoxo inevitável. O Cristo exige o impossível.
Mas, talvez seja apenas uma maneira que ele tenha de, como sempre, dizer aos seus: “Se não for mediante a graça” – que faz tudo cair, novamente, no ágape (ἀγάπη) –, “vocês estão perdidos, inapelavelmente.” Sim, pois como nos três primeiros versículos de 1 Coríntios 13, de nada adianta o esforço do penitente, se ele não estiver sob o ágape4. No final, e “ainda que...”, tudo termina como o metal que soa, e como o sino que tine, e nada tem aproveitamento substancial depois de todo o esforço empreendido.
Como é possível “esquecer os seus próprios interesses” sem que se coloque “os próprios interesses em primeiro lugar”? Não há saída para o amor senão no amor; ou: não há saída contra o amour-propre senão no ágape, que “não é um amor humano. Que enorme conflito isso seria se isso... fosse. O “conflito”, aqui, porém, é mera ideologia, construção teológica, doutrina metafísica, romantismo religioso. 
Como parece bem claro – e espero honestamente já ter demonstrado isso satisfatoriamente –, o amour-propre prevalece sempre, e não há como apelar contra ele senão incitando-o e, nisso, reafirmando-o ainda mais soberano; como nos sermões que os pregadores fazem domingo após domingo, escondidos atrás dos púlpitos de suas igrejas. Quanto mais o indivíduo se mostrar piedoso (religiosamente falando), tanto mais egoísta ele será. Não há violência aqui senão na conceituação da piedade, contra o Eu. E o discurso do Cristo, contra isso, é mesmo uma Unerfüllbarkeitstheorie, uma “teoria do ideal inatingível”.






1 Conjunto de discursos atribuídos ao Cristo, que estão mais organizados e mais completos no evangelho de são Mateus (capítulos 5 a 7). Santo Agostinho foi o primeiro a nomeá-los como um “Sermão do Senhor sobre o monte”, e o primeiro a comentá-lo de modo doutrinal, bíblico-expositivo, exegético-hermenêutico. Cf. AGOSTINHO, Santo. O sermão da montanha. São Paulo: Paulinas, 1992. (Col. Espiritualidade).  
2 Nesse sentido, ver: JEREMIAS, J. O sermão da montanha. 5. ed. São Paulo: Edições Paulinas, 1984. p. 12. (Col. A Palavra Viva).
3 Lucas, 9, 23-4; NTLH.
4 Nos referidos: “Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, e não tivesse amor, seria como o metal que soa, ou como o sino que tine. Ainda que eu tivesse o dom de profecia, e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, e ainda que eu tivesse toda a fé, de maneira tal que transportasse os montes, e não tivesse amor, nada seria. E ainda que eu distribuísse toda a minha fortuna para o sustento dos pobres, e ainda que entregasse o meu corpo para ser queimado, e não tivesse amor, nada disso me aproveitaria.” (1 Coríntios 13, 1-3; ECA). À fórmula “ainda que...”, constante nos três primeiros versículos, a conclusão é o inevitável fracasso, na ausência de ágape – que é como aparece no original grego. Tratei sobre o Sermão do Monte e sobre todas essas colocações, com mais profundidade, no capítulo 2 da minha tese de doutorado: A filosofia/teologia moral de Santo Agostinho: dos antecedentes gregos à apropriação e interiorização do elemento cristão e sua recepção no Brasil colonial (1500-1808). São Leopoldo: EST/PPG, 2009. p. 89-123. (Tese de doutorado).



quinta-feira, 4 de abril de 2013


33.





Da expressão “Onde há Deus, aí há amor...”, e da sua ética



No De Trinitate (Sobre a Trindade, escrito entre 399 e 419), Santo Agostinho afirma que o amor, qualquer que seja ele – se for bom... porque há o amour-propre –, é sombra ou reflexo do Amor, numa hierarquia que chega às Pessoas (Pai, Filho e Espírito Santo) da Trindade, que se relacionam em perfeito amor. “O amor”, ele diz, “supõe alguém que ame e alguém que seja amado com amor. Assim, encontram-se três realidades: o que ama, o que é amado e o mesmo amor. O que é, portanto, o amor, senão uma certa vida que enlaça dois seres, ou tenta enlaçar, a saber: o que ama e o que é amado?1” A transferência de conceitos, aí, salta do físico ao metafísico, pela análise teológica do autor; e, daí, do mundo Ideal (ou santo), retorna ao mundo dos homens, purificado, purificando-os. Todo dom (ou amor) perfeito vem de Deus, porque Deus é amor; escreve são João2, a quem Agostinho subscreve. Mais platonismo – ou neoplatonismo3 –, impossível!, mais equívoco, idem!
Denis Huisman comenta a citação do Hiponense: “Aquele que ama, aquele que é amado e o amor constituem uma unidade”, ele diz4. Na representação de tal unidade, o amado (quod amatur) está no centro da “atenção amorosa” daquele que o ama (amans), e ambos estão unidos pelo amor (amor), no amor, formando a unidade trina, como na Trindade cristã5, em que uma pessoa não é a outra, e todas são... Deus. É a interpretação de uma analogia dentre tantas analogias que podem ser encontradas no De Trinitate.


Deus, que é sempre Deus Uno-Trino, Deus Trindade, é origem e fonte de onde emana todo o amor; e mesmo dos amores carnais, reflexos fugidios da relação econômica da “família”, na Trindade. “Deus é a fonte e a origem (ek) do amor, e todo verdadeiro amor deriva dele, [e assim sendo] é óbvio que todo aquele que ama, isto é, que ama a Deus ou ao homem com aquela devoção que é o único amor verdadeiro segundo o ensino de João é (literalmente, tem sido) nascido de Deus e conhece a Deus. Mas Deus não é somente a fonte de todo verdadeiro amor; Deus é amor em Seu Ser mais profundo”.6 Stott tem o espírito joanino. Este, ao afirmar que Deus charitas est7, não se refere somente ao Pai, mas também ao Filho e ao Espírito Santo; à Trindade. Isso culminará na regra canônica da fé e das atribuições, que reza: onde uma das Pessoas da Trindade está, ali está Deus. Como no conto de Tolstoi, Deus está onde está o amor8. E onde há amor – ou aquele que ama –, há a virtude, ou as virtudes que, manifestações da sabedoria, com ela se confundem, co-fundem.9
Na Ética a Nicômaco, de Aristóteles, o prêmio da virtude é a virtude mesma (virtus sibi ipsi praemium)10. Mas o caminho da virtude é difícil, enquanto o do vício, fácil11. A virtude é uma só, os vícios, muitos.12
No pensamento cristão nascente (isto é, na Patrística), não foi difícil consignar (ou subordinar) a aquisição da virtude ao exercício do amor, à sua necessidade pedagógico-catequética. Um dos primeiros a transpor o moralismo do Estagirita, adaptando-o à doctrina christiana (ou à sua moral) foi Orígenes13, quando identificou as virtudes como sendo o próprio Cristo, ou reflexos da sua esseidade: justiça, sabedoria, verdade. Os Padres não faziam distinção – como os escolásticos, mais tarde – entre virtudes “naturais” e “sobrenaturais”, mas aceitavam e explicavam a divisão de Platão14 das quatro virtudes cardeais, assim:

1) a prudência aperfeiçoa o logistikón (a mente);
2) a coragem é a força do thymoeidés (o apetite irascível contra o mal);
3) a temperança resiste ao epythymetikón (a concupiscência);
4) a justiça harmoniza em sua justa proporção o exercício das virtudes precedentes.

As éticas do período helênico são fundamentadas na noção de eudaimonía (sendo a estoica e a epicurista suas últimas grandes representantes), à qual Agostinho também aderiu, mas sem se limitar a tal noção. Ao colocar o primado do amor (caridade), “ama e faz o que quiseres”15, e este à luz do Mestre interior (da Verdade revelada ao intellectus e à fides), o Hiponense estabelecerá o fundamento que, da Patrística até a Reforma, com Lutero16 – para não mencionar tantos outros nomes – será dominante, até Kant, no século XVIII. Fundamentando a sua ética (lei moral) no dever17, conforme o imperativo categórico: “Age de tal forma”, como se, als ob, Kant será o maior representante – embora não sem problemas – de uma ética autônoma, fincada no indivíduo que se conduz por sua razão, adequadamente orientada no princípio das Luzes, e na fórmula sapere aude!
Na Igreja, porém, ainda reverbera a voz solene de um Agostinho que doutrina: “Por esse amor, portanto, como por um alvo proposto, pelo qual digas tudo o que dizes, o que quer que narres faze-o de tal forma que aquele que te ouve, ouvindo, creia e, crendo, espere e, esperando, ame”18. Para tanto amar, é preciso que sejam evitadas certas falhas morais, atiçadas pelos apetites que respondem às sugestões, internas ou externas.   
Agostinho falará de três graus que seguem a sugestão, sendo ela o primeiro: suggestusdelectatioconsensus.

Três coisas constituem o pecado: a sugestão, o deleite e o consentimento. A sugestão vem pela memória ou pelos sentidos do corpo; pelo que vemos, ouvimos, sentimos, degustamos ou tocamos. A sugestão nos traz deleite a ser experimentado. Caso esse deleite seja ilícito, deve ser reprimido. [...] a sugestão vem tal uma serpente, isso é, insinua-se lasciva e rápida, semelhante às imagens que se formam dentro de nós. Elas têm sempre como princípios, objetos exteriores.19

A suggesta, embora seja o nível mais baixo da tentação, pode ser o começo da queda.
O deleite que induz ao erro moral é verdadeiro tão somente em sua falsidade, pois a alegria só é verdadeira quando encontrada na verdade. “Com efeito”, diz o Hiponense, “pergunto a todos se preferem encontrar alegria na verdade ou na falsidade: não hesitam em dizer que preferem encontrá-la na verdade, como não hesitam em dizer que querem ser felizes. Pois a vida feliz é uma alegria que vem da verdade”20. Do mesmo modo é o amor: se é falso (ou se não vem de Deus), não é amor – pelo menos no vínculo que tem ou que deve ter com esse Amor, de onde deve vir e por onde deve ser medido. E é assim que, para ser verdadeira – ou virtuosa –, a medida de amar é o amar sem medidas.
Nesse idealismo teológico, ou por ele, todo amor contrário foi combatido como vício, inadequação do espírito, corrupção da virtude. O Eu, aí, foi o alvo principal... porque supunha o amour-propre, amour de soi, expressão máxime da decadência moral. Tal empresa, porém, se assemelha a um cão que dá voltas em torno de si, tentando apanhar a própria cauda para, então, destruí-la; por acreditar que as fontes das suas mazelas morais estão todas aí, depositadas. O homem, no lugar em que o cão tem a sua cauda, tem o coração – ao menos no sentido vulgar em que falamos da sede de nossas emoções. “Só necessitamos de moral em falta de amor”, Comte-Sponville diz, e completa, “e é por isso que temos tanta necessidade de moral.21” E fica óbvio e evidente que ele tem em mente aquele mesmo amor sublimado, ponto alto das nossas melhores afecções, em todos os seus “bons sentidos”. Ah, outro equívoco! Se os sentidos são bons, são bons para nós mesmos, segundo o nosso juízo. Ademais, necessitamos tanto de moral porque o (nosso) amour-propre nos sobra, sempre em combate com os nossos ideais, herdados da nossa cultura: os ideais fincados no ágape. Aí aparecem, no conflito que criamos, o bom e o mau amor... como se houvesse um “amor bom”, modelo para o que medimos quando falamos sobre ele mesmo; tal em uma definição escandalosamente religiosa de Kierkegaard:

A vida secreta do amor está na sua intimidade insondável e, ao mesmo tempo, na sua conexão profunda com toda a existência. Tal como um lago tranquilo que tem a sua origem profunda na fonte oculta que nenhum olhar consegue ver, assim também o amor humano tem como origem ainda mais profunda o amor de Deus. Se no fundo não houvesse nenhuma nascente, ou se Deus não fosse o amor, não haveria qualquer lago, mesmo pequeno, e nem o amor do ser humano. Como o pequeno lago tem a sua origem na nascente profunda, assim o amor do ser humano brota diretamente do amor de Deus. E como o pequeno lago tranquilo convida você a contemplá-lo, mas os reflexos escuros do fundo impedem a você de sondá-lo, assim também o amor humano originado na misteriosa natureza de Deus impede você de ver a sua profundeza.22

Na analogia de Kierkegaard, o lago é mais que ele mesmo, pois dependente; e a sua origem misteriosa (a pequenina fonte de onde nasce) é um discurso que aponta para o Grande Mistério (Deus, a fonte suprema), e a sua beleza é convite para a beleza de Deus. Do mesmo modo que é o lago, é o amor humano. É a tradição romântico-místico-teológica (Platão, Agostinho, Aquino, Lutero) quem fala aí, nos... saltos ontológicos. Kierkegaard é como o poeta místico de Caeiro: “Os poetas místicos são filósofos doentes, / E os filósofos doentes são homens doidos. / Porque os poetas místicos dizem que as flores sentem / E dizem que as pedras têm alma / E que os rios têm êxtase ao luar.23” É próprio do idealismo romântico essa projeção de uma Coisa para além da coisa:

Aquela cousa que está ali estar mais ali do que ali está!
Sim, choro às vezes o corpo mais corpo que pode haver,
E o resto são os sonhos dos homens,
A miopia de quem vê pouco,
E o desejo de estar sentado de quem não sabe estar de pé.
Todo o cristianismo é um sonho de cadeiras.24

É próprio do idealismo romântico o grande equívoco: o sonho, a vontade ardente, o desejo requerente de que exista mesmo “uma árvore perfeita” para além desta árvore que, aqui a minha frente, é sujeita ao tempo e às imperfeições que ele impõe à sua matéria; como também faz a todos os homens. Aos homens, aos seus amores, à sua moral.
Para tratar sobre o tema do amor e da sua moral natural, Comte-Sponville busca orientação em Platão, Agostinho, Spinoza, Pascal, Kant, Hume, Bergson e Montaigne, dentre outros; e repete os conceitos de Eros, philia e ágape, sem tocar em stergein – como tão bem poderia fazê-lo, ele que é um mestre da palavra escrita. Uma pena! “A moral”, ele afirma, “é um simulacro do amor: agir moralmente é agir como se amassemos.25” Pelo contrário, eu digo: é por amar demais – às coisas que nos são próprias e que às vezes nos faltam, no obstáculo que o Outro é – que a moral aparece, para que não vivamos na barbárie. E isso é, por si mesmo, eco da nossa razoabilidade, e do nosso instinto mais básico de preservação. Não é à-toa que as éticas heteronômicas sejam tão “blá blá blá”, “mais do mesmo” que somente mudam conforme os tempos e as necessidades do tempo; não é à-toa que as obras que tratam sobre o tema do amor sejam muito mais “blá blá blá”, “enchimento de linguiça”, bobagem superficial e permanente nicho mercantilista do mercado editorial, para encher as prateleiras a serem esvaziadas por toda sorte de gente tola ou programada nas ideias gritadas do alto, geralmente dada mais às emoções que à razão.
Contra as dificuldades desta “ética do amor”, que supõe um Ideal superior, e uma heteronomia da vontade, parece viável uma ética da razoabilidade – e autônoma, evidentemente –, em que permaneça o horizonte do real, sem as fantasias de perfeições, mas colocando a liberdade do Outro como fronteira de sua ação, sempre mediada pelo respeito e pelo diálogo não hierarquizado. A hierarquia romântico-idealista do amor produz poemas como este de John Donne, poeta metafísico inglês:

Meu rosto no teu olho, o teu no meu aparece,
E corações bem sinceros nas faces repousam,
onde acharemos dois hemisférios melhores
Sem o norte pungente,  sem o oeste cadente?

Tudo que morre não se misturou por igual;
Se nossos dois amores forem um, ou tu e eu
amarmos tanto que nenhum esmoreça,
nenhum morrerá.26

“Ai, que lindo!”
Quantos apaixonados e apaixonadas já não disseram isso, suspirando, lendo o famoso poema de Donne ou outro semelhante? Estavam presos à fantasia da perfeição e da eternidade do... amor.
Como aquela “moral superior”, também a idealização da pessoa amada – parte essencial da natureza da paixão, do estar apaixonado (in love, como dizem os americanos) – é um delírio cotidiano, uma loucura “consentida”... e assim reconhecida por muitos, mais esclarecidos, como Freud27, Lou-Salomé, ou Elvis Gravos em sua canção sábio-delirante: “Se você está amando, você deve estar feliz. Se você está amando, você deve estar louco.28” Caberia, aí, a máxima de Wlliam Congrave, dramaturgo do século XVII, que escreveu: “Se não for amor, então é loucura, e então é perdoável.29” Mas acontece que, para uma moral do respeito dialogal e uma ética da razoabilidade, quanto menos loucura, melhor. Para o mais verdadeiro da ética, portanto, o amor não é bem-vindo. Quanto menos paixão, quanto menos amor, quanto menos loucura, melhor.






1 De Trin., VIII, 10,14. AGOSTINHO, Santo. A Trindade. 2. ed. São Paulo: Paulus, 1994. (Col. Patrística, 7).
2 1 João 4, 8: “Aquele que não ama não conhece a Deus, porque Deus é amor.” E em 4, 10: “Nisto se manifestou o amor de Deus para conosco: em que Deus enviou o seu Filho unigênito ao mundo, para que por meio dele vivamos.” (ECA).
3 Agostinho não nega suas influências platônico/neoplatônicas. Aliás, nas palavras de Etienne Gilson, ele chega mesmo a afirmar que, “se tivessem conhecido o cristianismo, os platônicos pouca coisa teriam precisado mudar em sua doutrina para se tornarem ‘cristãos’.” (GILSON, Etienne. A filosofia da Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 101). Mais adiante, Gilson afirma que “o platonismo foi, para o pensamento cristão, o primeiro incentivo a buscar uma interpretação filosófica da sua própria verdade” (GILSON, 1998, p. 102). Foram os livros platônicos que, antes das Escrituras, no testemunho de Agostinho, incitaram-no a buscar a verdade, a buscar a Deus: “Mas depois de ler aqueles livros dos platônicos e de ser induzido por eles a buscar a verdade incorpórea...” (Conf., VII, 20,26; ­­­­­­­­­­AGOSTINHO, Santo. Confissões. São Paulo: Nova Cultural, 1996. [Col. Os Pensadores]).
4 HUISMAN, Denis. Dicionário de obras filosóficas. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 257.
5 Transportando as formas da linguagem (representativas) às Pessoas da Trindade (não representativas), o Pai é amans (o que ama), o Filho é amatur (o que é amado) e o Espírito Santo é amor.
6 STOTT, John R. W. I, II e III João: introdução e comentário. São Paulo: Mundo Cristão / Vida Nova, 1982. p. 138.
7 1 João 4, 8.
8 TOLSTOI, Leon. Onde existe amor, Deus aí está. Campinas, SP: Verus, 2001.
9 Na Antiguidade e Idade Média, falava-se em quatro virtudes cardeais: prudência, coragem (também chamada de “potência da alma”), temperança e justiça. Em francês, por exemplo, prudência é às vezes chamada de sagesse, palavra que também pode ser traduzida como “sabedoria”, “tino”, “tento” e “ponderação”, no sentido de ter juízo, ser ajuizado, etc. A classificação das quatro virtudes parece remontar ao século VI a.C., como pode ser visto em Platão (República IV, 427 e; Leis, I, 631 c) e no pensamento estoico (cf. Diógenes Laércio, VII, 126). É Cícero quem às transmite ao pensamento cristão, pela grande influência que exerce sobre Ambrósio de Milão e Agostinho de Hipona, principalmente. Depois, pode ser encontrada em Tomás de Aquino (Suma teológica, I a II ae, quest. 61), agora pela influência que recebe de Aristóteles (cf. AUBENQUE, P. La prudence chez Aristote. Paris: PUF, 1963. p. 35-6 ss.) e, claro, do Hiponense. Sobre as quatro virtudes cardeais, ligadas à sabedoria, ver: COMTE-SPONVILLE, André. A prudência. A temperança. A coragem. A justiça. In: _____. Pequeno tratado das grandes virtudes. São Paulo: Martins Fontes, 1997. p. 37-95.
10 Et. Nic., 1106b-1107a, 1-3; ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Nova Cultural, 1973. (Col. Os Pensadores).
11 Troque “virtude” por “amor” que a dificuldade será a mesma.
12 A anakolouthía das virtudes, em que uma supõe a outra.
13 c. 185-253.
14 Cf. Polit., 439a s.
15 In Ioan. Evang., 7, 8 (AGUSTIN, San. Tratados sobre el Evangelio de San Juan [36-124]. In: _____. Obras de san Agustín. Madrid: La Editorial Catolica / BAC, 1957. v. 14 [II]. Bilíngue). Ou ainda: “Ama, e assim não poderás fazer senão o bem” (In Ioan. Evang., 10, 7). Santiago Sierra Rubio, tratando sobre a ação moral de Cristo, enfatiza a causa precípua do advento de Cristo como sendo uma exaltação ao/do amor (Cf. RUBIO, Santiago Sierra. Patria y camino: Cristo en la vida y en la reflexión de San Agustín. Madrid: Ediciones Religión y Cultura, 1997. p. 103-5). O texto utilizado por Rubio é o que encontramos em De cat. rud., I, IV,7 (AGOSTINHO, Santo. A instrução dos catecúmenos: teoria e pratica da catequese. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2005): “Que maior causa pode haver da vinda do Senhor senão mostrar-nos Deus o seu amor? E brilhantemente o demonstrou, pois éramos ainda pecadores quando Cristo morreu por nós! ...Porque a caridade é o fim do mandamento e o pleno cumprimento da Lei: para que nós também nos amemos uns aos outros e, assim como Ele ofereceu por nós a sua vida, assim também demos a nossa vida pelos nossos irmãos. [...] O amor é efetivamente mais grato quando não é perturbado pela aridez da necessidade, mas deriva da bondade fecunda. Aquele provém da miséria, este da misericórdia.” 
16 A ética cristã, conforme Stanley Grenz, é modelar em Agostinho “como Amor a Deus”, e em Tomás de Aquino “como realização de nosso objetivo”, e em Lutero e nos demais reformadores clássicos “como obediência de quem crê”. (Cf. GRENZ, Stanley. Propostas de modelos cristãos. In: _____. A busca da moral: fundamentos da ética cristã. São Paulo: Vida, 2006. p. 149-92. [Col. Acadêmica]).
17 “Muitos filósofos viram a moralidade de uma maneira muito diferente. Alguns deles [dentre os quais, Agostinho] pensavam que havia uma lei moral objetiva, mas que esta dependia da vontade de Deus. Outros pensavam que a moralidade tinha algo a ver com a razão, mas que o exercício da razão consistia inteiramente em promover algum objetivo, como a própria felicidade ou o bem estar da sociedade [aí se incluem desde Aristóteles até os epicureus e estóicos]. Kant rejeita essas idéias, porque elas fazem a moralidade depender de algo exterior a ela mesma: a vontade de Deus, ou o desejo de promover o bem-estar. Ele rejeita igualmente a idéia de que a moralidade é apenas o desenvolvimento natural de certos sentimentos que pertencem à nossa natureza humana. Isso não seria compatível com seu caráter intrinsecamente racional” (WALKER, Ralph. Kant: Kant e a lei moral. São Paulo: Editora UNESP, 1999. p. 7. [Col. Grandes Filósofos]).
18 De cat. rud., I, IV,8 (itálicos meus). O resultado da ação moral, fundamentada no princípio do amor, portanto, deságua nas três virtudes teologais (cf. 1 Coríntios, 13, 13), que estão na fórmula agostiniana sobre o progresso (moral) do conhecimento: “[...] uti ille [...] audiendo credat, credendo speret, sperando amet”. Para a moral do dever, em Kant, ver: KANT, Immanuel. Grundlegung zur Metaphysik der Sitten. Karl Vorländer (Org.). Hamburg: Der philosophischen Bibliotek, 1965. p. 512. Bd 6 (BA 52). “Toda ação exige a antecipação de um fim, o ser humano deve agir como se (als ob) este fim fosse realizável. [...] Segundo Kant, a noção de felicidade, que fundamenta por exemplo as éticas do período helenístico, como a estóica e a epicurista, é insuficiente como fundamento da moral, porque o conceito de felicidade é variável, dependendo de fatores subjetivos, psicológicos, ao passo que a lei moral é invariante, universal; por isso seu fundamento é o dever” (MARCONDES, Danilo. Iniciação à História da Filosofia: dos pré-socráticos à Wittgenstein. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. p. 213). As semelhanças, cada qual à sua proporção, como se vê, são enormes. As semelhanças e diferenças entre os “imperativos” da ética de Agostinho e de Kant foram tratadas em um artigo de Hare. Cf. HARE, John E. Augustine, Kant, and the Moral Grap. In: MATTHEWS, Gareth B. (Ed.). The augustinian tradition. Berkeley, Los Angeles, London: University of California Press, 1999. p. 251-62.
19 De serm. Dom., I, 12,34 (AGOSTINHO, Santo. O sermão da montanha. São Paulo: Paulinas, 1992. [Col. Espiritualidade]).  
20 Conf., X, 23,33.
21 COMTE-SPONVILLE, André. Amor. In: _____. Pequeno tratado das grandes virtudes. São Paulo: Martins Fontes, 1997. p. 242-3.
22 KIERKEGAARD, Sören. O amor de Deus fundamenta e edifica o amor humano. In: SCHOEPFLIN, Maurizio. (Ed.). O amor segundo os filósofos. Bauru: EDUSC, 2003. p. 45.
23 PESSOA, Fernando. O guardador de rebanhos e outros poemas: poesia completa de Alberto Caeiro. São Paulo: Landy Editora, 2006. p. 69. Os itálicos são meus.
24 PESSOA, 2006, p. 145. É uma variante do poema “Ah! Querem uma luz melhor que a do sol”, dos Poemas inconjuntos. A interpretação é óbvia: para além do físico, do real, há aqueles (os românticos, os místicos e os religiosos) que desejam o metafísico ideal, suprassensível e sublimado – basta ver o próprio poema, sem a variante referida (cf. PESSOA, 2006, p. 127).    
25 COMTE-SPONVILLE, 1997, p. 243-4.
26 Faço uma tradução livre do soneto de Donne (1572-1631); o trecho original é como segue: My face in thine eye, thine in mine appeares, / And true plaine hearts doe in the faces rest, / Where can we finde two better hamispheares / Without sharp North, without declining West? / What ever dyes, was not mixt equally; / If two loves be one, or, thou and I / Love so alike, that none doe slacken, none can die. (DONNE, Johm. The Good-Morrow. In: GOODWIN, Daisy. (Ed.). The nation’s favorite love poems. London: Penguin, 1997. p. 73). 
27 “Os indivíduos [supõe Freud] não seriam tolos a ponto de se apaixonar se tivessem os olhos bem abertos às forças e às fraquezas da pessoa amada.” (ABEL-HIRSCH, Nicola. Eros. Rio de Janeiro: Relume Dumará / Ediouro; São Paulo: Segmento-Duetto, 2005. p. 36. [Col. Conceitos da Psicanalise, 8). E: “Afora a idealização do amado, Freud achava que as pessoas viam no parceiro uma imagem idealizada de si mesmas. Quando uma pessoa conta à outra a sua ‘história’, trata-se de um relato que contém o modo como ela [mesma] deseja ser vista, além (talvez) do desejo real de que a outra a conheça. […] Quando há uma idealização, as críticas, as dúvidas e as hostilidades são deixadas de lado e em geral se acha que sejam próprias de outra pessoa.” (ABEL-HIRSCH, 2005, p. 37). Em outras palavras: é o nosso externo erótico-delirante, dada às sublimações, a nossa paixão, nossa loucura. 
28 Personagem (na HQ) de Meli-Melo, em: MELI-MELO. O Groj. In: Heavy Metal, São Paulo, ano 3, n. 17, p. 34, 1997.  
29 Em The old bachelor, peça de 1693 (ato 4, cena 7). Citado em: PARTINGTON, Angela. (Ed.). The Oxford Dictionary of Quotations: new edition. London: BCA, OUP, 1995. p. 215.


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