33.
Da
expressão “Onde há Deus, aí há amor...”, e da sua ética
No De Trinitate (Sobre a Trindade, escrito
entre 399 e 419), Santo Agostinho afirma que o amor, qualquer que seja ele – se
for bom... porque há o amour-propre –,
é sombra ou reflexo do Amor, numa hierarquia que chega às Pessoas (Pai, Filho e
Espírito Santo) da Trindade, que se relacionam em perfeito amor. “O amor”, ele diz,
“supõe alguém que ame e alguém que seja amado com amor. Assim, encontram-se
três realidades: o que ama, o que é amado e o mesmo amor. O que é, portanto, o
amor, senão uma certa vida que enlaça dois seres, ou tenta enlaçar, a saber: o
que ama e o que é amado?” A transferência
de conceitos, aí, salta do físico ao metafísico, pela análise teológica do
autor; e, daí, do mundo Ideal (ou santo), retorna ao mundo dos homens,
purificado, purificando-os. Todo dom (ou amor) perfeito vem de Deus, porque
Deus é amor; escreve são João, a quem
Agostinho subscreve. Mais platonismo – ou neoplatonismo
–, impossível!, mais equívoco, idem!
Denis Huisman comenta a
citação do Hiponense: “Aquele que ama, aquele que é amado e o amor constituem
uma unidade”, ele diz. Na
representação de tal unidade, o amado (quod
amatur) está no centro da “atenção amorosa” daquele que o ama (amans), e ambos estão unidos
pelo amor (amor), no amor, formando a
unidade trina, como na Trindade cristã,
em que uma pessoa não é a outra, e todas são... Deus. É a interpretação de uma analogia
dentre tantas analogias que podem ser encontradas no De Trinitate.
Deus, que é sempre Deus
Uno-Trino, Deus Trindade, é origem e fonte de onde emana todo o amor; e mesmo dos
amores carnais, reflexos fugidios da relação econômica da “família”, na
Trindade. “Deus é a fonte e a origem (ek)
do amor, e todo verdadeiro amor deriva dele, [e assim sendo] é óbvio que todo
aquele que ama, isto é, que ama a Deus ou ao homem com aquela devoção que é o
único amor verdadeiro segundo o ensino de João é (literalmente, tem sido) nascido de Deus e conhece a Deus.
Mas Deus não é somente a fonte de todo verdadeiro amor; Deus é amor em Seu Ser mais profundo”. Stott tem o espírito joanino. Este, ao
afirmar que Deus charitas
est, não se refere somente ao Pai, mas também ao Filho
e ao Espírito Santo; à Trindade. Isso culminará na regra canônica da fé e das
atribuições, que reza: onde uma das Pessoas da Trindade está, ali está Deus. Como
no conto de Tolstoi, Deus está onde está o amor.
E onde há amor – ou aquele que ama –, há a virtude, ou as virtudes que,
manifestações da sabedoria, com ela se confundem, co-fundem.
Na Ética
a Nicômaco, de Aristóteles, o prêmio da virtude é a virtude mesma (virtus
sibi ipsi praemium). Mas o
caminho da virtude é difícil, enquanto o do vício, fácil. A virtude é uma só, os vícios, muitos.
No pensamento cristão nascente (isto é, na
Patrística), não foi difícil consignar (ou subordinar) a aquisição da virtude
ao exercício do amor, à sua necessidade pedagógico-catequética. Um dos
primeiros a transpor o moralismo do Estagirita, adaptando-o à doctrina christiana (ou à sua moral) foi
Orígenes, quando identificou as
virtudes como sendo o próprio Cristo, ou reflexos da sua esseidade: justiça,
sabedoria, verdade. Os Padres não faziam distinção – como os escolásticos, mais
tarde – entre virtudes “naturais” e “sobrenaturais”, mas aceitavam e explicavam
a divisão de Platão das
quatro virtudes cardeais, assim:
1) a prudência aperfeiçoa o logistikón
(a mente);
2) a coragem é a força do thymoeidés
(o apetite irascível contra o mal);
3) a temperança resiste ao epythymetikón
(a concupiscência);
4) a justiça harmoniza em sua justa proporção o exercício das virtudes precedentes.
As éticas do
período helênico são fundamentadas na noção de eudaimonía (sendo a estoica e a epicurista suas últimas grandes
representantes), à qual Agostinho também aderiu, mas sem se limitar a tal
noção. Ao colocar o primado do amor
(caridade), “ama e faz o que quiseres”,
e este à luz do Mestre interior (da Verdade revelada ao intellectus e à fides), o
Hiponense estabelecerá o fundamento que, da Patrística até a Reforma, com
Lutero – para não mencionar tantos outros
nomes – será dominante, até Kant, no século XVIII. Fundamentando a sua ética
(lei moral) no dever,
conforme o imperativo categórico: “Age de tal forma”, como se, als ob, Kant
será o maior representante – embora não sem problemas – de uma ética autônoma,
fincada no indivíduo que se conduz por sua razão, adequadamente orientada no
princípio das Luzes, e na fórmula sapere
aude!
Na Igreja,
porém, ainda reverbera a voz solene de um Agostinho que doutrina: “Por esse amor, portanto, como por um alvo
proposto, pelo qual digas tudo o que dizes, o que quer que narres faze-o
de tal forma que aquele que te ouve, ouvindo, creia e, crendo, espere e,
esperando, ame”. Para
tanto amar, é preciso que sejam evitadas certas falhas morais, atiçadas pelos
apetites que respondem às sugestões, internas ou externas.
Agostinho
falará de três graus que seguem a sugestão, sendo ela o primeiro: suggestus → delectatio → consensus.
Três coisas constituem o pecado: a sugestão, o deleite e o
consentimento. A sugestão vem pela memória ou pelos sentidos do corpo; pelo que
vemos, ouvimos, sentimos, degustamos ou tocamos. A sugestão nos traz deleite a
ser experimentado. Caso esse deleite seja ilícito, deve ser reprimido. [...] a
sugestão vem tal uma serpente, isso é, insinua-se lasciva e rápida, semelhante às
imagens que se formam dentro de nós. Elas têm sempre como princípios, objetos
exteriores.
A suggesta, embora seja o
nível mais baixo da tentação, pode ser o começo da queda.
O deleite que induz ao erro moral é verdadeiro tão somente em sua
falsidade, pois a alegria só é verdadeira quando encontrada na verdade. “Com
efeito”, diz o Hiponense, “pergunto a todos se preferem encontrar alegria na
verdade ou na falsidade: não hesitam em dizer que preferem encontrá-la na
verdade, como não hesitam em dizer que querem ser felizes. Pois a vida feliz é
uma alegria que vem da verdade”. Do
mesmo modo é o amor: se é falso (ou se não vem de Deus), não é amor – pelo
menos no vínculo que tem ou que deve ter com esse Amor, de onde deve vir e por
onde deve ser medido. E é assim que, para ser verdadeira – ou virtuosa –, a
medida de amar é o amar sem medidas.
Nesse idealismo teológico, ou por ele, todo amor contrário foi
combatido como vício, inadequação do espírito, corrupção da virtude. O Eu, aí,
foi o alvo principal... porque supunha o amour-propre,
amour de soi, expressão máxime da
decadência moral. Tal empresa, porém, se assemelha a um cão que dá voltas em
torno de si, tentando apanhar a própria cauda para, então, destruí-la; por
acreditar que as fontes das suas mazelas morais estão todas aí, depositadas. O
homem, no lugar em que o cão tem a sua cauda, tem o coração – ao menos no sentido
vulgar em que falamos da sede de nossas emoções. “Só necessitamos de moral em
falta de amor”, Comte-Sponville diz, e completa, “e é por isso que temos tanta
necessidade de moral.” E
fica óbvio e evidente que ele tem em mente aquele mesmo amor sublimado, ponto
alto das nossas melhores afecções, em todos os seus “bons sentidos”. Ah, outro
equívoco! Se os sentidos são bons, são bons para nós mesmos, segundo o nosso
juízo. Ademais, necessitamos tanto de moral porque o (nosso) amour-propre nos sobra, sempre em combate com os nossos ideais, herdados da nossa
cultura: os ideais fincados no ágape.
Aí aparecem, no conflito que criamos, o bom e o mau amor... como se houvesse um
“amor bom”, modelo para o que medimos quando falamos sobre ele mesmo; tal em
uma definição escandalosamente religiosa de Kierkegaard:
A vida
secreta do amor está na sua intimidade insondável e, ao mesmo tempo, na sua
conexão profunda com toda a existência. Tal como um lago tranquilo que tem a
sua origem profunda na fonte oculta que nenhum olhar consegue ver, assim também
o amor humano tem como origem ainda mais
profunda o amor de Deus. Se no fundo não houvesse nenhuma nascente, ou se
Deus não fosse o amor, não haveria qualquer lago, mesmo pequeno, e nem o amor
do ser humano. Como o pequeno lago tem a sua origem na nascente profunda, assim
o amor do ser humano brota diretamente do
amor de Deus. E como o pequeno lago tranquilo convida você a contemplá-lo,
mas os reflexos escuros do fundo impedem a você de sondá-lo, assim também o
amor humano originado na misteriosa natureza de Deus impede você de ver a sua
profundeza.
Na analogia de Kierkegaard, o lago é mais que ele mesmo, pois
dependente; e a sua origem misteriosa (a pequenina fonte de onde nasce) é um
discurso que aponta para o Grande Mistério (Deus, a fonte suprema), e a sua
beleza é convite para a beleza de Deus. Do mesmo modo que é o lago, é o amor
humano. É a tradição romântico-místico-teológica (Platão, Agostinho, Aquino,
Lutero) quem fala aí, nos... saltos ontológicos. Kierkegaard é como o poeta
místico de Caeiro: “Os poetas místicos são filósofos doentes, / E os filósofos
doentes são homens doidos. / Porque os poetas místicos dizem que as flores
sentem / E dizem que as pedras têm alma / E que os rios têm êxtase ao luar.” É próprio do idealismo romântico essa
projeção de uma Coisa para além da coisa:
Aquela
cousa que está ali estar mais ali do que ali está!
Sim, choro
às vezes o corpo mais corpo que pode haver,
E o
resto são os sonhos dos homens,
A miopia
de quem vê pouco,
E o
desejo de estar sentado de quem não sabe estar de pé.
Todo o
cristianismo é um sonho de cadeiras.
É próprio do idealismo romântico o grande equívoco: o sonho, a vontade
ardente, o desejo requerente de que exista mesmo “uma árvore perfeita” para além
desta árvore que, aqui a minha frente, é sujeita ao tempo e às imperfeições que
ele impõe à sua matéria; como também faz a todos os homens. Aos homens, aos
seus amores, à sua moral.
Para tratar sobre o tema do amor e da sua moral natural,
Comte-Sponville busca orientação em Platão, Agostinho, Spinoza, Pascal, Kant,
Hume, Bergson e Montaigne, dentre outros; e repete os conceitos de Eros, philia e ágape, sem tocar
em stergein – como tão bem poderia fazê-lo, ele que é um mestre
da palavra escrita. Uma pena! “A moral”, ele afirma, “é um simulacro do amor:
agir moralmente é agir como se amassemos.” Pelo contrário, eu digo: é por amar demais – às coisas
que nos são próprias e que às vezes nos faltam, no obstáculo que o Outro é –
que a moral aparece, para que não vivamos na barbárie. E isso é, por si mesmo,
eco da nossa razoabilidade, e do nosso instinto mais básico de preservação. Não
é à-toa que as éticas heteronômicas sejam tão “blá blá blá”, “mais do mesmo”
que somente mudam conforme os tempos e as necessidades do tempo; não é à-toa
que as obras que tratam sobre o tema do amor sejam muito mais “blá blá blá”, “enchimento
de linguiça”, bobagem superficial e permanente nicho mercantilista do mercado
editorial, para encher as prateleiras a serem esvaziadas por toda sorte de gente
tola ou programada nas ideias gritadas do alto, geralmente dada mais às emoções
que à razão.
Contra as dificuldades desta “ética do amor”, que supõe um Ideal
superior, e uma heteronomia da vontade, parece viável uma ética da razoabilidade
– e autônoma, evidentemente –, em que permaneça o horizonte do real, sem as fantasias
de perfeições, mas colocando a liberdade do Outro como fronteira de sua ação, sempre
mediada pelo respeito e pelo diálogo não hierarquizado. A hierarquia
romântico-idealista do amor produz poemas como este de John Donne, poeta metafísico inglês:
Meu rosto no teu olho, o teu
no meu aparece,
E corações bem sinceros nas
faces repousam,
onde acharemos dois
hemisférios melhores
Sem o norte pungente, sem o oeste cadente?
Tudo que morre não se misturou
por igual;
Se nossos dois amores forem
um, ou tu e eu
amarmos tanto que nenhum
esmoreça,
“Ai, que lindo!”
Quantos apaixonados e apaixonadas já não disseram isso, suspirando,
lendo o famoso poema de Donne ou outro semelhante? Estavam presos à fantasia da
perfeição e da eternidade do... amor.
Como aquela “moral superior”, também a idealização da pessoa amada –
parte essencial da natureza da paixão, do estar apaixonado (in love, como dizem os americanos) – é
um delírio cotidiano, uma loucura “consentida”... e assim reconhecida por
muitos, mais esclarecidos, como Freud Lou-Salomé, ou Elvis Gravos em sua canção sábio-delirante: “Se você está amando, você deve estar feliz. Se você está amando, você deve estar louco.” Caberia, aí, a máxima de Wlliam Congrave, dramaturgo do século XVII, que escreveu: “Se não for amor, então é loucura, e então é perdoável.” Mas acontece que, para uma moral do respeito dialogal e uma ética da razoabilidade, quanto menos loucura, melhor. Para
o mais verdadeiro da ética, portanto, o amor não é bem-vindo. Quanto menos
paixão, quanto menos amor, quanto menos loucura, melhor.
De Trin., VIII, 10,14. AGOSTINHO, Santo. A Trindade. 2. ed.
São Paulo: Paulus, 1994. (Col. Patrística, 7).
Agostinho não nega suas
influências platônico/neoplatônicas. Aliás, nas palavras de Etienne Gilson, ele
chega mesmo a afirmar que, “se tivessem conhecido o cristianismo, os platônicos
pouca coisa teriam precisado mudar em sua doutrina para se tornarem
‘cristãos’.”(GILSON, Etienne. A
filosofia da Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 101).
Mais adiante, Gilson afirma que “o platonismo foi, para o pensamento cristão, o
primeiro incentivo a buscar uma interpretação filosófica da sua própria
verdade” (GILSON, 1998, p. 102). Foram os livros platônicos que, antes das
Escrituras, no testemunho de Agostinho, incitaram-no a buscar a verdade, a
buscar a Deus: “Mas depois de ler aqueles livros dos platônicos e de ser
induzido por eles a buscar a verdade incorpórea...” (Conf., VII, 20,26; AGOSTINHO,
Santo. Confissões. São Paulo: Nova Cultural, 1996. [Col. Os
Pensadores]).
In Ioan. Evang., 7, 8 (AGUSTIN, San. Tratados sobre el Evangelio de San
Juan [36-124]. In: _____. Obras de san Agustín. Madrid: La Editorial Catolica / BAC, 1957. v. 14 [II].
Bilíngue). Ou ainda: “Ama, e assim não poderás fazer
senão o bem” (In Ioan. Evang., 10,
7). Santiago Sierra Rubio, tratando sobre a ação moral de Cristo, enfatiza a
causa precípua do advento de Cristo como sendo uma exaltação ao/do amor (Cf.
RUBIO, Santiago Sierra. Patria y camino:
Cristo en la vida y en la reflexión de San Agustín. Madrid: Ediciones Religión
y Cultura, 1997. p. 103-5). O texto utilizado por Rubio é o que encontramos em De cat. rud., I,
IV,7 (AGOSTINHO, Santo. A
instrução dos catecúmenos: teoria e pratica da catequese. 2. ed.
Petrópolis: Vozes, 2005): “Que maior causa pode haver da vinda do Senhor senão mostrar-nos
Deus o seu amor? E brilhantemente o
demonstrou, pois éramos ainda pecadores
quando Cristo morreu por nós! ...Porque a caridade é o fim do mandamento e o pleno cumprimento da Lei: para que nós também nos amemos uns aos
outros e, assim como Ele ofereceu por nós a sua vida, assim também demos a
nossa vida pelos nossos irmãos. [...] O amor é efetivamente mais grato quando
não é perturbado pela aridez da necessidade, mas deriva da bondade fecunda.
Aquele provém da miséria, este da misericórdia.”
De
serm. Dom., I,
12,34 (AGOSTINHO, Santo. O sermão da
montanha. São Paulo: Paulinas, 1992. [Col. Espiritualidade]).