20.
Dos nomes que o Amor tem, e do
sentido que eles escondem
“Amor”, substantivo masculino... Os dicionários
comuns não ajudam:
1.
Sentimento que predispõe alguém a desejar o bem a outrem. 2. Sentimento de
dedicação absoluta de um ser a outro, ou a uma coisa. 3. Inclinação ditada por
laços de família. 4. Inclinação sexual forte por outra pessoa. 5. Afeição,
amizade, simpatia. 6. O objeto do amor (1 a 5).1
“Amar”, verbo intransitivo, que nem na novela
de Mário de Andrade, onde o pensamento ingênuo de Elza lhe diz que, no
princípio, o amor tem que ser simples. “Simples e insexual. [Pois] nasce das
excelências interiores. Espirituais. O desejo [vem] depois.2”
Mas, ah!, que seria isso senão antecipar o pensamento ao pensador, à “coisa pensante” (res cogitans)?
Não! Não é assim, Elza. Primeiro é a res extensa3,
depois a cogitans, e, somente aí, o cogito. O cartesianíssimo cogito ergo sum antepõe-se ao
pensamento, afirmando o sujeito4. É assim
também com a fórmula agostiniana si fallor, sum: se me engano, existo5, que alguns veem como germe da fórmula
cartesiana. É preciso haver o que se engana para que haja o engano... Elza
saberá disso, depois.
Quantos saberão? Quantos quererão saber?
“São tantas as teorias sobre o amor, e
nenhuma delas serve para nada”, alguns dizem, apressando-se no juízo, pensando
com o coração, que nada pensa, mas considera o “fato imediato”, não refletido – na aceitação de um sentimento que, para ser inteiro, exige tempo, calma,
ponderação e, acima de tudo, fundamentos. A informação/sensação imediata do
visual é vomitada, e agressiva – hoje, mais que antes. A sutileza racional é
moeda rara. Adquiri-la exige tempo e esforço, principalmente aos que não são
naturalmente dotados de muito brilhantismo intelectual. Os apelos externos, por
outro lado, tornam tal empresa ainda mais laboriosa. A segurança
reverente da palavra escrita vai sumindo diante das tantas telas do zapping em sua profusão, como lembradas
e louvadas pelo Capitão Beatty, na distopia de Ray Bradbury:
Encha
as pessoas com dados incombustíveis, entupa-as tanto com “fatos” que elas se
sintam empanzinadas, mas absolutamente “brilhantes” quanto a informações. Assim,
elas imaginarão que estão pensando, terão uma sensação de movimento sem sair do
lugar. E ficarão felizes, porque fatos dessa ordem não mudam. Não as coloque no
terreno movediço, como filosofia ou sociologia, com que comparar suas
experiências. Aí reside a melancolia.6
É preciso desobedecer tal orientação, mesmo com as ameaças da melancolia – coisa
que Guy Montag, personagem principal de Fahrenheit 451, fará e experimentará. No amor, para
saber, é preciso saber: amores são, por quaisquer caminhos, afirmações
absolutas do nosso Eu que, em função de si mesmo (ou da sua autopreservação),
cria “coisas” e fantasias – sendo a religião, muito provavelmente, a
maior de todas. Schopenhauer chamava isso (essa força do “amor”) de Vontade (Wille),
e Freud, Pulsão (Trieb).
Os amores, na divisão clássica, se distinguem em, pelo menos, quatro: erótico
(Eros, eran), o da amizade (philia, philein), o
desinteressado (ágape, agapan) e o amor a si mesmo (stergein), ou amor-próprio, amour de soi.
Homens e mulheres que somos, somente experimentamos, por meio do intelecto ou da experiência pura, o último dessa lista. Volto a Nietzsche: “O egoísmo
não é um princípio, é só e unicamente fato.7”
A farsa, a maior de todas, é a
do amor romântico. Ele seria o Eros domado, abraçado à philein, subjugado e dependente da perfeição de ágape. Aí ele se espelharia, unindo os corações
e as mentes em uma grande fraternidade universal que, embora as tantas diferenças, transforma homens e mulheres em irmãos8; e mesmo quando (homem e mulher) eles se fazem um (uma só carne), através do matrimônio - que a doutrina católica apresenta como sacramento. Ágape é, acima de tudo, fundamento. Não!, eu digo. Ágape é, acima de tudo,
delírio, fantasia, desejo que exista algo além do que os nossos olhos podem
ver. Não há. E, “se há”, somente a nossa fé o garante; a razão, nunca. Mas aqui não
há lugar para a fé... não essa.
Assim, o amor que Arturo sente
por sua mulher, ou por sua amante, ou
por qualquer outro (ou outra) que seja objeto da sua atenção, é, no final das contas, amor que deseja e responde
apenas a si mesmo, e vê no Outro aquilo que lhe faz bem, lhe dá
prazer, lhe faz falta, lhe apetece as afecções... o EU refletido no TU. O Outro, objeto,
mesmo que outros discursos digam o contrário - na tentativa infantil de
manter o modelo afundado na poeira dos séculos -, é mero objeto, meio
para a minha satisfação, por amor a mim mesmo. Mas, ah!, também sou o mesmo para ela, ele: objeto, de amor ou ódio.
Na carta do Apóstolo aos cristãos de Éfeso: “Quem ama a sua mulher, a si mesmo se ama”. É evidente que esse, nosso, não é o mesmo sentido
que o Apóstolo dá à missiva. Também é certo que o contexto do discurso
deixa claro aquele sentido estoico-fraternal de há pouco falado. Mas, sim, a citação
ilustra perfeitamente o que dizemos.
Agora, suponhamos que alguém tenha um filho e, coisa mais que normal,
diga-lhe: “Eu o amo, filho.” Esse amor é, também, braço curto do amour de soi. Que é isso, o desejo de ter filhos (o pai, via de
regra, deseja um filho, e a mãe, uma filha), senão o nosso desejo inconsciente de
continuidade? Continuidade do Eu no Tu. Os pais, nos filhos, mantêm-se vivos,
prolongam-se na história biológica do mundo. Ágape nenhum. Obedecemos, quase sempre, cegamente ao impulso natural. Não há amor aí, apenas Vontade de vida.
Ágape é uma
espécie de “amor pelo feio”9, em contraste
ao Eros grego – que corresponde exatamente ao amor pelo belo, erótico, sexual.
No Novo Testamento, o que mais
aparece é ágape, depois philein. Eros e stergein,
somente como insinuações combatíveis, a combater-se10. E foi assim que, conforme Nietzsche,
O cristianismo tomou o partido de tudo o que é
fraco, baixo, malogrado, transformou em ideal aquilo que contraria os instintos de conservação da vida forte; corrompeu a
própria razão das naturezas mais fortes de espírito, ensinando-lhes a perceber
como pecaminosos, como enganosos, como tentações
os valores supremos do espírito. E exemplo mais lamentável – a corrupção de
Pascal, que acreditava na corrupção de sua razão pelo pecado original, quando
ela fora corrompida apenas pelo seu cristianismo!11
Amor por
algo que não merece o amor, é ágape:
o caridoso ágape – coração das
palavras charis (graça, favor imerecido) e charitas (caridade). Nalgumas versões mais
antigas do Novo Testamento – do capítulo 13 da primeira epístola de são Paulo Aos
coríntios, mais especificamente –, a tradução de αγάπη aparece como
“caridade”, muito mais acertada; pelo sentido que evoca em seu grande contexto,
diferente do que aparece nas versões modernas. Aqui, porém, este detalhe
filológico/exegético não vem ao caso.
O amor é
sempre amor por algo, e esse algo
sempre esbarra em nós mesmos. O “querer algo” nunca é, realmente, “querer algo”,
mas querer-si-mesmo12. Madre Tereza de Calcutá é um exemplo
radical, inevitável... some-se a ela todos os homens bons, os santos, os
justos, os piedosos, os salvadores da humanidade. Tanto mais amor “demonstrado”
ao outro (em função do outro), tanto mais amour de soi. No outro, vemos
o reflexo de nós mesmos. Mesmo no
suicídio, que alguém poderia julgar o maior ato de desapego à vida própria vida,
de desamor a ela.
Todos
os homens procuram ser felizes; não há exceção. Por diferentes que sejam os
meios que empregam, tendem todos a esse fim. O que leva uns a irem para a
guerra e outros a não irem é esse mesmo desejo que está em todos, acompanhado
de diferentes pontos de vista. A vontade nunca efetua a menor diligência, senão
com esse objetivo. Esse é o motivo de todas as ações de todos os homens, até
mesmo do que vão enforcar-se.13
Quando se faz o bem a alguém, faz-se porque é bom fazer o bem a
alguém – conforme o modelo moral-dualista do Ocidente, que diz que o bem é
bom por si mesmo, e o mal, mau... ou, por falta de um discurso mais preciso, “a
privação [ausência] do Bem”, de Deus14.
Tais conceitos, porém – veja os filmes de Akira Kurosawa –, não são assim tão
precisos, fechados, infalíveis. Se Deus é onipresente, como haveria de haver
algo em que ele “faltasse”? E como poderia estar quieto no mesmo lugar em que o
mal estivesse, sem destruí-lo? Estaria somente nas obras do amor? Obras de
amor... Ah!, o prazer do dever cumprido! O coração repleto de ações altruístas
que... não!
Tenha medo, muito medo, de quem diz: eu te amo. Veja-o com desconfiança
e, talvez, com a pergunta infalível: por quê?
1
Verbete em: FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Minidicionário da Língua Portuguesa. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1993. p. 29.
2
ANDRADE, Mário de. Amar, verbo
intransitivo. Rio de Janeiro: Agir, 2008. p. 21.
3
Não levo em conta o idealismo (moderado?) cartesiano que separa o corpo (ou a
matéria) do intelecto, e que supõe uma res
divina, substância muito mais exterior e necessária.
4 A necessidade do “eu sou, eu existo” –
uma vez que não se pode duvidar sem existir – é o primeiro conhecimento certo
que, segundo Descartes, se pode ter com certeza. E mesmo que exista um “Génio
Maligno” que possa me enganar a respeito de muitas coisas, inclusive de mim
mesmo, “não há dúvida que também existo, se me engana; que me engane quanto
possa, não conseguirá nunca que eu seja nada enquanto eu pensar que sou alguma
coisa. De maneira que, depois de ter pensado e repensado muito bem tudo isto,
deve por último concluir-se que esta proposição Eu sou, eu
existo, sempre que proferida por mim ou concebida pelo espírito, é
necessariamente verdadeira.” (DESCARTES, René. Meditações sobre a Filosofia Primeira. Coimbra: Livraria Almedina,
1976. p. 119).
5
“Pois se me enganar, existo. Realmente, quem não existe de modo nenhum se pode
enganar. Por isso, se me engano é porque existo. Porque, portanto, existo se me
engano, como poderei enganar-me sobre se existo, quando é certo que existo
quando me engano?” (De Civ. Dei, XI,
XXVI; AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus.
2. ed. Lisboa: Serviço de Educação e Bolsas / Fundação Calouste Gulbenkian,
2000. p. 1051-2).
6 BRADBURY,
Ray. Fahrenheit 451. 2. ed. São Paulo: Globo /
Biblioteca Azul, 2012. p. 86.
7 NIETZSCHE,
Friedrich. Vontade de Potência. São
Paulo: Escala Editorial, 2010. p. 148. (Col. Grandes Obras do Pensamento
Universal, 97).
8 O conceito,
em sua universalidade, vem dos estoicos, com a
afirmação de um Logos universal (isto é, presente em todos os indivíduos
humanos), abraçado pelo apóstolo Paulo e, depois, subscrito pelos Padres. Ver,
a propósito do tema, o livro de: RATZINGER, Joseph. A união das nações: uma visão dos Padres
da Igreja. São Paulo: Loyola, 1975.
9 No sentido contrastante
de que, Deus, a ninguém apreciaria mais ou menos em resposta a algum atributo
estético: “Mas o que é loucura no mundo, Deus o escolheu para confundir o que é
forte; aquilo que no mundo é vil e desprezado, aquilo que não é, Deus o
escolheu para reduzir a nada o que é, a fim de que nenhuma criatura possa
orgulhar-se diante de Deus.” (I Cor.,
1, 27-9, TEB).
10 “Dos quatro
verbos gregos que denotam os diferentes aspectos do amor, eran, stergein, philein e agapan,
os dois primeiros são praticamente evitados no Novo Testamento (especialmente eran
e o substantivo eros, pois possuíam conotações afetivas incompatíveis
com o amor a Deus). O terceiro, philiein, não foi privilegiado,
focalizando a atenção em agapan e o substantivo agape, cuja
aplicação, até o momento marginalizada, permitia a ampliação do campo semântico
requerida. Nesse sentido, o amor ocupa o lugar principal e a amizade o
secundário no cristianismo, invertendo a hierarquia pagã.” (ORTEGA, Francisco. Genealogias
da amizade. São Paulo: Iluminuras, 2002. p. 58).
11 NIETZSCHE,
Friedrich. O anticristo: Maldição do
cristianismo: Ditirambos de Dionísio. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p.
12 (§ 5).
12 SCHOPENHAUER, Arthur. El amor, las mujeres
e otros ensayos. Madrid: Editorial EDAF, S. A., 1993, p.
439-60. (IV, § 62). Schopenhauer, aí, tem o pensamento no Banquete, de Platão.
13 Pens., VII, 425; PASCAL, Blaise. Pensamentos. 4. ed. São Paulo: Nova
Cultural, 1998. p. 137. (Col. Os Pensadores).
14 É o que Santo
Agostinho afirma, demonstrando inicialmente que o mal não é um ser, que não tem
caráter ontológico, sendo o completo não-positivo do não-ser: “O mal não
tem natureza alguma; pois a perda do ser é que tomou o nome de mal” (De Civ. Dei, IX; AGOSTINHO, Santo. Cidade de Deus: contra os pagãos.
Bragança Paulista: Ed. Universitária São Francisco, 2003. p. 29. v. II); ele é,
ademais, a perversão da vontade: “E procurando o que era a iniquidade
compreendi que ela não era uma substancia existente em si mesma, mas a
perversão da vontade...” (Conf.,
XVI; AGOSTINHO, Santo. Confissões. São Paulo: Paulus, 2006.
p. 191); e como a vontade não é livre (por causa da Queda), embora o homem
tenha livre-arbítrio, o mal é ação do homem, sem Deus: “Assim a avareza não é
vicio do ouro, mas do homem que ama desordenadamente o ouro, por ele
abandonando a justiça, que deve ser infinitamente preferida a esta metal. E a
luxuria, não é vicio da beleza e graça do corpo, mas da alma que perversamente
os prazeres corporais desprezando a temperança, que nos une a coisas
espiritualmente mais belas e incorruptivelmente mais cheia de graça. E a
jactância que não é vicio do louvo humano, mas da alma que ama desordenadamente
ser louvada pelos homens, desdenhando o testemunho da própria consciência. E a
soberba não é vicio de quem dá o poder, ou do poder mesmo, mas da alma que ama
desordenadamente seu próprio poder, desprezando o poder mais justo e poderoso.
Por isso quem ama desordenadamente o bem, seja de qual natureza for, mesmo
conseguindo-o, se torna miserável e mau no bem, ao privar-se do melhor.” (De Civ. Dei, VIII; p. 70). Mais sobre a
questão do mal, em Agostinho, em: EVANS, G. R. Agostinho sobre o mal. São Paulo: Paulus, 1995.